Tempo de Dizer


TEMPO DE DIZER & TEMPO DE DESDIZER
por Adriano Espínola

Em fevereiro de 1983, recebi pelos Correios um exemplar do livro Elementos, entre tantos outros que me chegavam quase todos os dias. Alguns versos chamaram-me logo a atenção e decidi escrever sobre ele no jornal Diário do Nordeste (10/3/83), em Fortaleza.

Busquei destacar no artigo o nível artístico alcançado pelo autor, um tal de Antonio Carlos Secchin, carioca, de 31 anos. Fui logo dizendo, para marcar a isenção do julgamento: “Não conheço o camarada, não é meu amigo, nem nunca escreveu sobre mim. Menciono-o aqui porque a sua poesia é boa. Excelente até em alguns trechos”. Adicionaria, ainda: “O que notamos de pronto em seu trabalho é uma exemplar e rara consciência do fenômeno poético, oriundo, bem se vê, de reflexões amadurecidas, a partir da leitura do que melhor se tem dito e realizado em relação à velha arte de Horácio”. Finalizei os comentários, afirmando: “A [editora] Civilização Brasileira acertou em cheio ao lançar a finíssima e equilibrada poesia de Antonio Carlos Secchin, praticamente um estreante”.

Dito isso, façamos um rápido exercício retroativo: uma leitura de trás para frente da sua poesia, a fim de observarmos, ao longo dos anos, o gradativo e curioso rejuvenescimento da sua obra, iniciada com Ária de Estação (1973). Os três últimos poemas (“Poema do Infante”, “O soldado”, “O Meu Corpo se entrelaça”) expressam um tom existencial amargo, pessimista, muito centrado na persona lírica (“Meu sonho não voa mais/abrindo os braços pelas colinas claras//Zombado de dor, tropeço no verde”), ou (“Operário do precário,/me limito nesse corpo amanhecido,/asa e gozo onde a morte mora”). Verdade que no pequeno poema “Cartilha”(um dístico) há uma nota eufórica puxada pelo “teu silêncio” (“feliz como um portão azul”), bem como no poema “Aviso”, composição à la Bandeira, extraído de um anúncio de jornal. Destaque-se ainda nesse sentido o poema “Ver”, plasticamente luminoso.

Nos poemas do livro seguinte, Dispersos (1982), volta-se para a ironia metapoética (“Soneto das luzes” e “Linguagens”), mas logo mergulha em uma atmosfera pesada, grave (“Onde houve orelha” [“agora é nada,/exceto os rumos/de teu sangue numeroso”]; “Limites” [“Na geladeira/silêncio envelhece.//No vão da porta/minha vida está morta.”].

Essa dicção solene vai ganhar intensidade no livro Elementos, de tom sentencioso, em que o poeta busca reverberar a ideia, na Grécia antiga, de que a natureza e a complexidade da vida e da matéria têm por fundamento quatro elementos combinados, predominando ora um, ora outro: ar, fogo, terra e água. O livro se organiza de acordo com esses princípios, como se fossem também os próprios fundamentos do ser do poeta e do seu dizer meditativo, no qual a linguagem é vista com desconfiança na apreensão das coisas, como sugerem os versos iniciais, postos em epígrafe: “O real é miragem consentida/língua iludida de linguagem”.

Na seção “Água”, reafirma esse sentimento de impotência verbal: “Dizer é corroer o que se esquiva”, ao lado da representação escrita, que significa “reter (…) a cicatriz do seu vazio”. Na seção “Terra”, assegura: “Falar é tatear o nome do que se afasta”; e ainda: “Além da terra, há só o sonho de perdê-la”. Daí o sentimento de descrença e intranscendência: “Deuses, datas adiadas da matéria,/rastros mentirosos, alfabetos da agonia”. Na seção “Fogo”, assinala: “num chão de chama espalho meu delírio,/fincando em cinza, calmaria e razão”. Para logo depois retomar o sentimento de inania verba diante do real: “Respiro o espaço fraturado pela fala/e me deponho, inverso,/no subsolo do discurso”. Registra, ainda,  em outro passo: “enquanto na garganta do meu canto/ um sol solene me assassina”. Na seção de abertura, dedicada ao “Ar”, vai logo afirmando que “O dia [vem] diluído/num som sem/sentido” e que “O ar ancora no vazio”.

Em 1988, contudo, ao lançar Diga-se de passagem, parece sugerir não só a brevidade da sua dicção (“de passagem”), mas também a passagem para outro tipo de dicção, no caso, o humor parodístico, em contraponto ao tom solene, sombrio, que ainda persiste em alguns poemas. Essa oscilação entre um discurso e outro fica clara quando comparamos duas composições que se apresentam lado a lado: “Sete anos de pastor”, paródia do famoso poema de Camões e o texto “Cintilações do Mal”, com suas “constelações do tédio”, e com o verso final referindo-se a “uma parte que a morte tem inteira”. 

Penso que essa oscilação entre o humor e o trágico, pode ser detectada em dois versos que se encontram no poema “Margem”, não lhes faltando a nota metalinguística: “Escrevo a palavra salto,/e paro no sal, e não chego ao alto”. Essa sacada humorística, no plano aqui do significante, se desdobra acolá no plano do significado, em dois outros poemas de teor narrativo, nos quais alguns poetas (parnasianos) são nomeados: “Notícia do poeta” [Marcelo Gama] e “Remorso” [Alberto de Oliveira]. Se nesses dois textos, o poeta aponta para a morte (o acidente fatal de um e o crime do outro), no poema inicial, “Biografia”, Secchin aponta para a vida, isto é, para o brotar do poema, que se liga inseparavelmente à vida do próprio poeta:

O poema vai nascendo
num passo que desafia:
numa hora eu já o levo,
outra vez ele me guia.

Essa passagem de um sistema de captação e expressão do signo poético para outro será mediada agora pelas reflexões do crítico, nos anos 1990, através de aforismos, alguns de teor irônico e bem humorado, em que busca dissolver o enunciado muitas vezes pedante, cifrado, da teoria literária. Quando afirma, por exemplo: “Estilo de bêbado não tem dono”; ou, ainda: “Em Marília de Dirceu, a ovelha tem direito a balir e não é obrigada a se ajoelhar. A ovelha barroca reza, enquanto a neoclássica aproveita para comer a paisagem”. Nessas duas frases, temos admirável síntese dos famosos estilos de época.

Efetuada a passagem, Antonio Carlos Secchin agora está pronto para criar e aceitar Todos os ventos (2002). O jovem poeta, dos anos 1970 e 1980, de tom solene, grave, pessimista, desconfiado e muitas vezes sombrio, cede lugar de vez ao poeta amadurecido e solar, aberto a todos os ritmos e formas, do verso livre ao soneto, do verso medido ao polimétrico, do rimado ao branco, voltando-se para as coisas próximas, cotidianas, através de uma linguagem mais direta e coloquial: dessublimada, enfim. Como exemplo disso, cito o poema “Paisagem” (p.63), que assim se inicia: “Pela fresta um naco de verão de Copa/ataca o exército vermelho dos caquis./ Pedaço fino de sol/esgueirado entre esquadrias”. Ou quando, observa no mesmo bairro, a movimentação de Eros, em “Noturno”: “Os reis de Copa/ ostentam eretas/espadas mestras/em frente ao mar”.

O diálogo com a sociedade dos poetas mortos se faz presente, quase sempre de forma parodística, na seção inicial, “Artes” (Cruz e Souza, Álvares de Azevedo, Bilac, etc.). Ou quando ironiza os poetas contemporâneas e suas teorias, em “Colóquio” (“Em certo lugar do país,/se reúne a Academia do Poeta Infeliz”), ou mesmo a Indesejada no poema “Banquete”, em que “um garçom serve a morte sobre a mesa”. O tema, claro, é grave, mas aqui vem tratado com “fina fatia do nada”. Isto é, com fina dose de humor.

Contrapondo-se sabiamente a essa nota, entretanto, há também, em Todos os ventos, um conjunto de “dez sonetos da circunstância”, marcados por um lirismo de teor existencialmente denso, grave (à exceção de um soneto, “Poema para 2002”, em que o poeta registra, bem-humorado, a sua chegada aos 50 anos), quase todos voltados para o eu lírico fraturado física e subjetivamente pela passagem do tempo.

Mas será com Desdizer (2017) que Secchin alcançará decerto a plenitude de sua arte poética, ao dar continuidade à dicção dessublimizante de Todos os ventos.  Na verdade, vai radicalizá-la. (“Revelo a ti, leitor, o que eu anseio:/um abutre no cadáver do sublime”, como confessa no poema “Linha de fundo”, p.37). O autor busca aqui “desdizer” o que seria previsível, liricamente previsível, a fim de dizer mais. Chega mesmo a praticar uma espécie de antipoesia, à semelhança de Nicanor Parra, por exemplo. Cito, entre outras peças, “Uma prosa súbita” e sobretudo os “Dez sonetos desconcertados”.

Nesse volume, os temas são os mais variados. A começar pela autoironia, no poema de abertura (“O desavisado leitor/não espere muito de mim./O máximo, que mal consigo,/é chegar a Antonio Secchin”) e na parte final dos inéditos (“Sei apenas que escrever/nunca me apontou saída./Mas ainda assim é nisso/que apostei a minha vida.”), não faltando entre eles, poemas de cunho crítico-social, a exemplo de “Língua Negra, Rio 30 Graus”. Também comparece os de pura fabulação, como “Galo Gago”, primoroso poema que, em 2018, foi publicado à parte, pela editora Rocco, em uma caprichada edição, ilustrada pela artista Clara Gavilan, e que receberia o selo de “altamente recomendável” pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil:

Era um galo gago, por isso
a Noite não se despedia:
 ficava num gargalo,
à espera do canto que não surgia.     (p. 7)

Somente com a ajuda dos outros animais cantando é que o galo pôde, no final da narrativa, destravar também seu canto e fazer surgir a aurora, para alegria geral. Como todo (bom) livro infanto-juvenil, há nessa fábula uma moral subjacente, qual seja: as grandes soluções surgem quando ocorre solidariedade entre os seres:

A bicharada todinha
pôs-se também a cantar.
Era a voz do boi, da araponga,
junto ao som do sabiá.
Até o galo, quase sem gaguejar,
uniu-se àquela folia,
E di-disse que o melhor remédio
não era o susto, era a alegria.           (p.27)

Gostaria de terminar esta breve fala, reafirmando o que escrevi, em Fortaleza, 36 anos atrás, sobre a poesia “finíssima e equilibrada”, ao lado de uma “exemplar e rara consciência do fenômeno poético” do autor, aspectos esses que bem podemos perceber neste irretocável “Autorretrato” (p. 39), do livro Desdizer:

Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina.
Sabe que nasce do escuro
a poesia que o ilumina.

            ***

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[Palestra proferida na Casa de Leitura Dirce Cortes Riedel (UERJ), em 30/8/2019]

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Adriano Espínola é professor aposentado da UFC, poeta e ensaísta. Doutor pela UFRJ, com tese sobre Gregório de Matos (As artes de enganar. Topbooks, 2000). Autor da antologia poética Escritos ao Sol (Record, 2015). E-mail: adrespinola@gmail.com




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