Sobre heróis e tumbas



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Chicago, 30 e 31 de outubro, 01 de novembro de 2014

 

 

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Ouvi falar sobre o escritor polonês Witold Gombrowicz, há alguns anos, em um uma nota sobre sua amizade com o argentino Ernesto Sabato, cujos livros eu vinha lendo com muito interesse.

As Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, me fizeram escavar O Túnel, de Ernesto Sabato. O Escritor e seus Fantasmas, uma das tubulações d’O Túnel de Sabato, me conduziram até o exílio algo fortuito de Gombrowicz.

Sabato e Gombrowicz se tornaram amigos durante o longo período em que o polonês permaneceu em Buenos Aires.

Em meados de agosto de 1939, o então novato Witold Gombrowicz recebe um convite para participar de um congresso de escritores em Buenos Aires.

Quando o navio de Gombrowicz faz menção de se despedir da capital portenha, o dia 1º de setembro entra para a história: Hitler invade a Polônia; tem início a Segunda Guerra Mundial.

O pacto Ribbentrop-Molotov de não-agressão entre o Terceiro Reich, o estandarte da direita mundial, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o estandarte da esquerda mundial, aniquila a existência soberana da Polônia: a pátria de Gombrowicz é invadida a oeste, pelas tropas alemãs, e a leste, pelo Exército Vermelho.

Em uma charge publicada à época, Adolf Schicklgruber, também conhecido como o Führer Adolf Hitler, e Ióssif Vissariónovitch Djugachvíli, também conhecido como Stálin, o Guia Genial dos Povos, sorriem efusivamente um para o outro em meio à cerimônia de celebração do pacto de não-agressão que conta com a presença de Nicolau Maquiavel como testemunha ocular.

Antes de propor o enésimo brinde, Hitler assim sentencia entre os fios de seu bigode exíguo:

– Mas que bela piada! Ninguém conhece as nossas intenções, camarada Stálin!

Ao que Stálin, sob os fios de seu bigodão georgiano, só faz redarguir:

– É verdade, camarada Hitler, é verdade: ninguém conhece as nossas intenções – nem mesmo nós…

A charge nos deixa entrever o que há às costas de Hitler e Stálin.

Oculta, a mão direita do ditador alemão empunha uma adaga.

Oculta, a mão esquerda do ditador soviético segura um punhal.

1939.

1940.

22 de junho de 1941: Hitler lança mão da Operação Barbarossa para invadir a URSS. [A operação foi batizada com o sobrenome de Friedrich Barbarossa (1122-1190), imperador do Sacro Império Romano-Germânico, pelo fato de o mandatário-mor ter comandado abençoadas cruzadas contra os infiéis e incivilizados da Europa do Leste – a “Eurásia”, segundo a eugenia do Führer – que ameaçavam a cristandade com o jugo otomano.]

1942.

1943.

1944.

09 de maio de 1945: capitulação incondicional do Terceiro Reich diante dos Aliados.

Após a Segunda Guerra, os escombros da Polônia se veem sob os coturnos de Stálin.

Quando a Cortina de Ferro desaba sobre a Polônia, o exílio de Gombrowicz na Argentina torna-se ainda menos fortuito – e ainda mais longo.

Para tentar atenuar a pobreza terrível que o acossa em Buenos Aires, Gombrowicz torna-se colaborador do Kultura, um jornal de emigrados poloneses com sede em Paris. O escritor passa a publicar seus Diários.

Domingo, 26 de outubro. Estou acompanhando, com muita apreensão, a escalada da apuração dos votos de nossa eleição presidencial, no Brazilian Bowl, um simpático e pequenino restaurante brasileiro aqui em Chicago.

Como Dilma Rousseff começa a ultrapassar Aécio Neves na contagem dos votos, os canais de televisão brasileiros preferem mostrar as estatísticas das eleições para governador.

Como o ser paleolítico que lhes escreve sequer tem um celular aqui nos EUA – no Brasil, meu celular neolítico não poderia estar mais longe de saber o que é o acesso à internet –, não me resta nenhum canal de (contra)informação.

É quando me lembro de que há uma livraria promissora a pouco mais de 100 passos do Brazilian Bowl, a Unabridged Bookstore – em uma tradução livre, a Livraria Não Resumida, ou, em uma tradução tensa que ressoa a expectativa deste escritor, a Livraria Sem Resumos, uma livraria-barricada (supostamente) contrária aos livros (e aos escritores e aos leitores) da indústria cultural. Aqui estão os Diários do exílio de Gombrowicz.

Ao fim do ano de 1953, me deparo com um “speech, delivered to the nation at a banquet in the home of X”. Era uma terça-feira.

Apesar da dissolução da Polônia, apesar do gueto de Varsóvia, apesar de Auschwitz e Treblinka, apesar da Cortina de Ferro, apesar do exílio fortuitamente compulsório – ou pior, sobretudo por todas e cada uma dessas tragédias –, Gombrowicz encontra a ilha de si mesmo como o refúgio para a fundação da República das Letras.

Monday.

Me.

Tuesday.

Me.

Wednesday.

Me.

Thursday.

Me”.

Quando o eu assiste ao naufrágio do mundo, o narcisismo beira a mendicância.

No entanto, assim falou Witold Gombrowicz ao fim de 1953 – mesmo ano da morte de Stálin:

“As the holidays approach, you like to water the flower beds of memories with your tears and you like to sigh over lost native lands. Don’t be silly or maudlin! Learn how to raise the burden of your own destiny. Stop your nauseating lamentations over the lost beauties of Grójec, Piotrków, or Biłgoraj. Know that your homeland is neither Grójec nor Skierniewice, not even Poland itself, and blush with energy at the thought that your country is you! So what if you are not in Grodno, Kutno, or Jedlińsk. Has man ever lived anywhere else other than in himself? You are at home even if you were to find yourself in Argentina or Canada, because a homeland is not a blot on a map but the living essence of a man”.

(…)

“I say: Don’t be crybabies! Do not forget that as long as you lived in Poland, not one of you was concerned with Poland because it was an everyday event. Today, on the other hand, you no longer live in Poland so Poland resides more forcefully in you and it should be present in you as your deepest humanity, the polished work of generations. Know that wherever the eyes of a young man uncover his destiny in the eyes of a girl, a homeland is born. Whenever anger or admiration find themselves on your lips, whenever villainy is struck a blow, whenever the word of the wise man or Beethoven’s song ignites your soul leading it into unearthly spheres, whether it be Alaska or the equator, a homeland is born. On Saxon Square in Warsaw, in Cracow’s marketplace, you will be homeless vagrants, homebodies without a corner, wanderers, hopelessly crude moneymakers, if you allow pettiness to kill all the beauty within you”.

(…)

“Nevertheless, do not lose hope. In this battle for a deeper meaning in life and its beauty, you are not alone. Luckily you have Polish art at your side, which today has become something more important and more real than a homeless ministry and offices bereft of power. Art will teach you profundity. (…) Art will open your eyes to the keen beauty of your day, the magnitude of your task, and it will replace your provincial feelings with a new, world-size emotion, in scale with the horizons opening before you today”.

Bravo, Witold!

Bra-vô, Gombrowicz!

Que escritor já não imaginou para si o refúgio (idilicamente) redentor de uma vida inteiramente dedicada à beleza da escrita e à escrita do belo para muito além do cadafalso da história?

“Know that wherever the eyes of a young man uncover his destiny in the eyes of a girl, a homeland is born”.

Bravo, Gombrowicz!

Bra-vô, Witold!

Mas a Ironia, a mais sinuosa entre as amantes do Belo, a Ironia insinua, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, que a arte jamais pôde deixar de pisar sobre as costas dos escribas e escravos enquanto os escritores compunham seus hinos e manifestos a reboque de gordas coxas de frango – “De pé, ó vítimas da fome! De pé, famélicos da terra!”; a Ironia insinua, com seus olhos de Medusa, que a arte jamais pôde prescindir do que é bélico para escandir a ode ao belo.

Que seria dos grandes museus europeus sem as pilhagens (neo)coloniais?

Que seria dos grandes museus norte-americanos sem Wall Street?

Ainda não estive no Egito, mas já pude velar Ramsés II no Louvre.

Como a Esfinge teve seu nariz decepado?

Consta que o nariz da Esfinge teria sido destruído por uma bala de canhão dos mamelucos, a casta militar turco-egípcia que governou o Egito do século XIV até a invasão pelas tropas napoleônicas no dia 1º de julho de 1798. Quando Napoleão inicia a ocupação, os mamelucos se entrincheiram nas imediações das pirâmides – o belo dá guarida ao bélico. Como preparação para a batalha, a resistência turco-egípcia passa a calibrar seus canhões usando como alvos a Esfinge e as pirâmides. (Consta que o Exército francês também pode ter contribuído para transformar a Esfinge em um monumento cubista.)

Vocês querem ver os deuses gregos a encimar o Parthenon? Vocês querem vivenciar o pathos encarnado pela estátua de Dionísio? Antes de subirem até a Acrópole em Atenas, não se esqueçam de comprar tickets do British Museum, do Louvre e do Pergamon Museum. Antiguidade grega, contemporaneidade anglo-franco-alemã.

 

O feio está para o belo, assim como os dutos de esgoto estão para os bidês de porcelana

O feio está para o belo, assim como o corvo rasteiro – cuááá, cuááá! –

[está para o sobrevoo olímpico do condor

O feio está para o belo, assim como o rancor está para o reencontro

O feio está para o belo, assim como a dúvida está para a fé

O feio está para o belo, assim como a inveja está para a admiração

O feio está para o belo, assim como o pudor está para o desejo

O feio está para o belo, assim como o não está para o sim

O feio está para o belo, assim como o sim, senhor está para o não

O feio está para o belo, assim como o nunca está para o sempre

O feio está para o belo, assim como a morte está para o eterno

O feio está para o belo, assim como o burguês está para o artista

O feio está para o belo, assim como o bastardo está para o pai

O feio está para o belo, assim como o órfão está para a mãe

O feio está para o belo, assim como o vapor está para a neve

O feio está para o belo, assim como o escravo está para o senhor

O feio está para o belo, assim como o senhor está para o escravo

O feio está para o belo, assim como o outono está para a fratura de suas folhas

O feio está para o belo, assim como o oásis está para a sede

O feio está para o belo, assim como a sede está para o oásis

O feio está para o belo, assim como o quase está para o feito

O feio está para o belo, assim como o feito está para o quase

O feio está para o belo, assim como Sísifo está para Pandora

O feio está para o belo, assim como Judas está para Cristo

O feio está para o belo, assim como Stálin está para Outubro

O feio está para o belo, assim como o paredón está para o Che

O feio está para o belo, assim como a guerra está para a paz

O feio está para o belo, assim como a tocaia está para a trégua

O feio está para o belo, assim como Bentinho está para Capitu

O feio está para o belo, assim como o sertão está para Guimarães

O feio está para o belo, assim como a correnteza está para a travessia

O feio está para o belo, assim como a CIA está para a ONU

O feio está para o belo, assim como Meursault está para Maria Cardona

O feio está para o belo, assim como o medo está para a fronteira

O feio está para o belo, assim como o hímen está para a fronteira

O feio está para o belo, assim como o crânio está para Hamlet

O feio está para o belo, assim como o avarento está para Molière

O feio está para o belo, assim como a formiga está para a cigarra

O feio está para o belo, assim como o Pai Grandet está para Eugênia

O feio está para o belo, assim como o caos está para o cosmos

O feio está para o belo, assim como o ateu está para Deus

O feio está para o belo, assim como o clero está para o ateu

O feio está para o belo, assim como a caserna está para o socialismo

O feio está para o belo, assim como a realidade está para a ficção

O feio está para o belo, assim como o carrasco está para a vigília

O feio está para o belo, assim como Guernica está para Picasso

O feio está para o belo, assim como o trágico está para o artístico

O feio está para o belo, assim como o amor está para a partida

O feio está para o belo, assim como o não dito está para o dito

O feio está para o belo, assim como o intangível está para a memória

O feio está para o belo, assim como o conchavo está para o mérito

O feio está para o belo, assim como a hierarquia está para o talento

O feio está para o belo, assim como o eunuco está para a nudez

O feio está para o belo, assim como o berço está para a maca

O feio está para o belo, assim como a forca está para o cordão umbilical

O feio está para o belo, assim como Brutus está para César

O feio está para o belo, assim como César está para Cleópatra

O feio está para o belo, assim como Cleópatra está para a serpente

O feio está para o belo, assim como a serpente está para Eva

O feio está para o belo, assim como Eva está para Abel

O feio está para o belo, assim como Caim está para Abel

O feio está para o belo, assim como Melancolia está para Dançando no Escuro

O feio está para o belo, assim como Woody Allen está para Ingmar Bergman

O feio está para o belo, assim como Vladimir e Estragon estão para Godot

O feio está para o belo, assim como o processo está para Josef K.

O feio está para o belo, assim como o homem do subsolo está para o perdão

O feio está para o belo, assim como o tiro está para a misericórdia

O feio está para o belo, assim como o dogma está para a dúvida

O feio está para o belo, assim como Brás Cubas está para Eugênia

O feio está para o belo, assim como o enfado está para o ímpeto

O feio está para o belo, assim como o Direito está para a justiça

O feio está para o belo, assim como Ivan Karamázov está para Aliócha

O feio está para o belo, assim como Raskólnikov está para Sônia Marmieládova

O feio está para o belo, assim como Walter Dortlicht está para Dona Arsênia

O feio está para o belo, assim como o Capitão Nascimento está para Sandro Nascimento

O feio está para o belo, assim como São Paulo está para Moscou

O feio está para o belo, assim como São Paulo está para Chicago

O feio está para o belo, assim como a meia verdade está para a verdade e meia

O feio está para o belo, assim como o escritório está para o ateliê

O feio está para o belo, assim como o Excel está para o Word

O feio está para o belo, assim como Talião está para Cristo

O feio está para o belo, assim como o Sermão da Estepe está para o Sermão da Montanha

O feio está para o belo, assim como a depressão está para o cume

O feio está para o belo, assim como a depressão está para o despertar

O feio está para o belo, assim como a escassez está para a partilha

O feio está para o belo, assim como o matrimônio está para o meretrício

O feio está para o belo, assim como o grito está para o sussurro

O feio está para o belo, assim como Edvard Münch está para Tchaikóvski

O feio está para o belo, assim como a surdez está para Beethoven

O feio está para o belo, assim como a orelha está para Van Gogh

O feio está para o belo, assim como a epilepsia está para Dostoiévski

O feio está para o belo, assim como Atlântida está para Utópolis

O feio está para o belo, assim como o suicídio está para Vargas

O feio está para o belo, assim como o suicida está para o mártir

O feio está para o belo, assim como a cruz está para Cristo

O feio está para o belo, assim como o palanque está para o púlpito

O feio está para o belo, assim como o cansaço está para a marcha

O feio está para o belo, assim como a revolução está para si mesma

O feio está para o belo, assim como Maquiavel está para Dante

O feio está para o belo, assim como Mussolini está para Gramsci

O feio está para o belo, assim como a Cracolândia está para a Sala São Paulo

O feio está para o belo, assim como Nietzsche está para o eterno

O feio está para o belo, assim como o túmulo está para a capela

O feio está para o belo, assim como o epitáfio está para a homenagem

O feio está para o belo, assim como a apologia está para a ironia

O feio está para o belo, assim como a indústria cultural está para o conteúdo de verdade

O feio está para o belo, assim como a indústria cultural está para a verdade da forma

O feio está para o belo, assim como Woody Allen está para Dostoiévski

O feio está para o belo, assim como Meia-Noite em Paris está para Blue Jasmine

O feio está para o belo, assim como Lars Von Trier está para si mesmo

O feio está para o belo, assim como o Pacto de Varsóvia está para o socialismo

O feio está para o belo, assim como o Muro está para Berlim

O feio está para o belo, assim como o mendigo está para o yuppie

O feio está para o belo, assim como o machado do carrasco está para a Mão Invisível

O feio está para o belo, assim como a máfia está para o liberalismo

O feio está para o belo, assim como Rothschild está para um Silva

O feio está para o belo, assim como Mefistófeles está para Fausto

O feio está para o belo, assim como Fausto está para Gretchen

O feio está para o belo, assim como qualquer cidade está para Florença

O feio está para o belo, assim como qualquer cidade está para Budapeste

O feio está para o belo, assim como qualquer cidade está para Praga

O feio está para o belo, assim como qualquer ruína está para Machu Picchu

O feio está para o belo, assim como Lima está para Cusco

O feio está para o belo, assim como Varsóvia está para Cracóvia

O feio está para o belo, assim como o KGB está para o Kremlin

O feio está para o belo, assim como a Fortaleza de Pedro e Paulo está para o Hermitage

O feio está para o belo, assim como o filofascismo está para Knut Hamsum

O feio está para o belo, assim como o coletor de impostos está para o nômade

O feio está para o belo, assim como o jejum está para o Corinthians

O feio está para o belo, assim como Wilson Mano está para Neto

O feio está para o belo, assim como Gralak está para Marcelinho Carioca

O feio está para o belo, assim como Leão está para o Dr. Sócrates

O feio está para o belo, assim como a Emenda Dante de Oliveira está para

……………………………………………………………………………..[a Democracia Corintiana

O feio está para o belo, assim como Coelho está para Tupãzinho

O feio está para o belo, assim como Dualib está para a Gaviões

O feio está para o belo, assim como o PT está para si mesmo

O feio está para o belo, assim como o slogan está para o verso

O feio está para o belo, assim como a lápide está para o verso

O feio está para o belo, assim como a veia está para a artéria

O feio está para o belo, assim como a uretra está para o clitóris

O feio está para o belo, assim como a urina está para o sêmen

O feio está para o belo, assim como a tradição está para a contradição

O feio está para o belo, assim como o caxias está para o malandro

O feio está para o belo, assim como o sermão está para o samba

O feio está para o belo, assim como São Paulo está para as cariocas

O feio está para o belo, assim como o calcanhar está para Aquiles

O feio está para o belo, assim como os olhos estão para Édipo

O feio está para o belo, assim como a lanterna à luz do dia está para Diógenes

…………………………………………………………………………….[em busca de um amigo

O feio está para o belo, assim como a resignação está para a dialética

O feio está para o belo, assim como a ruptura está para a promessa

O feio está para o belo, assim como os escombros estão para a memória

O feio está para o belo, assim como a cicatriz está para a memória

O feio está para o belo, assim como a morte está para a reencarnação

O feio está para o belo, assim como a morte está para o reencontro

O feio está para o belo, assim como a retaliação está para a outra face

O feio está para o belo, assim como o silêncio está para o piano

O feio está para o belo, assim como a Sibéria está para Dostoiévski

O feio está para o belo, assim como o contrato está para o romance

O feio está para o belo, assim como o decreto está para o aforismo

O feio está para o belo, assim como Engels está para Marx

O feio está para o belo, assim como o charco está para o lago

O feio está para o belo, assim como o exílio está para Gombrowicz

O feio está para o belo, assim como a Polônia está para os emigrados

O feio está para o belo, assim como a ficção está para a realidade

O feio está para o belo, assim como o artifício está para a arte

O feio está para o belo, assim como Hollywood está para a República das Letras

O feio está para o belo, assim como o ético está para o estético

 

Gombrowicz se apropria do belo substantivo alemão Heimweh – a dor da pátria e a dor do lar tomados de assalto, a dor do exilado –, substantivo cuja agonia, em inglês, desagua em Homesick, para transformar a saudade em sentinela de sua etérea República das Letras, seu refúgio, o pedestal (e o cárcere) de sua esperança.

O escritor polonês, falecido em 1969, não viveu para acompanhar a síntese (tensa e contingente) entre o ético e o estético realizada por seu amigo Ernesto Sabato.

Quando a redemocratização argentina começa a se haver com as atrocidades cometidas durante seu último período ditatorial (1976-1983), Sabato passa a presidir a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP). O resultado das investigações da CONADEP ficou conhecido como o Relatório Sabato, por meio do qual o beletrista militante da República das Letras informou aos argentinos e ao mundo a identidade de cada uma das 30 mil pessoas que a economia da repressão liquidara em seus 340 campos de concentração.

O escritor polonês, em 1961, pôde ler Sobre héroes y tumbas, obra-prima de Sabato. Ainda assim, para narrar as afinidades eletivas entre o sorriso e o vinco, o êxtase e o torpor, a justiça e a masmorra, o voluntarismo revolucionário e a pulsão de morte, o martírio e a cova rasa, Gombrowicz precisaria reconciliar a verdade da forma – o pedestal (e o cárcere) do esteta – com o conteúdo de verdade próprio ao memorial das vítimas e ao altar dos sobreviventes. (A culpa umbilical que os sobreviventes sentem por terem sobrevivido.) Só assim Gombrowicz conseguiria narrar que a República das Letras está assentada sobre heróis e tumbas.

 

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 




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