Saturno devorando a um de seus filhos


 

Chicago, 09 e 10 de outubro de 2014

 

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São Paulo. Durante uma aula de Filosofia para o 1º semestre do curso de Direito da Unicity, em uma quinta-feira à noite de maio de 2013:

– (…) Em suma, pessoal, o filósofo inglês Thomas Hobbes concebe o estado de natureza como uma situação eminentemente apocalíptica. Homo homini lupus est, o homem é o lobo do homem: a natureza torpe do homem se revelaria pelo rapaz que, em sua própria casa, esconde o dinheiro no recanto mais ermo do criado-mudo prevendo possíveis investidas dos pais e dos irmãos; a abjeção humana viria à tona com o noivo que, antes de afiançar à noiva o matrimônio, declara seu amor pelas cláusulas do contrato pré-nupcial; a crueza dos instintos residiria na amizade que, ao empenhar a palavra, contabiliza a confiança com uma nota promissória. Imaginemos, no entanto, que a decrepitude da civilização, para Hobbes, seria preferível ao estado de natureza. Imaginemos um tempo mítico, um tempo fora da história. Os homens vivíamos em florestas e bosques, lutávamos em savanas e clareiras e nos refugiávamos em cavernas e troncos. Cada um se volta apenas para si, o graveto frágil da sobrevivência pode ser partido a qualquer momento. Basta que o fraco se depare com o forte, que o forte seja acossado pelo mais forte, que o mais forte se veja cercado pelo bando dos fracos que, após a vitória, devoram uns aos outros para ver quem fica com a carniça – enquanto isso, os mais fracos entre os fracos saqueiam e roem os vestígios dos cadáveres. Não há qualquer segurança, não há o menor prenúncio de estabilidade. A paz é reduzida ao silêncio que antecede o latrocínio. O caos não se deixa quantificar. Eis a bellum omnia omnes, a guerra de todos contra todos: o filho arremete contra o útero da mãe, o pai viola a filha, eles a sodomizam, elas o traem, a contingência, o cálculo comezinho e a contingência do cálculo comezinho são as sombras do único totem que consegue pairar incólume sobre todas as paixões: o egoísmo. O mais encarniçado, famélico e visceral egoísmo. E é só no limite mais putre e fétido do charco de si mesmos que, para Hobbes, os homens conseguimos relegar nossas pistolas, punhais e pedras. Para que todos e cada um de nós continuemos a (re)produzir o egoísmo, é preciso que os egoístas estejamos vivos. Assim, por uma fresta bastante exígua, o ímpeto da sociabilidade se insinua entre os homens e seus escombros. Diante do caos que ameça aniquilar o próprio caos, os homens, em uma primeira e temerária reunião – reunião repleta da desconfiança dos soslaios e das unhas e dos punhos prontos ao embate –, os homens decidem que, para que todos e cada um continuemos a ganhar, é preciso que, ao mesmo tempo e em todos lugares, todos e cada um tenhamos que perder. O descontentamento é geral, os mais fortes ameaçam abandonar o arremedo de assembléia, mas a lembrança eriçada das hordas e das gangues os fazem reconsiderar. É assim que, totalmente a contragosto – como o pior dos males, mas, ainda assim, como o mal menor –, o contrato social é celebrado. Um soberano máximo e inquestionável, a reencarnação de César, o retorno de Alexandre, o Grande, é coroado. Todos, absolutamente todos, devemos obediência irrestrita à vontade do Führer. Eu sou aquele que sou, eis o Leviatã: o Todo-Poderoso, Saturno devorando a um de seus filhos, o Senhor do dilúvio, aquele que delega as chicotadas, aquele que escreve torto por linhas certas e, do gabinete de seu trono, chancela o navio negreiro e o holocausto. Não à toa a imagem do Leviatã na capa do livro homônimo de Thomas Hobbes, quando vista de perto, revela, sob o gigantismo do Guia Genial dos Povos, os rostos minúsculos de seus súditos, o ego e o egoísmo de cada um dos partícipes do mítico contrato social. O líder-mor é a somatória do caos que o corou, o Duce é a resultante vetorial dos auspícios de nossa miséria. O cetro do monarca a tudo chancela. Que fazer? Curvar-se, aceitar sem dar um pio. Com o Sermão da Montanha pronunciado pelo Onipotente, a autofagia da estepe sela seu armistício. Em face do magnânimo, todos aceitamos perder, ao mesmo tempo e em todos os lugares, para que todos possamos ganhar. Eis, então, o único mister a limitar a vontade de poder do governante: a paz. A única concessão do egoísmo à sociabilidade é a premissa da paz. A paz que bruxuleia como a luz da prece; a paz tênue como a cerca e a fronteira; a paz entre os escombros. O generalíssimo deve manter a paz – para isso ele foi coroado. Se o caos não for arregimentado; se, ainda uma vez, o estado de natureza se espraiar para além dos dutos de esgoto e da hipocrisia das saudações, os homens têm o direito de se rebelar contra o Führer e destronar o Leviatã. Esta talvez seja a única concessão de Thomas Hobbes à limitação do poder absoluto do monarca: se o rei não puder garantir a paz – condição precípua a lhe alicerçar o trono –, a coroa, o símbolo da Bastilha, se tornará o primeiro bem a ser pilhado pela guerra rediviva de todos contra todos.

Silêncio hipnótico dos estudantes.

Silêncio entreolhado.

Todos parecemos auscultar os uivos da selva hobbesiana.

Súbito, para este professor confluem os olhares há pouco centrífugas:

– Alguma dúvida, pessoal? Alguém tem alguma pergunta?

Silêncio entreolhado dos estudantes – e deste professor.

Súbito, lá do fundo, no canto esquerdo da sala, uma mão se levanta.

(Havia como que uma quarentena de carteiras a separar Diogo dos demais.)

– Pois não, Diogo, pode falar.

– Professor, fiquei aqui com uma dúvida…

– Sobre o quê?

– O senhor sabe me dizer… – [“Você, Diogo, me chama por você, por favor”] –, você sabe me dizer se o Hobbes, alguma vez na vida, conheceu o que é a guerra civil?

Os olhares, como uma onda compacta, se voltam para Diogo e, então, refluem para mim.

– Bem, Diogo, o século XVII inglês foi extremamente turbulento, a Inglaterra passou por um violento processo de guerra civil que a historiografia tende a interpretar como a antecipação em um século do turbilhão que passaria a varrer a Europa continental a partir da Revolução Francesa, em 1789.

– Sim, professor, eu entendo, o sen…, quer dizer, você já havia dito isso pra gente. Mas o que eu quero saber de verdade é se o Hobbes conhece na própria pele o que é a guerra civil.

– Não, Diogo, creio que não.

– Mas, professor, então você vai me desculpar…

– Por quê?

– Ah, professor, se o camarada não viveu o que é a guerra civil, tudo isso aí não passa de pura punhetagem…

Os risos – e a minha curiosidade – se voltam para Diogo ainda uma vez:

– Bom, Diogo, mas você fala como se conhecesse, de fato, o que é a guerra civil. Você fala como se nada do que o Hobbes trouxe à tona fosse crível ou mesmo factível. Como é que você pode afirmar tudo isso?

– Professor, você é escritor, um mês atrás eu estive no lançamento d’O Evangelho segundo Talião. Assim, não tô entendendo muito o teu espanto, não. Você não acha que, para se contar uma estória com propriedade, o camarada precisa saber do que tá falando?

– Por um lado, sim. Mas, veja só: há um assassino no meu livro, Diogo, e eu jamais matei uma pessoa. E mais: enquanto Hobbes narrava o estado de natureza a todos vocês, ninguém aqui sequer piscou. Todos ficamos magnetizados. Ora, Diogo (eu modulo a voz de forma pitoresca), não se esqueça de que a simulação bem pode fazer as vezes da ação (muitas modulam o olhar de forma maliciosa).

– Xiii, professor, essa aí é velha: já sei, já sei que o Fernando Pessoa falou sobre o poeta fingidor, já sei de tudo isso, essa aí é mais velha do que andar pra trás e, nesse caso, não dá, não é possível: só o camarada que esteve na guerra civil é que sabe o que é a guerra civil. A rapaziada ficou vidrada com isso tudo aí, professor, porque aqui ninguém sabe de nada. E digo mais: esse estado de natureza do Hobbes, na verdade, até me pareceu uma grande brincadeira de criança…

Os estudantes esbugalham os olhos de estupefação – e curiosidade. Meu olhar em riste aceita o desafio:

– Então, Diogo, só podemos deduzir que você já esteve na guerra civil, certo?

Diogo bate continência antes de responder com a mão direita junto à têmpora:

– Sim, senhor.

Uma gargalhada vindo do canto direito da sala ressoa como um tiro. Diogo levanta o pescoço sobre a superfície dos rostos como o periscópio de um submarino. Ele então engatilha o olhar e, imediatamente, aquilata o silêncio geral como se estivesse munido com o cetro do Leviatã. Sem mais, Diogo continua:

– Sim, professor, como não? Eu estive no Haiti.

As sobrancelhas e as testas arqueadas como que empurram a minha pergunta:

– Como assim, Diogo? Que que você foi fazer lá?

– Ué, o Brasil não fez parte da missão de paz? Eu estive lá com o exército, professor, me alistei e zarpei pra lá.

– Mas como foi isso, Diogo, conta pra gente?

Agora, o professor se senta sobre a mesa e delega a aula ao aluno. Todos se voltam para a clareira de Diogo como a tropa diante do comandante-em-chefe.

– Bom, gente – Diogo pigarreia, apruma os óculos e a gola da camisa –, que que vocês queriam? Eu vim lá da periferia, rapaziada, na época eu mal sabia desse lance do ProUni, tinha acabado o terceiro ano do Ensino Médio, não sabia o que fazer. Tava ganhando uma merreca de office boy, daí uns trutas lá da vila vieram falar que o exército tava oferecendo 500 contos por dia pra quem se alistasse e fosse servir lá no Haiti. Porra, galera, 500 contos? Onde é que eu ia ganhar isso por dia, professor? Mais um pouco e já batia no que eu tirava num mês, vê se pode?! Cheguei pro meu pai, falei que não tinha jeito, que eu ia pra lá – caramba, gente, era mó aventura, nunca tinha saído daquele bairro de merda, e tinha o lance humanitário, aquele terremoto no Haiti, a guerra civil, eu sentia que ia poder ajudar. E ia ajudar a minha família também, meu pai já tava aposentado por invalidez, baita acidente no trampo, daí pensa num salarinho ridículo, professor, pensa só! Claro, minha mãe não queria, minha irmã não queria, ficavam chorando o dia inteiro, que eu ia ser baleado, que ia ser esfaqueado, que eu ia morrer! (Diogo dá um baita de um murro contra a carteira.) Antes eu tivesse morrido, rapaziada, antes eu tivesse morrido! (De fininho, à direita do meu soslaio, alguns alunos das fileiras mais à frente começam a ir embora…) Ia ficar lá 6 meses – 180 dias, 3320 horas. O exército depositou metade da grana um dia antes do embarque, minha família ficou bem, mas todo mundo soluçava. Ah, pessoal, não adianta olhar pra mim assim, não! Porra, cês já manejaram uma metradalhadora? Alguém aqui já vestiu uma farda? Tinha mina ali no bairro que sempre virava as costas pra mim, não dava nem trela. Passei lá fardado, de boina e tudo, e era só tititi, cócócó. Ah, até peço desculpa pras amigas aqui da sala, de boa, mas na semana antes de ir eu não quis nem saber, passei o cerol lá na vila, não tive nem dó. E às vezes ia no couro mesmo – se eu morresse depois, pelo menos não ia ter que me matar pra pagar pensão! Antes de ir – me lembro como se fosse agora, professor –, meu pai foi até o meu quarto. Meu pai sempre foi de boa, reservadão, e ele não tava conseguindo mais se levantar da poltrona, uma peça da máquina na linha de produção caiu nas costas dele, zoou tudo, mas ele quis falar comigo. Poxa, fazia mó tempão que eu não falava assim com o meu pai, acho que desde quando eu tinha uns 12, 13 anos, na época ele gostava de ler uns livros junto comigo e com a minha irmã, uns livros que ele pegava lá no sindicato. Depois eu fui crescendo e acabei me afastando um pouco do velho, é foda, depois é que a gente vê, mas naquele dia ele foi lá no quarto, era já de madrugada, acho que foi tarde pra minha mãe não ver. O pai foi lá, ele veio me perguntar se eu tinha certeza do que tava fazendo, tenho sim, pai, tenho muita, então ele até disse que tava orgulhoso de mim, que eu ia passar por poucas e boas, que o pai dele, também do sindicato, tinha sido torturado na época da ditadura, mas que aquilo não era nada, que eu podia ver coisa pior, que eu podia viver coisa pior. (Diogo repousa a testa sobre a palma da mão esquerda; súbito, num rompante que assusta a todos e faz com que maré de alunos retroceda algumas carteiras, ele volta a falar cada vez mais ensimesmado.) Por que que a gente não ouve o pai da gente? Eu fui. Estado de natureza, professor? Estado de natureza?! Que que foi aquilo, meu Deus?! Nego passa beirando a Marginal, vem o cheiro do Tietê e nego tampa o nariz e já se acostuma. Eu quero ver ser sufocado pelo cheiro dos cadáveres! Taí, primeira missão: dirigir tratorzinho pra recolher corpos nas ruas. Deus que tá no céu, professor, Deus que tá no céu, rapaziada! E é vira-lata magrela que vem roer morto, não pode, tem que tirar os corpos dali, se não tirar vem epidemia, mas não adianta, a cachorrada vem, as pessoas vêm também, daí é tiro pra cima, rajada, tiro de pistola, no começo, eu não vou negar, me sentia o Rambo ali, puta armona pesada, mas era rato, era barata, e por que que a gente começa a querer fechar os olhos dos mortos, gente? Por quê? No começo, que se foda, você quer se livrar daquilo ali, mas comecei a sonhar com aquelas pessoas. Minha Nossa Senhora! E que que são essas ruas rachadas pelo terremoto? Professor, os prédios e as casas pareciam peças de Lego, o calor por lá era de rachar, vinha criança falar com a gente, no começo dava dó, depois vinha um bando pra tentar roubar alguma coisa, pra tentar pegar a faca do cinto, eles sabiam que tinha soldado que ficava com dó, eu vi criança enxotando ratazana pra pegar resto de comida do nosso acampamento, eu vi ratazanas cercando crianças, tive que correr pra lá pra impedir aquele horror, e quando tem ronda noturna, então? Gasolina é ouro por ali, galera! Nego vende gasolina pra quem tem algum veículo, daí foge. A gente passava por lá, tinha binóculo de visão noturna, mas vinha tiro na direção da patrulha. Como que você responde a um tiro, professor? Só tira pára tiro, pessoal, ali não tem papinho de concórdia, não, quem faz a paz é a bala. E é coisa de doido, você nem nota – hoje é que eu vejo isso com o Dr. Sérgio, meu psiquiatra é ponta firme –, no começo você nem nota, no começo você tem muita dó, a gente chega de helicóptero em uma missão, soldado mais velho já começa a atirar pro alto pra espantar aquela manada querendo pular pra pegar saco de arroz e feijão, pacote de bolacha, pacote de sal, garrafa d’água. Você pede pro cara parar de atirar, você manda o cara parar de atirar, daí o outro te manda tomar no cu, que você vai ver, calouro, você vai ver o que é isso aqui! Isso aqui é tudo bicho! Professor, meu pai uma vez me falou sobre a revolta dos escravos no Haiti, que eles cantaram a Marselhesa da liberdade pras tropas imperialistas do Napoleão, que eles botaram a liberdade na parede, então eu fui pra lá achando que ia encontrar um povo de luta, um povo guerreiro, mas não dá, gente, não dá pra falar com zumbido de mosca pra todo lado, se você bobear vem mosca botar larva na tua ferida, você fica pingando de suor o dia inteiro, tem dia que você fica ali, parado, no começo é um tédio, você quer ação, e depois, quando entende o que é tudo aquilo, meu Deus!, você já não pode fugir, sargento te chama de marica, mexe com o teu brio, à noite na vigia é grito, é silvo, é uivo, atira primeiro, pergunta depois, um dia eu não aguentei, tava andando ali perto da cancela um velhinho curvado, um velhinho com um cajado, até hoje não sei se era ele que puxava o bode ou se era o bode que puxava ele, o bicho de repente parou, ele não aguentava mais, tombou de joelhos, a camisa toda esfarrapada, poxa, e eu tava lá com o meu cantil, o que que você faria, professor? O que que vocês fariam? Fui lá dar água pra ele, claro, mas aí a cancela ficou desguarnecida, nego levou pacote de medicamento que não podia sumir dali, tomei uma baita duma chamada, mas aí tem hora que você não aguenta, eu aceito a hierarquia, professor, já sei, já entendi, tudo bem, mas o que que o senhor queria que eu fizesse? A gente não veio pra cá como missão de paz? A gente não tá aqui pra manter a ordem? O senhor queria que eu ficasse vendo aquele homem agonizar na minha frente? Até hoje eu sinto o tapa na cara que eu tomei do sargento, galera, puta que o pariu!, tava pra puxar a arma do coldre – Diogo põe a mão na cintura e tem aluno que quase tomba pra trás com a carteira –, a soldadela veio separar, mas que catarrada que eu dei naquele filho da puta daquele sargento, pegamos solitária, professor, de que que adiantou? O sargento foi afastado? O sargento foi afastado. Eu quis embora? Eu quis embora. E quem ia devolver o dinheiro pra porra do exército? E minha família? E aquela gente morrendo de fome, e aquele caos? Porra, eu tinha uma missão ali, caralho! Sempre achei que um soldado tivesse que lutar. Hobbes? Estado de natureza? Vá tomar banho! Fica ali na solitária, fica! Você já tá no pior lugar do mundo. Daí nego acha pra você o pior lugar no pior inferno do mundo. Aquilo é um forno! Mas às vezes eu pensava: cada dia aqui é mais um dia de sobrevivência, aqui ninguém me procura, aqui não tem tiroteio, mas e se me esquecerem aqui, e se matarem o vigia e me esquecerem aqui? É quando você começa a sentir saudade da guerra. É quando você começa a sentir vontade da guerra. Putz, uma vez eu vi uma imagem lá no Discovery, faz tempo, os caras filmaram a troca da pele da cobra, eles vão filmando, na verdade, porque demora pra cacete, mas depois eles colocam em câmera rápida, daí você vê, parece que uma cobra tá saindo de dentro da outra, parece um outro ovo da serpente, e é isso, é bem isso que acontece com a gente lá, você não percebe, você vai percebendo, mas não dá pra conter, você vai se vomitando, vai saindo uma coisa fria de você, uma casca grossa, você começa a ficar indiferente, o que antes te comovia agora você espanta e enxota, quem é que tá com a arma na mão, hein? Ué, o Hobbes não disse que não existe poder sem espada? O Hobbes não disse que não vá vácuo no poder? Pois então, professor, eu me senti como o Stallone ali, eu me lembro de um filme, o cara só ficava falando “I am the law”, “I am the law”, e lá, em cada gueto, em cada chupeta daquelas putas cheias de sífilis, em cada estupro que eu via e já não podia conter – nego fingia estuprar (e até mesmo estuprava) cadáver, daí quando você ia ver, era emboscada, vinham te roubar, vinham te matar –, em cada briga, em tudo o que eu devia conter, em tudo o que eu já não fazia, eu sou a lei. Daí eu entendi: deixa o circo pegar o fogo. Enquanto for só o circo, enquanto o fogo não se alastrar, foda-se. Repórter não fotografa fogo morto, gente, repórter só fotografa o que dá capa e manchete. É aí que eu digo pra vocês: fiquei sabendo de um fotógrafo, não sei se era da National Geographic, que tirou uma foto de uma menininha africana, o buchinho cheio de vermes, já tombada de fome. Às costas dela, um urubu enorme, com o bico quase salivando e as asas bem abertas, só tava esperando a hora de começar a esmiuçar aquela carcacinha de gente. Pois então: o fotógrafo foi lá, tirou a foto e ganhou uma caralhada de prêmios. Depois, olha que dó…, ele começou a ficar com a consciência pesada, começou a ficar mal, ai, que dó dele!, o bicho renegou os prêmios, doou o dinheiro, entrou em depressão… e se matou! Chegou a se matar, vê se pode?! E chego a ler de nego que nunca foi pra guerra, de nego que só fica no gabinete acarpetado, que o fotógrafo resgatou o que falta de humanidade pra todos nós! Ah, que baita hipocrisia! Esse fotógrafo não ficou nem um mês por lá, é claro que ele sentiu dó. E quem não sentiria? Você, você e você! Vocês não sentiriam? (Restam 20 dos 50 alunos na sala.) Todo mundo sente pena à distância, professor, mas ali, no campo minado, ali, nas ruas rachadas, no meio dos entullhos, ali aquela criancinha é mais um cadáver. E é aí que vem o lance, é aí que vem a peninha de gabinete: porque ali, na guerra, o que impera é a triagem, rapaziada, a triagem, professor! Quem é que você vai salvar? Quem, me diga, quem?! Cê vai salvar o morto-vivo? Cê vai salvar velho? Não! Cê vai primeiro se salvar. Pra você salvar alguém, ué?, primeiro você precisa se salvar. Mas depois, quando você vê que você tá bem, quando cê vê que não tá tão mal, cê não vai salvar quem quer ser salvo; cê vai salvar quem pode ser salvo. Não tem vaga pra todo mundo no comboio, professor, cê fica ali na caçamba da caminhonete, vai contando nego que sobe, é um, é dois, é 20, passou da conta aí a ordem é pra distribuir coronhada, e cê dá a valer, no começo cê dá contrariado, mas depois, puta que o pariu, Deus que me perdoe, depois você dá coronhada com gosto, e tem mulher, e tem criança, mas fica dando coronhada pra lá e pra cá, vixe, até que uma hora nego te pega pela perna, nego te arrasta, aí te lincham – foi assim, desse jeito, precisamente assim que nós perdemos um colega lá em Porto-Príncipe. É o Carcará, é o Carcará: pega, mata e come! Aliás, o Carcará ainda é fraquinho: pega, pisoteia, mata e come! Tem gente aqui na sala que tem insônia, né? Ah, pobrezinhos! Cês querem um leitinho? Querem um biscoitinho? Insônia é vingança, rapaziada! Insônia é raiva, insônia é covardia. E ali no Haiti todo mundo se parece, aí chega uma hora, vai saber?, você acaba esquecendo a arma destravada… Esquecendo… Imagina só: a patrulha tá passando. É claro que não tem eletricidade, você tá achando que isso aqui é condomínio? Você tá achando que aqui tem gambearra da perifa? Quem faz a luz é a gente, a gente é que cospe a lanterna, aquele facho de luz pega tudo desprevenido, é rato, é escorpião, é puta que sai correndo pelada – você atira pra cima só pra vê ela gritar! –, é acerto de conta, é pancadaria, é choro, é ranger de dente. E vem tiro contra a gente? Ah, se vier, rá-rá-rá-rá-rá, se vier é bala, é chumbo, ninguém aqui sabe o que é ver e ouvir uma bala rasgando uma parede – parece faca na manteiga, parece folha de papel. Você é um merda, você sabe que você ali é um merda, mas aquela porra daquela arma é que dá o berro ali. Chorar todo mundo chora. Todo mundo. Aí é que você entende por que quem chora mais pode menos. O choro te desconcentra, você se desvia da tua sombra, daí vem nego te cortar a garganta pra pegar o que for: no mercado da guerra, até botão de camisa vale ouro. Mulher é o que vale mais, aí você também entende – me desculpa aí, Aninha (Ana Paula, a única moça ainda na sala) –, aí você entende o que quer dizer chave de buceta. É a chave que abre tudo. É gozado, gente, é gozado! Nego tá passando fome, nego não consegue nem andar, nego fica quieto, feito bicho-preguiça, pra economizar a energia que já não tem, mas quando nego tem a chance de dar uma bimbada, quando nego tem a chance de dar uma catracada, nego não tem dúvida, tira força não sei de onde, arregala os olhos que nem coruja. E um dia um colega vê uma gostosinha correndo – peladinha, Claudinho, peladinha, professor. Três nóias atrás dela. A gente monta no jipe e rasga pro descampado. É curioso, meu colega e eu não falamos nada, a gente vai seguindo, eles levam ela prum lugar ermo. Um fica vigiando, o outro segura os braços, o terceiro já tá pra mandar brasa. Daí a gente chega e rende todo mundo. A mocinha quer sair correndo, a gente atira pra cima e faz ela ficar quieta. (Ela já sabe que não tem amiguinho, ela já sabe que só tem inimigo.) Vocês já ouviram um chute de coturno na boca do estômago? Nego desmaia na hora e chega a cuspir sangue. Assim a gente rendeu os três. Se eu não acalmo o meu colega – ô! ô! –, ele racha o crânio dos figuras. Já viram um crânio afundado? O urro da menina viu… Mas aí a gente rodeia ela. A gente senta ao redor dela. Ela fica fungando igual uma preá acuada, o peito vai e volta, vai e volta. A gente não se move, a gente não faz nada, mas a metranca diz pra ela ficar quieta. Daí você olha bem pros olhos dela, bem no fundo, eu e meu colega olhamos pra ela da mesma forma. Olhos vidrados, no começo a gente olha com raiva, muita raiva. Pra ela saber que sobreviveu, pra ela saber quem salvou ela, pra ela saber que tem que agradecer. Depois, quando ela se acalma, quando ela quer desviar os olhos, você chuta terra, faz ela olhar pra cima, daí, com calma, você muda o olhar. Você dá um sorrisinho, no começo ela duvida, ela olha pro outro, mas ele também tá sorrindo?, então ela ri, gente, vixe!, e quando ri, bom, aí ri de histeria, aí ri de histérica, aí ri e cala grilo e cala tudo. Daí ela te entende – ah, se entende! Mulher, por mais perdida, por mais zoada, não perde a mão macia. Aí a gente reveza: ela chupa um e dá pro outro. Não saiu barato? O cheiro é que é foda. Mas que se foda, cê vai, cê quer ir, depois cê dá pra ela um naco do teu lanche, se ela não pega quando cê joga pra ela cai no chão, daí se ela não for rápida o cachorro vem junto, rosna pra ela, vai ter que disputar migalha. Ah, eu sei! Eu sei, eu sou mal, né? Eu sou muito mal, né? Pois vão todos vocês tomar no cu! (Os 10 que ainda estamos na sala.) Vão todos vocês pra casa do caralho! Você não matou ninguém, né, professor?! (Engulo a seco o silêncio.) Pois eu não sei se eu não matei ninguém. Ah, que eu desmaiei fulano, caralho, isso eu tinha que fazer. Dei soco, pontapé, cotovelada, cabeçada, coronhada, tudo! Mas matar, fuzilar, isso eu não sei. Não sei. Tive sorte. Teve amigo meu que não teve. Ou vocês acham que não tinha emboscada lá? Tinha, sim, nego conseguia arma, a gente tava lá pra apaziguar, mas nego não queria saber. É isso que é a guerra: a guerra é o turbilhão, é a bala perdida, é o tiro seco, é a parede que cai, é a parede que desaba, é o morto de olho aberto, é o morto que não teve tempo de fechar os olhos, é a fumaça que sobe devagar, é o cheiro podre e invisível, é a moscaiada que não dá trégua, é o vira-lata que late pro urubu, é a guerra. E quer saber? Hobbes de cu é rola! Tão vendo essa merda aqui? (Diogo saca do bolso a caixa do tarja preta.) Tão vendo? Porra, o Dr. Sérgio é gente boa, o cara é ponta firme, mas ele só viaja com esse lance de alucinação. Alucinação de cu é rola! Um dia eu tava na patrulha, pra variar à noite. Depois que eu peguei solitária, depois que aquele sargentinho de merda foi transferido, aí eu só me fodi, aí só começaram a me mandar pra roubada, nego dizia que os caras faziam aposta pra ver quando eu ia pra vala, mas eu não morri, eu tô aqui, e aquela noite, na patrulha, tinha uma choupana pegando fogo. Coisa estranha: era uma noite bem escura, muito, muito escura, então, lá longe, eu vi aquele fogo alto, aquele fogo subindo e estralando, aquele amarelo vivo e forte contra aquele fundo da noite, lua cheia e bem prateada, achei aquilo bonito, vivo, bora ver o que que é aquilo ali?, o Murilo não quis ir, tinha deixado a esposa em Salvador, queria voltar pra ela, mas eu não pude resistir, eu tinha que ver o que era aquilo ali. O que que o fogo pede? Bala! Atirei pro alto, atirei a esmo. Cheguei lá e não tinha nada. Nada. Tinham quebrado tudo, tinham rasgado tudo. Mas, é claro, ninguém aqui já sentiu o calor de um incêndio, ninguém! Quando eu era criança, pessoal, meu pai me contava que não dava pra morrer queimado na superfície do Sol. Não, não dava. Só de chegar perto do Sol – quer dizer, só de chegar perto, bem de longe, o camarada já morria, o camarada já esturricava, e naquela hora me veio isso, me veio, sim, porque a minha pele ardeu pra caralho, eu me senti assado, que calor da porra!, daí eu vi, ali perto, uma mãe morta ao lado da nenenzinha. Mas quem foi o covarde que fez essa porra? A mãe e a nenenzinha tavam varadas de bala. Mas quem foi o filho da puta que fez isso? Quem foi? Quem foi?! Pelo amor de Deus, quem foi, pai, mãe, quem foi, caralho, maninha, cadê, pelo amor de Deus, alguém me ajuda, alguém me salva, pai, paizinho, cadê você, pai, mãe, cê tá bem, mãe, não tem fruta aqui pra eu comer, mãe, mana, cê tá bem, passou na facul?, acorda, acorda, bebezinho, vem cá, eu não tenho leite, acorda, acorda!, mãe, mamãe, dá de mamar pra bebê, ó, é menininha, ó, é menininha! Transe. Quem matou aquelas duas? Transe. Como é teu nome? Diogo Nascimento. Você tá me ouvindo bem, Diogo? Sim, senhor. Onde você tá, Diogo? No Haiti, senhor. Tem certeza, Diogo? Sim, senhor. Não, Diogo, você já está em São Paulo. Não, senhor. Sim, Diogo, em São Paulo. Quantos dedos você vê aqui, Diogo? Quatro, senhor, quatro dedos. Elas sobreviveram? Quem, Diogo? A mãe. A bebê? Você vai ter um filho, Diogo? Que filho? Tô falando da mãe e da menininha? Vocês aplicaram a injeção? Que dose vão estão usando? Vem apresentando catatonia? Pasmaceira? Vem babando? Secreção nasal? Vômito? Vem comendo? Fala pastosa? Não, não precisa amarrá-lo sempre, não. Com calma, com cuidado. Diogo, você não quer voltar pra casa, Diogo? Cadê meu pai? Teu pai tá bem. E quando é que eu vou ver meu pai? Quando você estiver bem pra ver teu pai, já pensou se teu pai te vir desse jeito? Jeito? De que jeito? Quem é você? Quem sou eu, Diogo, você não sabe quem eu sou? Dr. Sérgio? Isso. Tomou o remédio hoje? Me fizeram tomar. Bom, muito bom. Mas, doutor, o negócio é o seguinte: que que é aquele sorrisinho torto da enfermeira? Ela tá querendo o quê? Olha o respeito com a Silvana, Diogo, olha lá! Ah, Dr. Sérgio, cê é homem também, cê sabe. Você não quer sair daqui, Diogo? Mas sair pra onde, Dr. Sérgio? Ué, Diogo, e a tua casa? Que casa, doutor? Ué, você não falou que ia tentar sair aqui do quarto na semana passada? A Silvana e a Cláudia me disseram que você ainda não tentou sair do quarto. Me falaram que você só ficava falando “emboscada, emboscada, emboscada”. Troca o disco, Diogo, vamos lá, vem comigo. Não, pelo amor de Deus, doutor, não, pelo amor de Deus, doutor! Agora é que eles tão lá, a mãe e a menininha, eu tô vendo, elas tão aqui, elas vêm aqui, eu não fiz nada, não fui eu, não fui eu, por que que o Murilo ficou na patrulha, que que era aquele fogo? Calma, Diogo, você confia em mim? Confio, confio. (Restavam na sala o Diogo, eu e os dois únicos amigos do Diogo.) Me diz, Dr. Sérgio, me diz, professor, como é que eu volto? Como é que eu volto? Calma, calma. Vocês ligaram pro pai dele? Já? Ele tá vindo? Não, tá tudo bem. O quê? Que que ele tá perguntando? Não, não tá babando, não. Não tá tremendo. Tá bem. Agora, não, agora não tá desfalecido. Diogo, Diogo, fica aqui, fica aqui! Diogo, Diogo! Pega água, joga nele, joga na cara dele, joga, ele vai acordar. Diogo, Diogo! Leves tapas, Diogo, Diogo! Chega, chegou o SAMU? Chegou? Vem, vem, aqui, aqui. A pressão tá boa? Tá baixa, tá baixa. Mas calma, calma, ele vai ficar bem. Tá respirando bem, tira, joga as carteiras pra lá, empurra elas pra lá. Isso, isso. Ô meu filho, que que foi, meu filho, que que aconteceu?! Não, calma, não chora assim, não chora na frente dele, já tão cuidando dele. Vocês ligaram pro Dr. Sérgio? Tá aqui o número, liga pra ele. Dr. Sérgio? Isso. O senhor não me conhece, meu nome é Ricardo, eu sou professor do Diogo, tudo bom? Tudo. Aconteceu alguma coisa?

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 




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