Europa, escombros e soslaios


 

Chicago, 27 e 28 de setembro de 2014

 

 

 

Barcelona, 03 de janeiro de 2013

…..Barcelona. Menos aristocrática e mais acolhedora que Madri. Mais organizada que Lisboa – mas eu sinto saudade daquele caos português que preme os ombros quando caminhamos veredas medievais adentro.

 

…..Na Sagrada Família, reflexões sobre os paradoxos da Igreja me açoitam. O dogmatismo, a inquisição, a hipocrisia e o mistério rezam o mesmo terço que se ajoelha diante de um Antoni Gaudí. Será por isso que a verdade usa máscaras?

 

…..Em uma taverna/restaurante do bairro gótico. Mesas separadas por cortinas marrom-amareladas e algo translúcidas. O escritor norueguês Knut Hamsun e sua Fome ao alcance da minha mão direita. Vinho da casa à frente, mais amadeirado, precisamente como me haviam alertado que os vinhos espanhóis seriam. No bairro gótico, as ruas vão se transformando em vielas conforme o andarilho é tragado. Em determinados lugares – eis uma cena bem latina –, seria possível abraçar a vizinha que mora na varanda à frente. (Eu incluiria essa cena no Amarcord se o bom e velho Federico Fellinni tivesse nascido em Barcelona.) Prediozinhos enegrecidos, paredes descascadas, nódoas oleosas pelas ruas. Me vem à memória uma imagem que o Frank, meu professor de história do terceiro colegial (1999), nos trouxe sobre o período de iminência da Revolução Francesa: nos bairros da periferia de Paris, cujas vielas não comportavam sequer um transeunte intumescido diante de uma camponesa desavisada, os cobradores de impostos, em nome de Sua Majestade, o rei, eram recebidos com tinas e mais tinas de óleo fervente arremessadas das varandas apenas pouco sobrelevadas.

 

 

Barcelona, 04 de janeiro de 2013

 

…..Me parece que não progredimos sem esquecer. Mas lembrar e reparar são antecâmaras do esquecimento.

 

…..Sol de inverno em Barcelona. Não é baço e frágil como em Berlim, mal consegue se insinuar pela pele, mas requer que as pálpebras se estreitem como frestas.

 

…..No bar em que almoço, leio o seguinte mantra: “El éxito sonríe a los que sonríen”. Ora, se assim fosse, o palhaço não estaria condenado ao sorriso perpétuo.

 

…..No Parque Güell, a caminho de Gaudí, encontro sereias de Circe tocando a guitarra espanhola. Quem pode afirmar que o que perdura é feliz? Como é possível que haja pessoas que caminhem alheias à guitarra espanhola? Quando é que a poesia foi relegada ao exílio da aridez?

 

…..Guitarra espanhola. As lágrimas colidem umas contra as outras como se a fronteira dos olhos fosse a borda de uma taça à iminência de transbordar. Seria o sal das lágrimas o vestígio daquilo que não conseguimos reconciliar?

 

…..As colinas do Parque Güell me transportam ainda uma vez a Atenas. Lá havia mais flores e um cão inusitado que me acompanhou na descida da Acrópole à Ágora.

 

…..Talvez eu escreva por não confiar devidamente no carinho mediado pela memória – a mão que deve calçar a luva para conseguir afagar.

 

…..A personagem de Knut Hamsun, o protagonista que vive a Fome, hoje pela manhã, se transbordou em verborragia, as palavras pareciam jorrar do papel, as palavras pareciam arremessadas sobre o papel, como se houvesse uma manancial que as acelerasse, como se a vírgula fosse um resquício de cadência – uma palavra empurra a outra, e o ponto final apenas demarca a exaustão, não o término. Nesses momentos – momentos que todo escritor busca –, a verdade parece e aparece tangível. Por isso será sempre importante escrever à mão. Se as linhas algo ordenadas calarem a intensidade do sentimento sob a capa das palavras, será possível borrá-las para criar uma neblina de tinta a afagar o escritor solitário.

 

 

 

Barcelona, 05 de janeiro de 2013

 

…..No Museu Picasso. Primeiros retratos feitos pelo artista. Retrato de viejo e Hombre con boina. A captura dos rostos é tão expressiva que me parece a cristalização de uma cena – o pincel de Picasso, qual um punho cerrado, tenta conter o fluxo da narrativa. Quadros, não estórias.

 

…..Contemplo o Retrato de la tía Pepa. A vida foi arando teu rosto, tía Pepa. Para onde você olha, tía Pepa? A pintura sugere, mas não narra. O olhar de tía Pepa infiltra a literatura pelas frestas de Picasso. (Teria sido esse o motivo pelo qual o bom e velho Vincent Van Gogh era um leitor contumaz?)

 

…..O Interior con carros é tão vívido – a luz desponta com tamanha intensidade através da janelinha do depósito! – que seria possível dizer que Picasso o fotografou ainda nu ao lado das duas camponesas com quem havia passado a noite.

 

Acabo de ver uma belíssima foto do Danúbio que a minha irmã Larissa capturou em Buda – ou teria sido em Peste? A vazão verde do Danúbio, mais ao fundo, é mediada por uma arcada da qual desponta um lampião, metamorfose dos antigos archotes trêmulos.

 

…..Picasso e seu Caballo corneado. Guimarães Rosa certa vez sentenciou: “Vê-se muito da tristeza do mundo nos olhos de um cavalo”. Como o estralar do chicote, as pinceladas de Picasso põem uma sela sobre o aforismo de Guimarães: “Vê-se muito do fardo do mundo contra o dorso de um cavalo”.

 

…..La mujer muerta. Azul, branca e impassível. Me angustia a síntese e o silêncio desse retrato. A literatura o narraria paulatinamente. A imagem, por sua vez, sentencia que não há mais nada a dizer. Quando é que meu silêncio será azul? Quando meu impasse for branco e silencioso.

 

 

 

Barcelona, 06 de janeiro de 2013

 

…..A poucos passos das docas do porto de Barcelona, vejo um banco. Lá está, aparentemente, uma família paquistanesa. A menininha não usa burca, deve ter nascido na Espanha, mas a esposa, na medida em que me aproximo, suspende o cárcere de seda marrom do pescoço para a cabeça. Quem me cumprimenta é o marido: “¡Hola! ¿Qué tal?” Cumprimento que logo me distancia. Quando olho para trás, por sobre o ombro esquerdo, a esposa já está sem a burca.

 

No circo. As acrobacias dos trapezistas catalães me levam ainda uma vez ao Circo de Moscou (2008). A arena estava lotada. Muitos russinhos que, provavelmente, jamais haviam visto africanos. Eis que uma menina de uns 5 anos não consegue calar a dúvida:

– Mamatchka, mamatchka!

– Que foi, Anna?

– Os trapezistas são de verdade?

– São, querida, por quê?

– Mas eles são negros, mamatchka!

– E o que tem isso, filha?

– Eles são de chocolate, mamatchka?

Chocolate amargo.

 

Li certa vez que o menino Tolstói tinha medo de olhar para trás. “E se o meu olhar não tiver tempo de criar o mundo antes de eu me virar?” Outro dia, em uma conversa de bar, um amigo físico me disse que a formiga não sabe que existe um mundo para além da direção horizontal ao longo da qual tateia. Assim, quando a formiga escala a perna de uma mesa, não sabe que encontrará uma realidade perpendicular sobre a qual os copos de cerveja vão sendo esvaziados. “A morte não tem data marcada para ocorrer”. Assim Samuel Beckett começa O inominável para inflamar o medo do menino Tolstói. (Consigo auscultar os sussurros de Beckett à formiga: “Continue tateando…”)

 

 

 

Barcelona, 07 de janeiro de 2013

…..Terminei a Fome, de Knut Hamsun. O autor pôde descobrir e narrar que, por vezes, a alma profundamente suscetível pelas cicatrizes da pobreza acaba desenvolvendo um senso ainda maior de amor-próprio e dignidade. Os sentidos (e os ressentimentos) de autoafirmação tornam-se perenes, do contrário tudo pode desmoronar (ainda uma vez). Para o mendigo intelectual de Hamsun – a versão norueguesa e adaptada do homem do subsolo, protagonista de Memórias do Subsolo, do bom e velho Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski –, um esbarrão a esmo que não lhe peça desculpa equivale ao esquecimento proposital de um rei em relação às demandas de seu general. Súbito, o mendigo vai ao pedestre indiferente que lhe deu um encontrão e o intima: “Mas por que um mero esbarrão? Será que eu não mereço um tapa?”

 

 

Florença, 08 de janeiro de 2014

 

…..Nos arredores da catedral. Il Duomo. Diante da cruz, reflito sobre o Gólgota. A história gosta de condenar os judeus pela morte de Cristo. Ora, trata-se dos judeus in toto, ou houve uma facção – ou mesmo alguns membros da tal facção – em especial? A prática da crucificação não era romana? Sendo assim, por que Pôncio Pilatos não é considerado o verdadeiro Anticristo? Seria pelo fato de a Igreja ser católica, apostólica e, sobretudo, romana? Roma soergue os vencedores, o gládio – os judeus eram meros escravos. A vítima torna-se culpada – por ser vítima, não por ser culpada. O algoz não apenas coage Johannes Gutenberg à impressão, mas também legitima o imprimatur para a interpretação litúrgica da história. Se os judeus não tivessem que se tornar cristãos novos, Pilatos descobriria que sua genealogia é contígua à de Judas, toda a família nobre do romano seria proveniente de Cariotes. (Se os judeus não tivessem que se tornar cristãos novos…) Roma crucificava, mas todos fazemos como Pilatos – lavamos as mãos. Os judeus tornam-se, de fato, o povo escolhido – o povo selecionado. Roma eleva cristo às alturas de Hosana, já sabemos a quem culpar, nossas legiões soerguem a espada, enquanto os gafanhotos do deserto ainda resolvem suas querelas com apedrejamentos, mas nós já sabemos a quem culpar: o judeu, a síntese do acometido. “Gesú è Dio che si è fatto uomo. L’anticristo è colui che nega che Gesú è il Signore”. Nada mais consequente ao movimento contraditório da história que atribui a clava e a culpa ao escravo que mal respira do que transformar Cristo, o crucificado, em Senhor. Cristo, filho de um carpinteiro; Cristo, um judeu.

 

…..Morei na casa de uma família italiana que parecia ter saído diretamente de um dos filmes do bom e velho Federico Fellini. Me lembro, agora, de um almoço de domingo, a família toda reunida. A câmera de Fellini, a sombra do meu olhar ali, vai mostrando os convivas – lentamente. A comida é servida com fartura, a nonna bate com a colher de pau nas mãos heréticas daqueles que ousam cortar os fios do macarrão – é preciso enrolá-los no bojo da colher, artesanalmente, para só então levá-los à boca. O azeite rega o pão, pão cheiroso, o pai o abençoa, logo vêm os cânticos, o vinho róseo, a bruschetta. Um causo se enreda ao outro, eles falam, contam e brindam. O cunhado parrudão pega o irmão da esposa pela nuca – Giuseppe, o cunhado, já bebera muita grappa. Eu estou ali na mesa de madeira sólida, em uma das esquinas, e sinto que a comida, deliciosa, é um dos grandes pretextos de toda aquela comunhão. O nonno feliz, felicíssimo, sorri com a boca enrugada – ele tenta propor um brinde, chega até a golpear a taça com a colherinha para pedir atenção, mas o reumatismo o impede de se levantar da cadeira/trono do patriarca.

 

…..Foram 463 degraus até a cúpula do Duomo. Uma subida algo lúgubre que, nos degraus finais, se torna bastante íngreme. Uma brisa amena começa a desvelar o panorama mais extático que já pude contemplar. A cúpula seria o centro de onde Florença se teria irradiado, caso a cidade não fosse tão caótica, caso Florença não fosse tão medieval. Amarela, sobretudo amarela, mas há torres verdes, tetos azuis e palácios marrons aquecidos pelo baço sol de inverno. Escrevo entre duas colunas vigorosas de mármore que terminam de modo abaulado como se quisessem se curvar diante da cidade de Dante. Cenário literário por excelência: uma eventual personagem a caminhar pela Via del Sole terá um narrador oitocentista e anacrônico que, diante da beleza da cidade, não abre mão de sua onisciência. Aqui os prédios não podem se escorar nas costas uns dos outros. Os primórdios do capitalismo eram regidos por Médici, não por Odebrecht. Mas o Renascimento se cristalizou, Firenze não voltará a dar à luz. O ápice do desenvolvimento de Firenze pede que haja outras Florenças. Firenze chegou a seu limite. Chego mesmo a dizer que esse seria o sentido de uma guerra. A exaustão de uma evolução precisa de um novo patamar qualitativo para continuar a caminhar – e a se expandir. O florentino já conhece a síntese da humanidade desde que nasceu. Ele precisaria deixar a Europa por algum tempo para descobrir as sombras que a Renascença projetou. Como o espírito é movimento, a arte só pode se constituir como doação. O artista jamais será um autista, o que ele mais quer é jorrar para a vida tangível a torrente anímica que há muito e desde sempre o acossa. Cada tela, cada escultura e cada texto guardam em si pergaminhos de memórias, feixes de luz a projetar cores que não serão esquecidas pelo pintor até que ele consiga recriá-las (e superá-las) on canvas. Ao contemplar Firenze, entendo, aqui e agora, a perversa divisão mundial do trabalho. Que significa a estética do feio em São Paulo senão os dutos de esgoto que levam água potável para essa cidade/palácio? O artista não apenas se eterniza através das obras – máxima há muito regurgitada. O artista eterniza o devir do mundo nas obras. Aqui e agora, contemplo uma cidade circundada por montanhas, cidade que já não pode crescer e precisa se conurbar com as vilas vizinhas. Quem caminha para além de Firenze sente lufadas de ar redivivo como se houvesse saído de uma cripta. O escritor caminha pelas ruas (ruelas) e noto que, aqui, é o capitalismo tardio que deve lutar para expor suas marcas anódinas. Não há logradouros devidos para os carros, os palácios avançam aristocraticamente como se ordenassem aos pedestres: “Parem!” Firenze coage, hipnoticamente, à contemplação. As ruelas (alamedas) não propõem a circulação, mas a gangrena. Aqui, encontros fortuitos têm mais chance de acontecer – e se resvalar. Mesmo as lojas precisam esculpir suas vitrines. Os paralelepípedos deviam fazer as rodas das carroças estalar, ouço os cascos dos cavalos ausentes – conseguiria a neblina florentina dissipar o cheiro dos cavalos? Ouço as risadas italianas, fartas e latinas, gargalhadas daqui, só daqui. Fellini é um tipo italiano, não há dúvida, um artista certamente viajado. Não teria sido possível filmar um almoço como a segunda natureza italiana se Fellini não tivesse vivido o contraste em suas viagens. Ele precisou conhecer a austeridade (pré-bebedeira) da mesa alemã, o silêncio invernal de Helsinque, ao longo de cujas ruas podemos auscular nossa expiração. Só assim o almoço da mamma se torna peculiar, só assim as almôndegas parecem mais gorduchas e chegam a fazer barulho ao se chocarem contra o piso de Carrara. Os sinos de Firenze e suas esquinas envoltas pela neblina tornam contíguos (e realizáveis) os mais diversos esforços de expressão do espírito. Em Firenze, sabemos por quem os sinos dobram. O soslaio de Florença me faz entrever o encontro ecumênico de Maquiavel e Da Vinci. Leonardo, em Firenze, não é um espírito ao léu, ele sintetiza os auspícios de uma época que queria coroar o homem com o trono da história. Aqui me deparo com o medievo ao lado da coroa monárquica, carros modernos se veem desafiados (e acelerados) por sapatos lustrosos, o amarelo das casas refrata a luz de inverno e faz a neblina cintilar como um véu litúrgico – os florentinos e a nostalgia da Igreja. Em Florença, a história entrelaça suas camadas temporais como o embaralhamento das placas tectônicas que, ao invés de gerarem escombros, soerguem a cidade como a arqueologia da bela superfície palaciana. Memórias do sobressolo.

 

…..Piazza della Signoria. Assim falou Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni:

…..– Perché non parli, Piazza della Signoria?! Parla!

…..Na Piazza della Signoria, há várias estátuas com temas da mitologia clássica. Em uma delas, o artista estancou a mão do soldado que empunha a clava. Sob seus pés, uma criancinha desvela os estertores do medo através dos olhos vazios e das mãozinhas trêmulas que tentam se impor como escudo. O ponto alto da obra, a meu ver, desponta com a terceira personagem. Até aqui, nos deparamos com Talião revisitado – o soldado faz valer seu direito ao butim. Mas a possível mãe da criancinha se esgueira entre as pernas do soldado para suplicar por aquilo que está entre as mais importantes heranças legadas pelo Cristo: a compaixão. Ora, como um nobre romano leria tal cena? Talvez ele pensasse que o soldado perdia muito tempo com meros corpos, enquanto os demais só faziam saquear e pilhar. Mas o cristianismo nos faz contemplar a iminência do assassínio pelo prisma do condenado. É bem verdade que a estátua sobrelevada enfatiza o golpe (estancado) do algoz. Mas nós, os espectadores, temos a mesma visão da mãe que suplica. Como se devêssemos nos compadecer com seu sentimento enquanto contemplamos o belo como escombro da guerra. O cristianismo lança luzes entre as sombras dos plebeus, aqueles que, efetivamente, soerguem a (e padecem com a) história.

 

…..Que é o aforismo senão um fragmento que jamais prescinde do todo mediato do qual ele se desprendeu? O aforismo pressupõe leitores que tomam para si a escavação. Leitores/arqueólogos. Assim, quando voltamos à superfície do texto, percebemos quantas veredas foram desfolhadas para que o soslaio apreendesse mais do que a mera centelha. O aforismo, subterraneamente, narra a história da construção (e da captura) do olhar. Por conta de seu caráter eminentemente sintético, é no aforismo que tende a se cristalizar, como se se tratasse de uma estátua, a máxima do bom e velho Ezra Pound: “O escritor é a antena da raça”.

 

…..Quando estamos à iminência da embriaguez, o álcool expande os sentidos – e a consciência. A fronteira é tênue, um trago a mais e nossa consciência cartesiana não suporta: um passo além do Hades e já desmorona tudo aquilo que o álcool insuflou. Como é possível tal paradoxo engarrafado? O balão policromático da consciência ganha os céus de Florença – logo menos, Maquiavel e sua agulha o reduzem a uma bexiga que murcha sem mais.

 

…..O vinho: paleta violeta de uvas pisoteadas que exigem a liberdade para além do cacho. Liberdade fluida, liquefeita – “e engarrafada”. (Assim falou Josef K..)

 

 

 

Florença, 09 de janeiro de 2014

 

…..Galleria degli Uffizi. Me parece bem instigante tentar projetar a consciência de séculos passados através das obras. A perspectiva, hoje, parece uma categoria do nosso olhar. Como viam os homens e mulheres antes que a perspectiva rompesse o hímen do olhar? A perspectiva desdobra o espaço e dinamiza o tempo. É a perspectiva que permite ao onanista contumaz se masturbar diante da Vênus no Louvre. Me lembro de uma conversa com o meu primo Fábio Luiz, a caminho do Santo Daime, em Sorocaba, em que ele me falava sobre as diferentes dimensões do tempo ao longo da história. Faz todo o sentido pensar em um caráter identitário dinâmico para os homens a partir da fusão cada vez mais inconsútil entre espaço e tempo. Mas, ao lado da (e contra a) celeridade das mutações, o atavismo do ego e as cicatrizes do ressentimento ainda persistem. A transformação do espírito não acompanha, pari passu, a revolução do olhar. Se assim fosse, a memória e a saudade já seriam carcaças de um naufrágio há muito relegado; se assim fosse, se não houvesse a possibilidade paulatina de cicatrização do espírito, se tudo o que é sólido se desmanchasse no ar, nada se fixaria em nós, não haveria decantação e sedimentação no espírito, nos tornaríamos deuses sem palmilharmos a via crucis da divindade. Em face do nosso movimento contraditório, nos deparamos com o processo paulatino de abertura dos olhos. Como é que um servo medieval tatearia um elétron? Diante da completa ignorância sobre a noção material de causalidade, como não invocar Deus Pai para a cura das doenças?

 

…..Sêneca – ou um pseudo Sêneca, como quer a inscrição do busto – sobre dois suportes de mármore em tons contrastantes: verde safira e vermelho entre vinho e salmão. Ao me deparar com o naso romano de Sêneca, vejo como sou, de fato, um italiano.

 

…..Os artistas se libertaram das mãos aneladas dos Medici para serem regidos pela Mão Invisível do mercado. (Presente singelo de Lorenzo de Medici, il Magnifico, ao primo homônimo Lorenzo, que acabara de se casar: um retrato de Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi, também conhecido como Sandro Botticelli.)

 

…..Martirio di San Floriano (1516-1518), de Albrecht Altdolfer. Floriano e seus algozes estão sobre uma velha ponte de madeira, abaixo da qual corre o rio de Heráclito. Floriano tem os pulsos atados; seu pescoço está aguilhoado a uma pesada roda através de uma corrente enferrujada. Os algozes sorriem, eles incitam que Floriano se jogue da ponte, que o mártir seja o algoz de si mesmo. Floriano hesita como que obsedado, mas ele não olha para o rio – ele olha para algum lugar ao longe, através do leito do rio, como se já pressentisse as agonias e o torpor vindouros daqueles que o coagem ao martírio suicida.

 

…..Erodiade (Herodes; 1527-1531), de Bernardino Luini. Eis a cabeça de João Batista sobre uma bandeja de prata adornada de ouro. A misoginia histórica atribui tal barbaridade à mulher de Herodes. (O rosto ruivo da primeira dama lembra as musas de Botticelli.) Mas teria a cabeça inerte de João Batista se separado do corpo sem que o polegar do rei judeu se tivesse voltado para o solo? (A misoginia, eis o anátema legado pelas tragédias de Eva e Maria Madalena.)

 

…..A escuridão de Caravaggio conforma o nosso olhar para o entardecer.

 

…..A escuridão de Caravaggio conforma o olhar para o nosso entardecer.

 

…..Tameró, um bar/restaurante na Piazza Santo Spirito. Diante da poltrona em que me sento para ler o escritor mexicano Juan Rulfo, entrevejo dois planos cujas narrativas deveriam se entretecer. Ao fundo, a uns quatro passos de onde estou, desponta a foto de uma antiga igreja em cuja escadaria se sentam uma jovem de sorriso loiro e o filho de Chaplin em versão siciliana. Ali está o início de tudo, a foto estanca o aperto de mão que atesta para os devidos fins que a Michelle em questão não é latina – nós, mediterrâneos e latino-americanos, cumprimentamos nossas mulheres com um, dois e mesmo três beijos. A foto se colore em preto e branco, à exceção do pescoço vermelho de Michelle: cachecol de lã bordado pela vovó com sussurros de “cuidado com o vento, meu amor! – e cuidado com outras investidas…” E eis que o pescoço de lã nos conduz ao plano mais rente à poltrona deste flâneur, o plano que me apresenta Michela, a florentina que, ao denegar em meio a sorrisos lisonjeados a foto que eu estava para capturar sorrateiramente, acabou por dar ensejo a este fragmento narrativo. Michela equilibra uma taça de vinho siciliano – siciliano como o Chaplin da foto –, taça violeta salpicada por pontículos róseos quando do contato com a luz, violeta rosáceo que prolonga a lã vermelha de Michelle. Michela tem o olhar algo difuso, as pernas cruzadas terminam em botas brilhantes. Ela tenta descortinar os cabelos para expandir o palco do rosto, mas os fios deslizam até resvalar a taça com o caramelo de mais um tom. Ao fim e ao cabo, capturo uma pose que daria forma a uma peça de mármore e suplicaria a O Pensador, do bom e velho Rodin, que naufragasse as reflexões a reboque do vinho de Michela. Soslaio florentino: as pernas suaves se cruzam de modo a oferecer um apoio para os antebraços. (As coxas se tornam almofadas.) Sobre a dobradiça do braço esquerdo, o cotovelo direito encaixa o antebraço a ser encimado pela palma da mão entre cujos dedos oscilam a taça e o vinho. Pairando sobre o todo como uma névoa que não se quer dissipar, desponta o rosto levemente anguloso de Michela, cujos soslaios florentinos como que esvaziam os olhos da estátua que será esculpida em mámore branco eivado de leves vincos amarelos.

 

 

Florença, 10 de janeiro de 2014

 

…..[Solidão inescapável. (O labirinto da procura.)]

 

…..Esboços mentais sobre a dialética envolvendo o senhor e o escravo a ser narrada por Walter Dortlicht, que retornará, após O Evangelho segundo Talião, como um futuro terrorista.

 

 

 

Florença, 11 de janeiro de 2014

 

…..Amanhã almoçarei em Veneza.

 

…..Pedro Páramo, narrativa vertiginosa de Juan Rulfo. Não se trata simplesmente de esfumaçar o narrador com a sucessão e o cruzamento de diferentes tipos de discurso. Trata-se de quebrar a espinha dorsal da narrativa, de permutar a sequência de vértebras até que o bípede volte a usar a cauda como bengala. Na montagem supostamente despretensiosa de Pedro Páramo, o autor vai lidando com o tempo como se Chronos fosse um conjunto de malabares. Fico me perguntando se Rulfo vai reagrupar os escombros do tempo ou se os transformará em um novo tipo de templo e todo – um templo em que a estátua é quem contempla o pedestal, isto é, a nervura da forma passa ao primeiro plano para que a voz do conteúdo possa dizer algo. (Algo como o que ocorre em Guernica, de Picasso: os corpos retalhados – esculturas espraiadas pelos bombardeios da força aérea de Francisco Franco – vêm à tona pela mediação cubista da arquitetura como destruição.)

 

…..Meu humor está consideravelmente melhor. O sono arrefece as brasas da solidão, este meu labirinto em meio ao qual a saída não passa de uma nova entrada.

 

…..Os textos que quero escrever transpassam, contradizem e enformam minhas ideias a ponto de comporem uma polifonia que beira um coro:

…..– Agora, sim: cantemos a dissonância!

 

…..Entrevejo uma dimensão espiritual em Pedro Páramo: é como se a montagem poética de Juan Rulfo a suspender o tempo fosse a hipostasia da eternidade. As personagens sofrem não apenas por conta das invectivas da memória; a bricolagem poética torna contíguos eventos distanciados por décadas. Um soslaio de Pédro Páramo agarra o cordão umbilical de seu nascimento.

 

…..Um encontro literário inusitado – e afortunado: no café Rivoire, na Piazza della Signoria, uma espanhola vem conversar comigo por me ter visto ler Juan Rulfo. (É por momentos assim que pressinto o esforço de Sísifo como a tautologia da esperança.) Acaso nas fotos florentinas em que o rio engolfa a cidade, em que a cidade é capturada pelo rio, acaso não é esta a cidade invisível, a Utópolis e a Atlântida que tanto procuro? Já dissera o russo Alexander Segueievitch Griboiedov, em A desgraça de ter espírito: “O melhor lugar é onde não estamos”. (A projeção, a procura.) Lá está minha amada, submersa nas criptas do palácio que a realidade menos tangível que a imagem reflete sobre o rio de águas trêmulas. Uma cidade head over feet que coincide com o ímpeto do desejo – queremos o que ainda não está aqui, aquela que está más allá, assim como a arte é a promessa de felicidade. [O que há de vir! (O que ainda não veio…)] Um vir a ser que não se aparta da própria busca, um tatear pela realidade enregelada como se buscássemos, este escritor e os leitores, as antecâmaras da cidade submersa – a cidade invisível. Foi lá, no café Rivoire, em uma das salas do palácio submerso, na Piazza della Signoria duplicada, que a curiosa espanhola me veio interpelar por conta de Juan Rulfo.

 

…..A realidade se desfaz em sombras que, conspiratoriamente entrelaçadas, projetam uma nova realidade – mais maleável, mais fugidia, por vezes tangível: a realidade ficcional.

 

 

Veneza, 12 de janeiro de 2014

 

…..A leitura de Juan Rulfo causa vertigens – o leitor despenca sem solução, mas, súbito, consegue encontrar uma antecâmara pouco iluminada. Quando os olhos começam a se acostumar com a penumbra, um alçapão se abre e voltamos a cair. O labirinto da vertigem – ou, antes, a vertigem em meio ao labirinto. O fio da narrativa se capilariza de tal forma – há tantas câmaras secretas em cada um dos quartos narrativos – que a única solução me parece (tentar) acompanhar a dissolução do próprio eu pelas mais diversas veredas para lidar com mais de um centro de consciência. Rulfo dá à luz a esquizofrenia literária.

 

…..Estou ansioso para começar a ler o filósofo espanhol Miguel de Unamuno. Me embrenho, aqui e ali, pelas veredas de sua vasta erudição e me agrada sobremaneira a forma dialógica pela qual ele constrói o pensamento. Unamuno vai se pondo e contrapondo em relação aos pares, até que seu pensamento desponte como um feixe de ideias, um ponto nodal que desvela a genealogia da reflexão, a via crucis da ideia.

 

 

Veneza, 13 de janeiro de 2014

 

…..Em uma das veredas de Veneza – o labirinto de ruas e canais nos embaralha –, me deparo com uma exposição com várias invenções de Leonardo Da Vinci. Seus interesses eram tão vastos e pioneiros que, de fato, Leonardo sintetiza o Renascimento, a universalidade da busca que ainda não se estilhaçara por conta do aprofundamento vindouro da divisão social do trabalho. Da Vinci forjou a noção de bella vita que, dificilmente, terá sobrevida além dele mesmo. (Nesse sentido, não seria o polivante Johann Wolfgang von Goethe o irmão mais novo de Da Vinci?) A síntese de Leonardo tenta abarcar toda a terra e revisita a Torre de Babel e sua sanha de arranhar o céu: caminho entre protótipos de teares que apenas a Revolução Industrial viria a encarnar, me deparo com vários experimentos que visavam roubar de Ícaro as asas que os homens não temos. Se estivéssemos apenas diante de tais prodígios, já conceberíamos Leonardo como a fusão do cientista com o engenheiro. Mas o Renascimento não cinde a técnica do belo, os preciosos estudos anatômicos de Da Vinci dissecam músculos, revelam as inserções de nervos e tendões, tudo isso sem grandes lentes de aumento, em uma época em que o microcosmo do real ainda se enredava umbilicamente à imaginação. A anatomia, até então sacrílega, logo seria transposta para os quadros e esculturas, receberia cores e neblina com a erupção técnica do sfumato. Leonardo é o vértice a partir do qual se irradiaram os mais variados ramos do conhecimento e da arte. Leonardo se confunde com Florença em seu caráter ecumênio e deificado – é preciso que o novo desponte em novas direções, pois Florença e Leonardo já se erigiram como panteões. Outros e nosotros deveremos (per)seguir as veias e veredas abertas por Da Vinci. Leonardo congregou em si um conjunto metodológico prenhe por desenvolvimento após a Idade Média. Suas veredas tomaram caminhos tão divergentes – a física e a literatura, apenas para citarmos duas derivações – que Da Vinci precisaria cindir o próprio espírito para ramificar suas criações já não a partir de uma única espinha dorsal, mas a partir de vários pontos nodais de desenvolvimento. Eis aqui um princípio a que poderíamos chamar de neblina, algo quiçá parecido com a rede de neurônios e que, talvez, mimetize os sentidos da evolução do espírito. E se cada um de nós, pontos nodais, tivéssemos que perfazer a trajetória difusa e errante da rede como a cicatrização do espírito? A rede de pontos nodais que se interligam é o universo em sua completa infinitude – eis o paradoxo daqueles que pensamos a infinitude, de olhos fechados, como algo que se curva como a circularidade do horizonte, como algo que, em algum momento, precisa de delimitações e limites. Os buracos negros seriam os locais de liberdade da consciência – liberdade, aqui, no sentido de que é possível retroceder até determinado ponto ou rota da trajetória entrelaçada para desenvolver faculdades que não teriam sido suficientemente aprofundadas. Haveria apenas um ensinamento: o perdão. O perdão não tem apenas um caminho, já que ele consegue perceber que a lei de Newton, quando transposta para o campo moral, só pode reiterar o evangelho segundo Talião. Aquele e aquela que perguntam se a vingança contra o carrasco trará a filha morta de volta à mesa de jantar já começam a descobrir que a energia não precisa fluir apenas em refluxo. Ela deve se expandir, se transformar, ela precisa abarcar a dor para que o perdão também possa ensinar. O universo é uma gigantesca teia nodal sintetizada pela câmera de espelhos de Da Vinci. Nela já não sei quem sou: vejo meu corpo agora, mas minhas múltiplas imagens plasmam a trajetória do espírito. Há infinitas imagens, imagens de imagens, reversões de inversões, e nada parece obedecer ao comando central – e tangível. Agora olho para frente, ou melhor, olho de soslaio para o espelho à minha direita e pressinto que há uma distância maior entre mim e a primeira imagem do que entre esta e a segunda imagem. Alguém poderia dizer que a segunda imagem não é a imagem do meu corpo, mas a imagem da imagem – da imagem da imagem. Eis a escrita da Casa dos Espelhos. Cidade das Crianças, São Bernardo do Campo. Tinha medo de ficar por lá, batia muito a cabeça em minhas próprias imagens, queria sair – e libertar minhas imagens dos espelhos como cárceres. (Eu ainda não sabia que, fora da Casa dos Espelhos, as imagens se esgueiram como sombras.)

 

 

Veneza, 15 de janeiro de 2014

 

…..Estou lendo Del sentimiento trágico de la vida, de Miguel de Unamuno. A escrita é lépida e elegante, Unamuno sabe transitar com maestria pelos diferentes pensadores para construir, dialogicamente, seu próprio pensamento. A certa altura, tendo em mente que Unamuno parte da noção de homem concreto, vale dizer, o homem de carne y hueso, chegamos à noção da mudança do ser tanto em relação ao espaço quanto ao que diz respeito ao tempo. Para Unamuno, é possível desejar as riquezas e/ou os conhecimentos que outra pessoa tenha, mas não se pode ser essa outra pessoa, porque o ser implica uma continuidade espaço-temporal que não pode ser simplesmente transmutada de um corpo – a unidade do ser – para outro. Se tentássemos trocar as personalidades, isto é, as identidades, poderíamos passar por um processo de rejeição análogo ao que ocorre quando um coração não é aceito pelo novo corpo que passa a lhe dar guarida. Eu não vivi a vida do outro, não senti seus momentos de grandeza e decadência, eu simplesmente não estava lá. Assim, querer transformar, de uma só vez, o em aqui só pode redundar em profunda tirania, porque apenas é possível reformar o que se apresenta exteriormente, mas não a (des)continuidade do processo de constituição do ser. O argumento de Unamuno é instigante e se desdobra da identidade individual para a identidade coletiva, pois o povo, segundo Unamuno, seria um homem coletivo. Então, o filósofo espanhol chega a uma noção algo conservadora de que a continuidade da identidade – a tradição – é fundamental para que um povo se reconheça a si mesmo ao longo do tempo. O filósofo admite que pode haver, efetivamente, uma série de rupturas e mudanças, que um homem e um povo podem se transformar profundamente, mas sempre em meio a um processo que pressupõe a continuidade. O paradoxo prossegue em seu caminho quando Unamuno compara a revolução total ao processo patológico de troca da personalidade. A memória está para o indivíduo, assim como a tradição está para o povo. Se a memória e a tradição são sustadas à força pela patologia e pela revolução, que resta para o homem e para a sociedade? Para o primeiro, o mero organismo físico, e, para a segunda, a anomia moral. E, aqui e agora, podemos aproximar a instigante reflexão de Unamuno às especulações do homem do subsolo, protagonista das Memórias do Subsolo, do bom e velho Fiódor Dostoiévski. O paradoxalista do subsolo interpela os socialistas a respeito da tabela logarítmica que pretendia esquadrinhar, prever e projetar os desejos das pessoas. Tal tabela logarítmica partia do pressuposto de que os seres humanos somos folhas de papel em branco que podem suportar as mais diversas modificações ordenadas por planos quinquenais. É assim que o homem do subsolo fala sobre a necessidade de a mudança de identidade dos homens pretendida pela nova ordem revolucionária estar incorporada à carne e ao sangue, aos usos e costumes, à tradição, ou, para usarmos os termos de Unamuno, à continuidade do processo de constituição do ser individual e coletivo.

 

…..Quando o escritor apruma os ouvidos, consegue auscultar suas personagens. Neste momento, o terrorista Walter Dorlicht, que já estivera preso em O Evangelho segundo Talião, fala comigo e com o Dr. Hugo Lumina, renomado advogado criminalista. Walter Dorlicht sentencia que não é mais possível haver agregação social efetiva em meio ao capitalismo tardio que já atingiu tamanha voracidade competitiva. Assim me fala Walter Dortlicht:
…..– Quando há destruição, o ser humano transforma o egoísmo utilitário em egoísmo altruísta. Não há mais o que invejar, só resta a impressão cada vez mais patente de que o próximo a perder tudo serei eu. Assim, em meio à tempestade de aço e à sinfonia dissonante das ogivas cadentes a rasgar o céu, os homens se solidarizam – senão por verdadeira solidariedade, ao menos porque, se toda a solidez voar pelos ares, já não haverá o que rapinar. Ora, que me importam as essências?! Que todos os filósofos da alma e da pureza se exilem na República platônica – e ausente. Me interessa a vontade, ou melhor, a expressão efetiva da vontade, o ato volitivo – seus resultados. Se eu considerasse possível transformar, aqui e agora, a natureza enrijecida e enregelada do homem, Hugo, hastearia sem mais a bandeira vermelha e me tornaria um revolucionário de forma irrevogável e encarniçada. Mas não consigo chegar a essa conclusão, ainda levará muito tempo para que Utópolis seja construída a partir das nossas ruínas, e eu quero beijar o chão sagrado do templo neste exato instante, eu quero que a fraternidade abrace o perdão aqui e agora, já! E é por isso que as explosões devem colorir os céus com pinceladas de névoa errática e é por isso que elas vão devastar a terra de modo que o terremoto que triturou Lisboa em 1755 seja um mero esboço para a segunda versão de Guernica que pretendo montar com os estilhaços cubistas dos rostos, punhos e joelhos. Só assim o homem estenderá a mão, só assim ele amará o próximo, Hugo, quando o próximo lhe for tão próximo a ponto de sentirmos o movimento conjunto das vísceras, a ponto de Rembrandt reencarnar com A aula de anatomia do Dr. Tulp.

…..Dr. Hugo Lumina: Ah, mas e quando a fumaça não mais tingir o céu? E quando os escombros começarem a ser empilhados? E quando os ratos tiverem a primazia dos dejetos alimentares, Walter? Thomas Hobbes voltará a reinar, a guerra de todos contra todos dará novamente o tom, novamente haverá o senhor e o escravo, nós já não sabemos viver senão sob o olhar da distinção, por mais tenra que ela seja: quem sorri projeta sombras sobre o melancólico; os amantes proscrevem os solitários. Sendo assim, meu caro, que podem as suas explosões, que pode o seu terrorismo diante da recomposição orgânica da história humana? A memória não será simplesmente erradicada, por mais que seja explodida e implodida. Quando se retalha o corpo trêmulo da planária, cada uma das metades volta a se constituir como se da morte ressurgisse a vida. Não está na carne e no sangue do homem o oferecimento da outra face, o sermão da montanha. Ainda vivemos sob a égide do sermão da estepe, precisamos de instituições, necessitamos de álguem diante de que devemos nos ajoelhar, mas, Walter, veja, já não se trata de um faraó, um imperador, um rei e nem mesmo de um Führer, nós nos ajoelhamos diante da abstração que é o poder democrático, nós evoluímos, os déspotas agora são temporários, delegamos e delegaremos sempre o poder, dele não nos apoderaremos, mas votamos, comungamos a cada 2 anos, Walter.

…..Walter Dortlicht: Ah, Hugo, sua fé institucional ressoa Montesquieu, cujo espírito das leis clamava não por homens retos e direitos, mas por instituições devidas em cujo seio despontasse a legalidade impessoal para além dos agentes que ocupassem cargos temporários. Não, Hugo, a metástase é irrevogável, a quimioterapia apenas prolonga o sofrimento dos familiares, e é por isso que jamais se tratará de apenas um ou dois atentados e ataques, mas de uma sinfonia atonal e ininterrupta que transformará o belicismo de um Filippo Tommaso Marinetti em mera cartilha pedagógica para colegiais de outrora. O burguês não nasceu burguês, ele se tornou burguês ao pisar sobre o dorso do servo medieval. O burguês teve tempo para se tornar essa besta-fera sedenta pelo movimento do dinheiro que forja o mundo à sua imagem e semelhança. O burguês, antes de mais nada, teve que buscar distinções aristocráticas, depois precisou retirar alguns rubis dos anéis para que o proletariado aceitasse o chão da fábrica e a trincheira dos escritórios com menos ressentimento – e mais resignação. Hoje, o burguês não apenas sai incólume como já se tornou o princípio e o protótipo máximo de tudo o que é considerado desejável. Pois eu quero destruir o reinado do balzaquiano Pai Goriot, quero que o burguês volte a ter vergonha de acumular dinheiro à revelia dos demais, quero que todos nos esqueçamos de que sequer houve capitalismo, por isso minhas explosões serão impessoais, elas não serão minhas, não serão minhas obras, elas serão obras dos mártires, daqueles que já sabem que não vale a pena prosseguir por aqui, eles querem mais, mais! E todos sabemos que nenhuma obra faraônica foi erigida sem custos humanos, sem corpos lacerados por rochas, sem vidas afogadas por correntezas, sem seres soterrados e asfixiados em escavações. É por isso que minha rede sempre terá seus mártires que se oferecerão em holocausto, eles não deixarão que os medíocres voltem a se acomodar na inércia do egoísmo, a privação será tamanha que a vida não será possível se não nos dermos as mãos, o comprador sempre verá o rosto do vendedor, não haverá mais abstrações e mediações, voltaremos a ser uma comunidade, uma grande e orgânica comunidade, e o Apocalipse tomará o lugar do Gênesis para lembrar aos ingratos a quem salvamos – os ingratos sobreviventes! – que a felicidade e a solidariedade estão e estarão sob o fardo de Sísifo, o condenado pelos deuses a rolar eternamente sua pedra morro íngreme acima. Se Sísifo se desviasse por ou cedesse ao cansaço, seria esmagado pela pedra. Mas, se Sísifo conseguisse alcançar o cume, a pedra rolaria morro abaixo e esmagaria os filhos dos deuses inclementes em meio às suas orgias. De qualquer forma, e logo em seguida, Sísifo seria pulverizado sem mais pelos deuses remanescentes. É por isso, Hugo, que não se trata de conseguir, não se trata de alcançar, mas de continuar a continuar, de simplesmente prosseguir. As explosões tomarão o lugar dos sinos, a dinamite nos avisará que o meio-dia despencou, rezaremos para que o crepúsculo fosforescente de Hiroshima não nos faça madrugar. Eis por quem os sinos dobram, Hugo, eis a minha Comédia Atômica, meu caro!

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 




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