Memórias de minhas putas tristes


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Chicago, entre 04 e 08 de novembro de 2014

 

I. Crime e Castigo

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São Paulo, Rua Augusta, há mais ou menos 10 anos – antes, portanto, do último boom da especulação imobiliária. Da Paulista para o centro, dois quarteirões após o antigo Espaço Unibanco de Cinema, ao redor das 20h – ou mesmo a partir das 19h: os seres noturnos começam a ser expelidos de suas criptas. O pedestre dificilmente desavisado cerra fileiras com as putas de espartilho; os laçadores, trajando a elegância do Brás e da camisaria Fascynios, vão arregimentando a clientela. Vamos lá, meus jovens, cervejinha e bucetinha, meus jovens, bucetinha e cervejinha, é 10 conto, vambora?! Um puteiro ao lado do outro, desejo e fachadas de néon geminados. Vira Virou, Emanuelle, Casarão, Night House, Biblo’s, Vagão Plaza, Maison. Biquinis entremeados por mendigos e baratas, universitários proletas – entre os quais este que lhes escreve – ao lado do frentista, do perueiro e do motoboy. O laçador Garcia, o velho Garça barrigudo e bigodudo, o Ratinho da Rua Augusta, faz um rateio para os estudantes de Direito, “os jovens doutores”. Hersão, Vitinho, Flavinho, Adeco e este Alemão dividimos 20 reais – e duas brejas.

Invariavelmente, os puteiros da Augusta estão saturados com um cheiro que mescla suor, mofo e cândida. À época, nego ainda podia fumar lá dentro. Nossas primas defumadas vão fazendo striptease. Com mais um rateio dos aspirantes a bacharéis, os doutores conseguimos aquilo que, aqui em Chicago, os americanos priápicos chamam de lap dance. Sempre queremos a Kelly Cristina – após um mojito que me custa o almoço do dia seguinte, Kelly e Cristina confessam se chamar Jucilene: uma goiana cadeiruda que usa xampu Colorama e passa óleo de urucum nas coxas bugres e roliças. 15 reais a menos, precisamos nos desdobrar para conseguirmos algumas bolinadas e, com sorte, uma ou outra dedada durante uma única música.

 

JÁ É SENSAÇÃO!

MC Andinho, Furacão 2000

 

Senhoras e senhores:
Come on! (~ Com a mão!)
Come on! (~ Com a mão!)
Come on! (~ Com a mão!)

Rá, rá, rá, rá, rá!

Vem, protranca,
Chega aí!
Vou te dar uma idéia,
Chega aí!
Se quer dançar, se divertir
Pra lá e pra cá
Pra sacudir – rá!
E desce o corpo até o chão
Com a mão no pé
Mexe o popozão
De lá pra cá
Daqui pra lá
Ai, que dança louca,

Assim, ó:

Joga a mão pro alto! (Joga, joga!)
Joga a mão pro alto! (Joga, joga!)
Joga a mão pro alto! (Joga, joga!)
Dance você também-ê-ém!
Bota a mão no ombro! (Vai e volta!)
Bota a mão no ombro! (Vai e volta!)

Sensação:
Já é sen-sa-ção-ã-ão!
Ba-by,
Geral jogando a mão!
Já é sensação!
Já é sen-sa-ção-ã-ã-ã-ão!
Geral jogando a mão!

Oh-oh, oh-oh,

oh-oh, oh-oh,

oh-oh, oh-oh: só os a-mi-gos!
Oh-oh, oh-oh,

oh-oh, oh-oh,

oh-oh, oh-oh: só os a-mi-gos!

 

Muitos mojitos, jejuns e semanas depois, consigo levar Kelly, Cristina e Jucilene, sem couvert artístico, para a república onde eu me albergo, a velha Casa do Estudante, à época pertencente ao Centro Acadêmico XI de Agosto, o grêmio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Avenida São João, 2044, apartamento 103, também conhecido como La Bombonera. Dada a minha presença facultativa na faculdade, Kelly Cristina Jucilene e eu vamos ficando namorandinhos. Certa madrugada, exaustos de tesão e lânguidos após o banza que a Ju havia bolado com maestria, Kelly – ou teria sido Cristina? – começa a chorar. É quando descubro que Jucilene, Michelle/Graziela (de Londrina), Amanda/Zuleide (de Ilhéus), Kate/Joelma (de Belém), Adriana/Zenaide (de São Gonçalo), Talita/Lucicleide (de Cuiabá), Kathlyn/Janira (de Teresina) e Andressa/Mara (de Feira de Santana) já poderiam ter largado essa vida. Ju tinha juntado, “num ano, 15 mil. Tinha noite que eu ficava inchada, tinha até que pôr gelo, mas já tinha o suficiente pra abrir meu salão de cabeleireira e manicure e pedicure com tudo dentro. Já tava tudo certo. Só que aí meu irmão caçula, o xodó da minha mãe, aquele desnaturado filho de uma égua que Deus me perdoe foi pego com num sei quantos papelotes… Meu irmão ainda não tinha nem passagem, ele ainda não tinha nem puxado cadeia! Aí, Ricardo, adivinha, né?! Pra eles deixarem meu irmão sair de lá e pra ele não ficar fichado, os filhos da puta, quando me manjaram, pediram logo 20 mil. Mas o delegado acabou aceitando meus 15 mil mais um programa de graça com ele e com o outro polícia lá na salinha onde tem o pau-de-arara”.

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II. A filosofia na alcova

 

Cusco, dezembro de 2009. O taxista da Plaza de Armas entende a errância notívaga deste mochileiro e sentencia:

– ¡Conozco el lugar perfecto donde te vas a relajar! ¡Vámonos!

O carro vai sacolejando pelo semiasfalto, Jaime, o taxista, sintoniza no talo uma música ao ritmo do charango e da flauta incaicos, vamos rasgando os Andes, a estradinha começa a serpentear, o hijo de puta faz as curvas da náusea com apenas uma das mãos ao volante – é quando Jaime aponta para um vale à esquerda, onde há um descampado bem iluminado.

– Listo, ya está, ahorita te vas a quedar contento, ¡mi amigo de Brasil!

Quando nos aproximamos, entrevejo uma infinidade de quartos que se enfileiram por três arestas de um quadrado.

– ¿Quieres que te espere?

Jaime vai embora com o valor da corrida mais alguns solecitos de gorjeta.

Diante de cada porta há uma puta; diante de cada puta há uma fila. Um puteiro nativo, sem turistas, conforme Jaime me havia prometido. Quando as portas se abrem, a impaciência fica ainda mais dura.

30 minutos, 20 soles.

1 hora, 30 soles.

(Sem limite de ripadas: uma, duas, até mesmo três, a depender do camarada.)

À época, se bem me lembro, 1 sol valia R$ 0,80.

A guardiã do quarto 17 me gusta mucho. Olhinhos puxados, nariz e queixo sutis, mãos pequeninas, dedos ágeis – a pele bem lisa me permite sentir conforme ela vai ficando eriçada. Zulema ludibria o cheiro do rodízio masculino com incenso. Ela me olha e me despe com curiosidade – despacio, bien despacito. Unhas caramelos vão resvalando minhas coxas enquanto a calça e a cueca descem com os dentes. Conforme ela vai voltando, os bicos dos peitos roçam minhas canelas e os joelhos, ela vai serpenteando como uma viborazinha, até que passa a puxar a pelaria do meu peito enquanto tenta me engolir até a garganta.

Ela monta sobre mim – Zulema é inusitadamente apertada –, as mãos se apóiam em meus joelhos, ela pende como uma gangorra, sobe e desce despacio, bien despacito, sem encostar el culito en mi piel, e pede (a suplica entre os gemidos) que meu dedão vá roçando o grelinho.

– ¿Sabes qué, Ricardo? (¿Te llamas Ricardo, verdad?) Hace un buen rato que ya estoy aquí, y ahorita puedo ver una cosa muy rara…

Nu e algo tresvariado pelo êxtase e pelo incenso, preciso aprumar os ouvidos:

– ¡Hace tanto tiempo que estoy aquí! De hecho, ¿cómo voy a vivir sin plata? Pero también la verdad, Ricardo, es que ni siquiera me acuerdo de como es la vida sin la noche, ni siquiera me acuerdo de como es la vida más allá de la noche, ni siquiera sé más para donde van las miradas que no me quieren: ni siquiera me acuerdo de como es no ser deseada. Y aquí todo es crudo y desnudo. Aquí soy la confidenta de las confidentas – uno no tiene miedo de decirme sus secretos, él no me conoce, nadie me conoce, no nos conocimos. No es que aquí las máscaras no existen – todavía hay hombres que sacan sus anillos antes de venir aquí. Lo que pasa es que, aquí, en el corazón de la noche, las máscaras no tienen ningún sentido. Todo es crudo y desnudo. De hecho, aquí vienen ustedes, ustedes tienen el dinero, aquí me buscan ustedes. Pero, si yo quiero a alguien y cuando yo quiero a alguien – ¡si yo te quiero y cuando yo te quiero! –, yo sé bien como hacer para que tu búsqueda sea, en verdad, mi búsqueda, yo sé muy bien como hacer ¡para que seas mío! ¡Siempre!

 

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III. Yin, Yang e Yin

 

Havana, julho de 2013. Do meu quarto sobrelevado no hotel Lincoln, a 300 passos do Malecón, tenho um panorama da podridão de Habana Vieja. Fachadas coloniais rotas e escoradas por aríetes e andaimes de madeira, paredes descascadas, paredes infiltradas pela maresia do Caribe, paredes de cortiços e puxadinhos, gambearras elétricas com os nós e aporias do paredón.

Consta que, em um 1º de abril imemorial, um ditador Matusalém teria decretado que, a partir de então, não mais haveria meretrício. (Os chefes do mercado negro, a necessária má consciência do Partido e do Exército, estouram garrafas e mais garrafas do champanhe destinado aos turistas.)

Consta que, em um 1º de abril imemorial, Luís XIV teria decretado que, a partir de então, o sol não mais poderia nascer aos domingos. Caberia ao Rei Sol iluminar a tudo e a todos após a missa. (Os chefes da guarda real, a necessária má consciência da corte, preparam o ópio dominical outrora destinado apenas aos clérigos e às cortesãs.)

Las habaneras no pueden hablar directamente con este escritor. Caso um policial veja uma cubana de mãos dadas com este turista no Malecón, o soldado me demandará a carta de registro estatal da relação. Caso eu ainda não tenha registrado a relação em uma delegacia, la cubanita será levada imediatamente para averiguações. Para o Minint (o Ministerio del Interior) e os agentes e olheiros e delatores da polícia política, a mera suspeita beira o meretrício. {O dolo ardiloso da suspeita diz mais sobre quem são os acusadores do que sobre as [(pres)supostas] rés do processo.} Caso o meretrício seja efetivamente tipificado, consta que sentenças em fazendas de reeducação social pelo trabalho poderão ser decretadas sumariamente.

¿Patria o muerte?

Não.

Patria y muerte: a distopia faz a cafetinagem se insinuar pelas frestas da amizade.

Mirela e suas pernas longilíneas passeiam pelo Malecón ao lado de Miguel Rufius, “con quien tienes que hablar por si acaso quieres conocer a Mirelita”.

Mirela caminha dez passos adelante, enquanto Miguel Rufius e eu ponderamos as iguarias cubanas.

– Ya sé que eres brasileño y ya sé ¡que guapas son las brasileñas, compañero!, no te contesto para nada, pero te voy a decir una cosa no más y te vas a acordar después de lo que te voy a decir ahorita: ¡Mirela vale por dos, compañero! Una vez más: ¡Mirela vale por dos!

Cada vez que Mirela me olha por sobre o ombro direito com mais desejo, meu poder de barganha com Rufius definha.

O câmbio da dinastia Castro sob o embargo dinástico de Uncle Sam faz 1 CUC (peso conversível para turistas) valer mais do que 1 dólar. Quanto ao peso cubano e à subtração (e à inexistência) dos pães, “la garantía soy yo”.

Rufius, por intermédio de Mirela, e Mirela, por intermédio de Rufius, querem 100 CUCs “por los momentos felices”.

(100 CUCs, se convertidos em pesos cubanos, perfazem a renda de meses e meses a fio de uma família habanera sin contactos políticos importantes y/o sin amigos en el mercado negro.)

Após cruzarmos alamedas, andaimes e submuros – Mirelita siempre adelante –, chegamos ao local de despedida de Rufius.

– Fíjate, compañero de Brasil: ¡Mirela vale por dos! (Ela sorri e já me abraça e me enlaça com uma das pernas.)

Nos beijamos em cada um dos degraus, Mirela morde minha boca e meu pescoço com fúria e carinho – a combinação única da latina –, ela me puxa e me morde, me morde e me chupa, sinto meu pau crescendo dentro da boca dela, junto à língua que gira ao redor da cabeça, e Mirela me quer ali mesmo, contra a parede, as pernas me enlaçam rente, ela fecha os olhos e vai inclinando a cabeça para trás enquanto entro despacio, bien despacito.

– ¡Ay, mi vida! ¡Dame duro, papi, dame fuerte!

Mirela lambe minha boca, ela me beija e cospe, a língua não se deixa chupar, ela foge e me lambe mais, rolamos escada acima e abaixo, entre gritos e gemidos ela foge e me leva pra cama, uma cama grande e sem rangidos, rente ao chão.

– ¡Cálmate!

Ela traz rum, vai me mordendo e depois embebe as marcas e chupadas com rum, arde, arde muito, “¡haz eso en mi Mirelita, rubio, hazlo pronto!” No começo, tenho receio de machucá-la, mas ela pede que eu morda o grelo mais forte e mais rápido, “¡dale ron ahorita!”

Ouço uns risinhos inusitados: não parece ser Mirela; não parece ser apenas Mirela.

Paro e espreito.

– ¿Qué pasa, rubio?

– ¿Hay alguien más aquí?

Mirela engasga de tanto rir.

– ¡Mirela! ¿Qué pasa? ¿De qué te ries? ¡Dímelo no más!

A cortina – e um vulto.

Faço menção de me levantar, mas Mirela me enlaça com as pernas e me beija fundo. Quando dou por mim, duas Mirelas me dividem:

– Quiero que conozcas a mi hermana Mirella, rubio: ¡somos gemelas!

Yin e Yang: Mirela me chupa, eu chupo Mirella, Mirella chupa Mirela.

Yang e Yin: Mirella me chupa, eu chupo Mirela, Mirela chupa Mirella.

Enquanto Mirela (ou Mirella) me cavalga, Mirella (ou Mirela) senta na minha boca.

Enquanto eu como Mirella (ou Mirela) e chupo Mirela (ou Mirella), as gêmeas Mirela e Mirella se beijam, peito contra peito.

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IV. Um lírico no auge do capitalismo

 

Frankfurt, outubro de 2013. Feira Internacional do Livro (ano dedicado ao Brasil).

Após o primeiro dia de (intermináveis) reuniões editoriais, após ter conhecido o (possível) prédio da Escola de Frankfurt e o monumento à memória do bom e velho Theodor Wiesengrund Adorno – sua mesa de trabalho sobre a qual jazem uma luminária verde, sua caneta e alguns manuscritos e partituras, tudo encapsulado por uma grande campânula retangular e translúcida [o coágulo da dialética: é possível ver a obra, mas não é possível tocá-la, continuá-la (e partilhá-la)] –, este escritor vou até o atendente do hotel em que estou hospedado e, após chamá-lo de lado por conta das duas funcionárias que ali estão, lhe pergunto sem mais:

– Wo sind die Frauen hier in Frankfurt?*

A princípio, Fritz não sabe se entendeu muito bem, mas, após entrever minhas sobrancelhas arqueadas e meu maroto sorriso de soslaio, nem mesmo um alemão deixa de reconhecer a brasilidade: Fritz delimita, com caneta azul, o Red Light District no mapa de Frankfurt.

Prédios e mais prédios de putas, andares sobre andares de putas.

Russas, estonianas, lituanas, letãs, polacas, romenas, ucranianas, búlgaras, albanesas, tchecas, eslovaquas, húngaras, croatas, bósnias, turcas, colombianas, venezuelanas, indonésias, filipinas, tailandesas.

30 euros, 30 minutos.

50 euros, 1 hora.

(Uma única pilada.)

Quartos e mais quartos pelos andares que se sucedem a partir das escadas em caracol. Como em Cusco, o camarada negocio diretamente com Helga, uma ruiva peituda de Düsseldorf.

Assim que fecha a porta, Helga me mostra o relógio: 23:32.

O laconismo de Helga vale 30, mas esses peitos me fazem pagar 50. Babando, vou diretamente até eles:

– Nein, nein, nein!*** Para chupar meus peitos, são mais 10 euros.

– Was?!****

Helga então me chupa (jamais sem camisinha) e, assim que fico totalmente em pé, ela se põe de quatro.

Helga olha para frente – ali está o relógio da cabeceira da cama, 23:37 – e para a esquerda – ali está o relógio de parede, 23:42.

É preciso mais KY, a camisinha pode estourar – Helga usa a cuiazinha da unha do dedinho direito para lubrificar minha camisinha verde.

Quando faço menção de virá-la de lado, “são 15 euros para cada mudança de posição”. 23:47.

– Ah, então só pode uma posição?!

– Por 50 euros, nur eine Stellung*****.

Ocorre que Helga não havia dito nada sobre a intensidade das bombadas.

Pois então a Escola de Frankfurt vai conhecer a Escola Brasilis.

Como não quero pagar 15 euros adicionais, Helga volta a ficar de quatro.

No começo, bombo su-til-men-te – não ouço qualquer gemido da Helga pendular a olhar para frente e para a esquerda, para a esquerda e para frente. 23:52.

Aos poucos, a cobra começa a fumar – e toma-lhe pica!, e toma-lhe rola!, e toma-lhe pica!, e toma-lhe rola!, tento pegar as tetas de Helga ali por baixo, “são 5 euros a mais”, então sequer faço menção de lhe perguntar quanto custa um tapa nessa bunda branca, até que, com força e sem parar, sem parar e com força, Helga já não sabe se olha para frente ou para a esquerda – ela se perde à direita, vejam só! –, um gemido parece sair, ela cala a própria boca com a mão esquerda, eu não me aguento, lambo as costas dela, Helga ameaça ficar brava, mas eu me jogo com tudo em cima dela e continuo a bombar, sem parar, com força, por cima dela, corpo contra corpo, mirando fundo aqueles olhos azuis.

00:02: Helga, pela primeira vez, fecha os olhos.

00:12: Helga, pela primeira vez, morde o lábio.

00:30: mordisco o lóbulo esquerdo de Helga e puxo seus cabelos, autoritária e sensualmente, para que ela saiba que eu a vejo sentir, lá embaixo, a esporrada quente que a vai inundando.

Quando tiro o pau e dou um nó na camisinha, Helga se levanta, algo cambaleante, e pega papel e caneta. 00:33.

00:37: Helga me entrega uma lista que discrimina os 37 euros a mais que lhe devo:

(1) Lambida nas costas: 3 euros;

(2) Puxada de cabelo: 5 euros;

(3) Mordidela no lóbulo direito e mordidela no lóbulo esquerdo: 3 euros cada; total: 6 euros;

(4) Tentativa de beijo na boca: 6  euros;

(5) Lambidas e mordidelas no pescoço e no rosto – impossível calcular quantas; valor total em relação à coloração do meu pescoço: 7 euros;

(6) Tentativa de sodomia – sua glande emperrou na portinhola – seguida por dedada com penetração parcial da primeira falange: 10 euros.

Total: 37 euros.

– Dinheiro ou cartão?

A máquina de Helga aceita Visa/Visa Electron, MasterCard/MasterCard Maestro, Diners Club e American Express. 00:42.

Quando a porta de Helga se fecha às minhas costas, olho ao redor do andar: todas as portas estão fechadas.

É quando me lembro de Marta.

Mesmo me vendo sair extenuado da casa de Mirela e Mirella, a habanera Marta assim sentencia:

– El deseo es como una subibaja – y como una banca de apuestas: si lo que sube tiene que bajar, en poco tiempo lo que baja quiere volver a subir. Ya vas a volver, mi rubio, y pronto me vas a querer. Así es.

 

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V. Be like water, my friend, and follow the white rabbit

 

Chicago, semana passada.

Termino de escrever ao redor das 23h – só então me lembro de que não havia jantado. Por sorte, ao longo da Lawrence Avenue há uma série de restaurantes mexicanos, chineses e coreanos abertos madrugada adentro.

Caminho ensimesmado, a narrativa ainda me toma de assalto, até que um tac-tac-tac de salto alto contra a calçada me iça da ficção para o rebolado e o sorrisinho maliciosos de Elizabeth.

– What are you doing alone at this time of the evening, honey?

– Well, sugar, let’s call it a job… (Olhos negros como dardos.) I’d be happy to make you happy…

Súbito, precisamos nos afastar momentaneamente: uma viatura da polícia – We serve and protect – faz a ronda.

No estado de Illinois, o meretrício é proibido. Não há puteiros.

Ora, quando a hipocrisia se confunde com a castração, a noite e suas frestas restituem à insônia aquilo que não nos deixa pregar os olhos.

Be like water, my friend: a norma está para o que é sólido, assim como o real está para o que é líquido – e para a liquidez. O líquido tem a forma do recipiente que, momentaneamente, o contém.

Sometimes, é melhor confinar o pó embaixo do tapete, de modo que apenas alguns consigam inalá-lo. Em Berlim, nas cercanias da Schönleinstraße, no bairro de Kreuzberg (região predominantemente turca), há um parque singelo e pequeno-burguês onde alguns africanos vendem marijuana à vista (grossa) dos funcionários da prefeitura que recolhem as folhas de outono. Desde que o tumor tenha sido localizado e delimitado – o Estado sentencia que o câncer não tem cura –, a profilaxia envolve a impossibilidade de metástases. Once in a while, alguém vai para a cadeia para que os agentes penitenciários de Berlim possam justificar o salário diante dos munícipes.

(No estado de Illinois, o meretrício é proibido. Não há puteiros. Enquanto isso, um subempregado e um desempregado podem assinar contratos com laboratórios farmacêuticos para se tornarem guinea pigs – denominação eugênica das cobaias. Afinal, é preciso realizar os devidos testes para que os futuros consumidores possam ignorar todos e quaisquer collateral damages. We protect and serve.)

Os cães ladram, mas a caravana passa: a primeira à direita e 40 passos depois, os 19 aninhos de Elizabeth voltam a rebolar ao meu lado.

– Are you ready for this, sugar?

– How much?

– It depends on what you wanna do…

Meu olhar escaneia Elizabeth.

Meu sorriso de soslaio não lhe deixa quaisquer dúvidas.

– US$ 150.

– US$ 150?!

– Well… How much can you pay me?

– How about US$ 80?

– US$ 80?!

– Well… How much do you want?

– How about US$ 120?

Nem eu e nem você, Elizabeth:

– Let’s make it US$ 100!

– Deal.

– But where are we going?

– Just follow the white rabbit, honey, come with me…

Chicago jamais vai se esquecer do incêndio devastador de 1871. Entre as casas e entre as ruas e alamedas há sempre alleys, vielas onde ficam as latas de lixo e onde há sempre escadas de fuga como as colunas vertebrais dos prédios.

Elizabeth me leva à beira da viela mais escura – e mais estreita e mais repleta de latões de lixo. Ela estende a palma da mão direita e me olha com decisão:

– Money first.

Saco da carteira 5 notas de 20 com o semblante algo taciturno de Andrew Jackson, o sétimo presidente dos EUA.

“This note is legal tender for all debts, public and private”, because In God we trust.

Vamos nos esgueirando – ao fundo, a TV do vizinho nos deixa ouvir as risadas estúpidas de mais uma série americana.

Abro o zíper da jaqueta de Beth e logo chupo os peitos negros e macios. Ela geme quando minha mão gelada se enche com a bunda grande e carnuda. Nada de beijos, nada de chupões. (Ouço um ruído de algo como unhas a raspar o chão – torço para que o possível rato não suba pelas minhas calças semiarriadas.)

Beth morde a ponta da camisinha e a desliza pelo meu pau. Enquanto cospe e chupa, ela dedilha as bolas.

Beth apóia as mãos na parede de tijolos e curva a lombar até minha rola. Quando começo a bombar com força, minha bunda bate na lata de lixo. “Xiiiu!” Silêncio, Beth? Como é possível meter sem urrar e sem ouvir o compasso dos choques? What an ass, Beth! Bunda grande como uma moranga, puxo a crina dos cabelos – “not too hard, come on!” –, logo fica calor mesmo sem minha jaqueta, sinto Beth mais viscosa, ela encosta o rosto na parede e, mesmo aos sussurros, geme quando enterro o pau com uma pegada firme na cintura. Quando ela exala que I’m feeling your balls hitting my clit, tenho que apertar a base da rola pra não gozar. Oh, my God, OMG! Então ela se vira e me puxa pra si, a mão direita roça minha nuca e meus cabelos, a mão esquerda busca meu pau – ela encosta na parede, abre a perna direita, fica batendo minha cabeça no grelo até que volto a sentir o calor viscoso a engolir a rola. Quando ouvimos um carro ao lado da viela, nos jogamos no chão, but it’s nothing, keep fucking me, de ladinho – tem hora que eu ponho a mão no pau pra ver se a camisinha ainda tá lá, quando tá muito bom a gente duvida. Então ela rodopia, me mostra o iPhone iluminado – midnight is gone!, it’s about time for you to cum, honey, come on!, honey, cum for me – ela tira a camisinha e cospe na mão e no meu pau –, feel my hand as the tunnel of my cunt, honey, come on!, cum for me!

Enquanto a porra jorra, ela precisa tapar a minha boca – é quando a manada rasga a savana, é quando a represa rompe a barragem. Meu urro contido morte os dedos dela, Beth não se aguenta e dá risada – come on, honey, let’s go! –, mas meu corpo estirado sente cada uma de suas fímbrias vibrar.

Não deixo que ela volte a vestir as calças sem antes lhe dar beijos e mordidelas na bunda.

– Get my number and call me: (773) 711-2014. What’s your name again?

– I think I haven’t told you my name.

– So what’s your name?

– Ricardo.

– Italian?

– No, Brazilian.

– Nice to meet you, Ricardo, now you can call me Chantal. Call me any time you need me, I’ll be happy to make you happy.

My queen Elizabeth Chantal keeps walking.

E eu ainda não jantei.

De volta à Lawrence Avenue, me deparo com uma viatura em marcha lenta fazendo a ronda to serve and protect.

– Good evening, gentlemen!

Os policiais em flagrante cordialidade:

– Have a good night, sir.

 

 

 

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* Onde estão as mulheres aqui em Frankfurt?

*** Não, não, não!

**** O quê?!

***** Somente uma posição.

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.




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