Homo pendulus
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Evanston, 16 de outubro de 2014
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No trem sobrelevado, also known as “L” (from elevated), já estou a caminho da Northwestern University. Purple line. O trem vai serpenteando entre as casas – via de regra, sobrados. Uma senhorinha recolhe as folhas do outono com um restelo. Senhorinha de costas abauladas e, provavelmente, com o dorso das mãos repleto de nódoas.
Da policromia do outono: folhas amarelas, laranjas, vermelhas (alguns vestígios verdes). Quando chove, o charco frio as vai tornando marrons.
A fronteira do outono prepara a nudez das árvores. Os galhos se irradiam como capilares. Os galhos divergem e se entrechocam como rotas de fuga. O traçado errante dos galhos em busca da luz do sol desvela o ímpeto pela sobrevivência. (Ânsia que a lápide da biologia coagula como o fototropismo.)
Entre as estações Howard e South Boulevard, um enorme descampado desvela cruzes e esculturas.
– That’s the Calvary Cemetery – sentencia um senhor ao meu lado com o indicador arqueado pelo reumatismo. Este senhor de gorro, queixo proeminente e suspiros profundos parece ter convertido o trem em seu refúgio: aquilo que se move quiçá ludibrie a paralisia do calvário.
Desço.
Da estação South Boulevard à entrada do cemitério a nos convocar para as orações do Dia de Finados, 236 passos.
Lápides sobre a relva, estátuas, capelas: um coronel da 23ª Brigada Irlandesa de Voluntários para a guerra civil – wounded in battle at Kernstown, July 24 1864, died July 26 1864 –, soldados da Primeira Guerra, viúvas da Segunda. A história dos Estados Unidos: réquiem.
O capitalismo e seu cálculo instrumental (ainda) não conseguiram suprimir o luto e o respeito aos mortos. (Cativa da história, Pandora agoniza, mas ainda respira.) Para uma época que pergunta pela utilidade de tudo e de todos; para uma época que reduz a comunicação à voracidade das transações; para uma época que desconhece a fragilidade do silêncio; para a pressa de uma época sem preces, o luto e o respeito aos mortos me fazem esboçar um sorriso entre os túmulos.
Vejo girassóis outonais ainda mais amarelos como a oferenda da memória.
Eis a estátua de uma jovem de 17 anos. Olhar difuso e incompreensível: a síntese da vida sustada pela brevidade.
Eis um túmulo guarnecido por um chapéu de bombeiro. 1835 – 1871. Teria David J. Frey sucumbido ao tentar conter o incêndio que devastou Chicago?
Um cachorrinho de pedra vela o leito de sua antiga dona.
Me sento junto a uma árvore seminua e me lembro de uma passagem do pensador alemão Walter Benjamin.
O leitor procura aquecer sua vida enregelada com o transcurso do romance. Ocorre que, quando do último parágrafo, é o próprio leitor que deve vivenciar o Finis.
Que é o cemitério senão um romance – e a necessidade de seu término?
Ninguém permanece em uma estação. Ninguém quer permanecer em um cemitério.
Nossa época virou as costas para o que é eterno. (As mesmas costas que não querem se deitar para sempre.)
O homem que se aceita finito tem os ombros ensimesmados. Ele não sabe por que não leva o próprio niilismo às últimas consequências – todos nós não o sabemos. Como é possível que uma geração respeite a próxima se, em pouco mais de quatro décadas, todos estaremos no Calvary Cemetery? Talvez alguém recorra à noção de que o fazemos por “mera tradição”. Ora, a tradição que velava os mortos se sabia eterna. Respeitar os mortos equivalia a respeitar o país vindouro. Mas, e agora? Por que simplesmente não abandonamos a tudo e a todos? Haveria alguma verdade em meio à nossa rotina de infortúnios? Haveria alguma verdade contra a nossa rotina de infortúnios?
Me lembro do completo diletantismo de Epicuro diante da morte:
“Tolice afligir-se com a espera da morte, pois se trata de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais. Não há morte, então, nem para os vivos e nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais”.
Me surpreendo com o completo diletantismo de Epicuro diante da morte: o filósofo nunca viu o navio de seus pais a se distanciar do porto? O apito profundo da Maria Fumaça nunca lhe fez pressentir (e denegar) o último suspiro? Uma mulher nua com Epicuro dentro de si nunca lhe disse eu te amo? O abraço da amiga e dos irmãos nunca te fez pensar sobre a justiça como o além da finitude, Epicuro?
Levianos, os jogos de palavra tentam driblar a dor com o embotamento da filosofia.
A consciência sobre a morte – a consciência-para-a-morte – marca o início da vida consciente sobre si mesma. (A vida consciente contra si mesma.)
A dor da criança que descobre que vai morrer é um segundo parto. A partir de então, sabemos que a morte há de vir e passamos a viver a ficção de que será amanhã, e amanhã, e amanhã. É assim que o homo pendulus pensa enganar a morte como Sheherazade a protelar o cadafalso com suas 1001 noites.
Há alguns meses, o pai de um velho amigo faleceu. (Mal sabia eu que, pouco tempo depois, meu próprio pai viria a falecer.) Perguntei a Lúcio – chamemo-lo assim – se ele não achava justo e racional que o pai voltasse a viver, que os laços não terminassem, que a saudade fosse apenas um interregno. Lúcio me mirou com o olhar mais triste e profundo que já pude narrar. Encontrei a verdade à deriva entre suas lágrimas, mas o ceticismo repudiou a procura.
– É a vida, Ricardo, é a vida.
Paris, janeiro de 2007.
Um funcionário do metrô nos impede de descer até a plataforma da estação Concorde.
Para conter a horda que já ameaçava romper a fronteira da impaciência, o funcionário sobe em uma das catracas e anuncia o réquiem do cotidiano:
– Um rapaz acaba de cometer suicídio. O corpo está sendo retirado dos trilhos. A linha verde está interditada. Um rapaz acaba de cometer suicídio. O corpo está sendo (…).
A mesma multidão que, há pouco, ameaçava pôr abaixo as catracas agora se afasta com um horror instintivo que contradiz, vivencialmente, a pasmaceira de Epicuro diante da morte.
Eu me recuso a me afastar. (A literatura tem estranhos e subterrâneos laços de solidariedade.)
O funcionário vem até mim e, me notando cabisbaixo, pousa a mão esquerda em meu ombro direito antes de sentenciar:
– C’est la vie, mon fils, c’est la vie.
O Calvary Cemetery é transpassado, de ponta a ponta, por uma artéria que me leva ao lago Michigan. O lago se vê contido pela barricada de rochas contra as quais suas ondas colidem. O cenário rochoso e a vastidão marítima do lago me conduzem à cena inicial de O Sétimo Selo, do bom e velho Ingmar Bergman.
Em uma praia pedregosa do litoral sueco, o cavaleiro medieval Antonius Block se depara com a Morte em seu traje negro. O rosto branco e redondo como a lua cheia desponta da noite do capuz e revela ao cruzado o término de seus dias. Block acabara de se banhar. Ele sobrevivera à peste bubônica, mas sua fé se esvaía pelas frestas da armadura.
A Morte abre as asas de sua capa negra como o corvo agourento, mas Block desafia a nossa certeza: o cavaleiro propõe à Morte uma partida de xadrez. Se saísse vencedor, a Morte daria sobrevida ao cruzado. Do contrário, Antonius Block já não poderia tergiversar com o xeque-mate.
– Cuááá, cuááá!
Um corvo sobre o muro do cemitério.
– Cuááá, cuááá!
A sentinela.
O ceticismo de nossa época revela a inverdade de seu desprezo pelo eterno quando o escroque contumaz, à beira da morte, pede perdão a quem ofendeu. Pai e filho querem se reconciliar, os irmãos se lamentam pela ausência, marido e esposa se esquecem das traições, o ressentimento depõe armas, o rancor já não range os dentes, mesmo o orgulho desce de sua altivez. A morte reaviva a compaixão.
Um seguidor de Epicuro bem poderia redarguir:
– Ora, a compaixão pelo moribundo é o desprezo velado por aquele com quem já não vamos medir forças. A compaixão pelo moribundo é a esmola para o mendigo.
Pobre epicurista, tataraneto da dúvida dogmática – a dúvida que não se volta contra si mesma, a dúvida que não consegue pensar a contrapelo da própria hesitação –, bisneto de Maquiavel, neto de Hobbes, filho de Nietzsche: não há sentimento nobre que você não queira aviltar, não há bondade que você não queira deduzir a partir do egoísmo. Que haja a entrega, que haja o ímpeto pelo amor, que haja a vontade de embalar um bebê, que haja lágrimas, que haja o luto, que o sofrimento tenha um veio de redenção, que haja o perdão, que Antonius Block ainda queria jogar xadrez com a morte, nada disso lhe parece dizer respeito – nada disso lhe parece tocar. É por isso que o cético contemporâneo, entorpecido pelo utilitarismo do instante-já, não consegue explicar por que o dogma da maximização das satisfações pessoais se vê afrontado pela depressão diariamente prescrita. [Amputam as pernas dos homens e mulheres, dão por encerrada a caminhada rumo ao sentido, reduzem a alegria ao mero espasmo, comprimem o abraço ao frio aperto de mão, a lágrima passa a ter vergonha de si mesma, a confiança (o fiar conjunto) se transforma em estratégia, mas, ainda assim, os céticos querem se iludir quando não aceitam a automutilação e o suicídio como as decorrências fundamentais de seu embotamento diante da vida – e, sobretudo, diante da morte.]
O homem do subsolo, protagonista de Memórias do Subsolo, do bom e velho Fiódor Dostoiévski, não acredita em mais nada. (Logo veremos que ele também não acredita em quem deixa de acreditar.) O homem do subsolo, intelectual niilista, é o porta-voz do ressentimento de nossa época. Para o dostoievskiano em questão, o homem é o animal que se lembra, ou pior, o homem é o animal que não se esquece. Ele já não consegue ter contatos efetivamente humanos com as pessoas, o subsolo é mais do que o seu refúgio – o subsolo é sua cripta, o subsolo é o prenúncio de seu túmulo. Então, o homem do subsolo se vangloria em face dos leitores pressupostos – diz ser mais inteligente e espirituoso do que todos nós, afirma ser mais vivaz, sentencia que compreende as filigranas do que nem de longe podemos entender. Mas, ainda assim, ele não consegue romper a membrana de sua solidão. Ele quer voltar a brindar com os demais, ele quer ter amigos, quer (re)encontrar a amada, mas o homem do subsolo, consciente contra si mesmo, bem sabe que o ceticismo começa a converter o prazer em dor – eis o prazer do cão que se regozija em morder a própria cauda, o prazer do cão que arranha as próprias feridas, o prazer pela dor que se alimenta de si mesma, o prazer pela descrença que passa a doer, o prazer pela dor que já não quer crer em nada mais a não ser em si mesma. [Afinal, se algo despontar em meio à e para além da dor, o cético deixará de ranger os dentes e terá que abandonar o ressentimento do subsolo. (Eis que o homem do subsolo passa a sentir pena das grades que o acometem – talvez ele queira grades ainda mais espessas para que não haja quaisquer riscos de a dúvida se infiltrar pelas frestas de sua couraça.)]
Mas então deveríamos perguntar por que o homem do subsolo sofre, por vezes, como se ainda houvesse um sentido. O homem do subsolo alardeia aos quatro cantos que é mau e desagradável, que lhe apetece assistir ao sofrimento alheio, que seu amor próprio doentio – aliado à autoflagelação não menos patológica – deforma as relações com os demais como sucessivas e inequívocas quedas de braço. Porém, se assim fosse indefinidamente, por que ele tentaria se redimir diante de Liza, a prostituta? Retomemos brevemente o contexto da narrativa: o protagonista sai de seu subsolo para encontrar antigos “colegas” dos tempos de escola. Todos o desprezam por sua atual condição – o baixíssimo salário, a moradia indevida, as vestes decrépitas. Mas o homem do subsolo ainda pode se escorar em sua condição intelectual mais elevada. O jantar que marca a despedida de um dos convivas para uma província longínqua da Rússia – um pedágio necessário para que Zvierkóv alcance novos patamares na carreira pública – logo se transforma em um verdadeiro duelo entre o achincalhado homem do subsolo e os demais que não sabem por que o paradoxalista teria sido convidado. Pois bem: a narrativa progride vertiginosamente, de modo que a personagem se mutile cada vez mais na medida em que percebe que os outros a desprezam. Quando um “colega” sugere que o ordenado do protagonista é baixo, o homem do subsolo vai e revela o quanto ganha; quando tudo já está se desfazendo, quando todos o abandonam para ir a um bordel, nosso paradoxalista, no ápice da desolação e da humilhação, se ajoelha diante do anfitrião do jantar – para pedir dinheiro emprestado. Dostoiévski apresenta sua maestria em fundir pontos de virada narrativa a cicatrizes da alma. Ocorre que o homem do subsolo, demasiado humano, vai ao bordel ao qual teriam se dirigido seus “colegas” para tirar a limpo toda aquela situação humilhante. Lá chegando, não encontra os convivas, mas a jovem prostituta Liza, oriunda da belíssima cidade medieval de Riga. Dostoiévski sabe utilizar como ninguém a simbologia da dominação. Se a Rússia de fato nutre um complexo de inferioridade e um ressentimento historicamente geridos em relação à Europa Ocidental, os Países Bálticos – Letônia, cuja capital é Riga, Estônia e Lituânia – sempre sofreram as invectivas do imperialismo russo. Assim, os civilizados “colegas” do homem do subsolo que há pouco o haviam humilhado agora fornecem o furor para que o ressentimento subterrâneo seduza e humilhe a prostituta letã. E assim teríamos a transferência inequívoca da dor para o outro, mas, em um primeiro momento, o homem do subsolo lança mão de uma conquista livresca para ganhar a confiança de Liza e doutriná-la a deixar, de uma vez por todas, a vida no meretrício. A jovem se vê cativada e revela ao protagonista que chegara a receber, há poucos dias, uma carta de um estudante que, insciente em relação à sua vida desgraçada, a queria cortejar. Liza poderia então casar-se! O homem do subsolo tenta sufocar a compaixão que sente e, num rompante, dá seu endereço para Liza a fim de que os dois continuem a conversar em um local mais humano. O desfecho do imbróglio de fato leva Liza, alguns dias depois, à casa de nosso protagonista, e o momento da chegada da jovem não poderia ser mais dostoievskiano – o homem do subsolo acabara de ser humilhado por seu criado, o altivo Apolón que, munido de efetiva consciência de classe, se recusava a fazer os serviços até que seu salário atrasado lhe fosse pago. Assim, ainda uma vez, a humilhação deve ser paga com mais humilhação. Então o homem do subsolo começa a injuriar Liza e passa a lhe dizer que tudo aquilo que havia recomendado a ela no bordel não passava de um engodo para seduzi-la e torná-lo altivo perante seus olhos. O homem do subsolo se faz trêmulo, diz e se desdiz e, no ápice da fúria que se mescla ao torpor, começa a chorar. Ora, mais um motivo para despertar sua suscetibilidade doentia, porque ele chora diante de uma prostituta, se rebaixa diante da mais vil das criaturas socialmente proscritas. Mas eis que a maestria de Dostoiévski atua ainda uma vez para que a dúvida irrompa do seio da crise: Liza não se mostra uma desalmada que simplesmente relega o homem do subsolo. Ela se condói pelo outro e começa a chorar junto com o protagonista como que a tomar para si sua dor. Então, o homem do subsolo, o ressentido por excelência, o ardiloso, o maquiavélico, o sádico, o masoquista, expele a dúvida e revela que Pandora também o visita no subsolo:
– Não me deixam… Eu não posso ser… bondoso! – mal proferi; em seguida fui até o divã, caí nele de bruços e passei um quarto de hora soluçando, presa de um verdadeiro acesso de histeria. Ela deixou-se cair junto a mim, abraçou-me e pareceu petrificar-se naquele abraço.
De onde vem esse ímpeto de bondade?
De onde vem esse ímpeto por bondade?
(Como a bondade consegue subsistir em nossa época subterrânea?)
Epicuro e seus discípulos relegam tais perguntas ao corvo do Calvary Cemetery:
– Cuááá, cuááá!
Ora, se o fundamento da vida é relegado como algo menor, se a vida é comprimida para aquém de si mesma, a depressão e o subsolo desvelam a sanidade em meio à patologia: o torpor faz o homo pendulus sofrer, porque ele não consegue se resignar, assim como entre as rochas-barricadas que contêm o avanço do lago Michigan crescem a mesma relva e as mesmas flores pequeninas, amarelas e frágeis que velam as lápides no Calvary Cemetery.
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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
20 outubro, 2014 as 18:08
20 outubro, 2014 as 18:10