SALVE: INFINITO
ou A morte de Clarice Lispector , um monólogo de Julia Sorel
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“Lá pela aurora acordou. Oh, que doce música! a sua alma está toda molhada de orvalho. Por sobre os seus membros adormecidos, haviam passado frias ondas muito pálidas, de luz.” (JOYCE. O retrato do artista quando jovem)
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“E ele, começando a ver: ‘ veja as pessoas como se fossem árvores andando…” (Evangelho Segundo Marcos, salmo 24)
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“…e havia qualquer coisa de infinito no fundo dos seus olhos.” (PRUDHNE, Sully. Diário íntimo)
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” Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça” (BEY, Hakim)
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” O Todo é o sustento dos seres…Descubra o simples…O Todo é sem nome” (TRIMEGISTO, Hermes)
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” Oh! Decididamente o meu reino não é deste mundo! nem do outro..” (QUINTANA, Mário)
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“…qual o proveito de um homem que ganha o mundo inteiro, mas perde — como é mesmo? — sua própria alma?” (WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p.257)
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“Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se a grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo.” (CAMUS, Albert. Estado de sítio; O estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p.298)
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“…pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado.” (MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967, p.286)
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“Não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de descobrir-se.” (KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1983, p.47)
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“…Não seria o senhor apenas um pretexto para que minha história chegue ao mundo?” (UNAMUNO, Miguel. Névoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.167)
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“fria e imutável é nossa eterna essência,
frígido e astral o nosso eterno riso.” (HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.141)
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“…casi siempre en la oscuridad o con algo de mano o de pie rozando el cuerpo del que apenas escucha, porque hace tanto que apenas te escucho cuando dices cosas así, eso viene del otro lado de mis ojos cerrados, del sueño que otra vez me tira hacia abajo.” (CORTÁZAR, Julio. El rio. In: Final del juego. México: Ed. Los Presentes, 1956)
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“Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la.” (BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 2001, p.112)
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“E o que havia ali para ser entendido, era o corpo que entendia — num viés absolutamente novo, onde as imagens se estendiam sobre as sensações — ou, antes, se enlaçavam a elas.” (PINTO, Claudia Roquette. Margem de manobra. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005, p.15)
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“a solidão
Bashô
em mim” (CRUZ, Edson. Mi menor. In: Sortilégio. São Paulo: Demônio Negro, 2007, p.72)
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“Agora,
Um pedaço orgânico de palavra se contorce, espasmos
de vida
e pulsa ali e morre
como um peixe asfixiado…
tudo por finda afinal, tudo inacabado…” (MACKELLENE, Léo. O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios. Fortaleza: Mangues7Letras, 2006, p.46)
1. A FUSÃO DO UM
, desista : a regra secreta no olhar do tempo é esse instante de nuvem morta e transparente , como se fosse possível ler a voz de um desconhecido desintegrando-se diante do olhar que é a canção dentro do espaço de um nome e será um instante branco como a senha no rosto deste morto ou morta no interior de uma cela ou de uma floresta , desista porque o amor desiste
sobre a incidência que existe no que sobra de uma sombra que é doce desejo de estar fora . Delicada é a costura em ponto de cruz , atravessando o tecido deslembrado em que se perfura a agulha no revés permissivo do erro e fere o dedo — riscadura do momento entre — alinhavo de surpresas em bordas de fios que tramam uma fisgada no dedo, desista
o amor desiste enquanto há um medo em esbanjamento , enquanto há no espaço de um nome um segredo que nunca se revelará e — no enquanto — gargalha alto , engolindo a súplica do olhar apelidado de nuvem
é como se de mim tivesse chovido na idade do transbordamento
na agulha do tempo que estoura o balão de água
agora sou tudo o que racha , tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede , sim , existe toda uma constelação de diferentes sedes dentro do corpo
estou sentindo o desejo controlável de enfiar a cabeça dentro do oceano e beber um grande gole de água salgada
estou possuída pela sede demoníaca , perto de mim , na cabeceira da cama , há um copo d’água com uma rosa vivendo nele . Como será sentir a sede da rosa em um copo vazio ? saiu de mim a água que enchera o copo onde a rosa agora vive
e eu tão menor que ela , tão menos sublime
esvaziei-me para alimentá-la a fim de preferir sua vida menos maliciosa , menos consciente e por isso , com mais direito à existência , pertencendo onde me agarro com dentes amarelados e unhas já esfoladas . Sou o que eu persigo . Todo rudeza . Todo imobilidade
na verdade , transformo-me no copo vazio . Sou o que veio antes da água chegar e fui bebida num gole só
na verdade sei como é esta outra sede demoníaca porque estou morrendo mais rápido do que antes . Estou dentro de uma coisa chamada : ‘Paciente em estado crítico’ e essa coisa é como ser um copo para a terrível ausência do campo de rosas vivas
gosto de olhar a rosa e enxergá-la na sua existência de cor e perfume , porque instintivamente os sentidos me resgatam do esquecimento . Toda rosa é uma verdade colorida que me alcança , nas minhas folhas datadas de outrora , sedentas e sedosas
finalmente penetrei no silêncio com as minhas próprias mãos , que confesso se parecem agora com duas águas-vivas dormindo no meio do oceano , quando digo no meio do oceano quero dizer na parte insondável , estou pensando o seguinte : se me esforço um pouco posso ver minhas duas mãos velando meu corpo aproveito para ordenar mentalmente a uma delas que me apanhe um cigarro , assim , por puro prazer em ver-me de alguma forma queimando , na tentativa de fabricar nova tatuagem na pele interior , embora não tenha mais importância saber qual é a marca do maço de cigarros que minha amiga trouxe escondido , dentro da bolsa – dispositivo flutuante que me aparta do naufrágio – , e minha mão esquerda dança até a bolsa no colo da minha amiga que está realmente dormindo e abre o zíper com o cuidado , como se desarmasse uma bomba , não gostaria que ela acordasse , o detalhe que dificulta um pouco são essas agulhas ( novas bússola através das quais me conservo ciente das possíveis direções ) nos meus pulsos , esses dois cordões umbilicais que imagino me ligam mais a morte do que a vida , sei que não deveria pensar desse modo , é porque estou vivendo na superfície do paradoxo em áspera desorientação que não alcança o que acomoda , gostaria de estar escrevendo o que estou pensando aqui na escuridão interior da doença , o paradoxo é o contraste entre esta escuridão profunda da proximidade da morte e a iluminação suave da presença da amiga , e toda presença é , o que me extrai do estado de quase não-ser
esta centralização dos volumes ajuda-me a fabular o meu estado físico de pertencimento no quarto . Percebo-me no que se manifesta . A amiga que se lembrou de comprar minha marca preferida de cigarro funde-se com o que sou , foi a coisa que pensei quando ela sussurrou no meu ouvido : Clarice , meu amor eu trouxe um maço de CONTINENTAL e uma maçã
é óbvio que nada disso está realmente acontecendo e que estou dentro daquilo que em linguagem médica é conhecido como onirismo . No entanto , tudo o que percebo é que a presença é uma janela aberta para o que existe no fundo do que sinto e sinto uma vontade imensa de acender um cigarro no mesmo instante em que os olhos da amiga estejam apagados
tentativa de vida para a brasa entre os segundos que se traga a esperança , tabaco que não se intimida entre as agulhas insistentes . o que mais prezo é a nicotina atre-vida e recordo-me do que é nascer durante o que sorvo de fumaça aflita , quando enxergo o que pousa brilhante nas paredes verde-aguadas que se estremecem como as algas no mar que é minha alcova atual
antes disso , no enquanto , enxergo ao lado esquerdo da janela de quatro folhas , logo abaixo da última esquadria , uma descamação da parede e isso aconteceu pela umidade dos tempos chuvosos porque ficou como uma bolsa anexada ao que se ereta e me guarda durante os últimos tempos . Já imagino os resquícios de tinta e cal embaixo da unha de uma criança levada pelo destemido desejo de esfolar a saliência . Penso no sabor terroso que pisa na língua e lembro da maçã tão verde que minha amiga me trouxe na bolsa
uma bolsa parecida com a que carreguei comigo durante esses anos todos . onde pude projetar um mundo particular e passeei comigo, levei-me como um simulacro a tiracolo . E quando se corta na moldura rota do espelho . corte que adormece o tempo na lambida do dedo que indica o pensamento . desejo que dói bem depois . o sangue desimpedido desenha um sorriso pela pele . O ônibus cheira a carne que não é minha . mas esse odor instigou-me a encarar a finitude . Entre as janelas eu era um pedaço rasgadinho de pele, apenas , entre todo o tecido muscular que pulsa em um terminal rodoviário . À espera . As esperas . As asperidades refletidas pela água dura e vidros
” como uma atriz preciso sair de mim mesma para me ver no outro , mas se sair de mim mesma como uma atriz , não poderei mais entrar , não será ainda a perfeição da morte , apenas perderei o controle e o espelho não será mais meu amigo, apesar de : não estarei mais viva aqui e hoje e serei simplesmente meu passado sem atualização e não poderei negá-lo no presente , voltar a si e lembrar de si são dois abismos absolutamente diferentes da capacidade de reconquistar a amizade do espelho que liquida o outro , por isso preciso sair de mim mesma , não como uma atriz , mas como uma solução-técnica , volto a pensar em minha bolsa , e em como meu destino é condicionado por essa sensação do trágico indo e vindo na flutuação do tempo e por trás do trágico há o humor , o humor negro da perfeição da morte e ele me parece terapêutico , tudo o que envolve a morte tem um ar terapêutico de cura definitiva da vida e de limpeza das palavras , antes de vir para cá vi um bando de surdos-mudos dentro de um ônibus , eles eram idênticos a minha própria existência aqui nesta sala de hospital , há uma força neutra nesta lembrança que me transforma em um fantasma apenas por dentro do meu pensamento, a enfermeira acaba de entrar , ela é uma prova viva da violência do meu fracasso em sair de mim mesma, fracasso que no fundo me ilumina, como o fim breve da fase das escrituras , como o meio da minha infância , a única coisa nítida fora do desfoque , a literatura foi apenas um dos efeitos do desfoque , ela me dá uma injeção de morfina e começo a escorregar para o supersono acordado . ”
há um recife na minha garganta e algas que se enroscam , sufocam-me . procuro o copo de água mas há embaçamentos e trinca-se a água pela face ressequida . Gotículas de todos os medos são circundadas pela solidão de dias e noites que passam por mim desaforadamente . Não entendo por que não consigo me desvencilhar daquele cheiro de carne do ônibus . Mas também cansei de resistir e o aceito . inalo-o profundamente e toda a cena se reconstrói . a sensação é de que vem do senhor ao meu lado, que toma mais espaço do que o delimitado pelo banquinho do transporte coletivo que me aproxima cada vez mais de mim . Coloco-me numa posição de quase-saindo . De quem ? Desconfortavelmente desaprovo o tamanho do senhor e olho-o . mas seu exame é de um branco tão branco que me olvidei da repreensão e engoli-me . Fecho os olhos e retorno ao quarto . engraçado como navego entre um pensamento e outro e o cômodo permanece no mesmo lugar que não me conforta . E sei que não há culpas . Essas paredes me acolhem , mas como um abraço desengonçado do qual a gente deseja escapulir
é sempre o mesmo cemitério dentro de mim, escavando minha alma que forja uma respiração . A mesma mão fria bulindo com minha esperança na falta de graça da hora que não passa ao meu peito . Quantos moram já dentro de mim ? se eu morrer, ficarei em quem ? qual escolha nos é permitida ? como se dá essa passagem de um sem-corpo a um espaço-fora-do ? aperto o botão do meu medo , arregalo os olhos do quase-ex-corpo e entro naquele branco-de-antes-além , ao tempo de ouvir a voz da minha amiga ainda me chamando , o timbre é belo nessa altura. Ela apertava umas contas azuis-de-sempre-céu no acalmar de si mesma, sobre meu estado, clamando pelo Verbo-é
tilinto meus braços bem abertos em quentura de veias que precisam descansar , segredo de nuvem sussurrado em língua que não experimentei , rasgando a cortina do finito
me lembrei de uma coisa terrível, as estátuas dos anjos nos túmulos nunca estão sorrindo . Esse estranho contraste entre o não-sorriso das estátuas dos anjos e o sorriso totalizante dos mortos , é quase um contraste que explica tudo
Sinto que minha amiga acendeu um cigarro ou será que estou sonhando com o calor da fumaça de um cigarro soprada no meu ombro ou no meu braço, se for um sonho não há muita diferença o corpo fica desproporcional nos sonhos, somos apenas um olho enorme que investiga a antipresença
2. AS VOZES
O Vento : – próxima estação: outra estação nem tão avermelhada era um deserto na garganta que coçava as lembrancinhas cordas vibravam no blues guardado em caixinha nublada da então conta-corrente fugindo se abrindo se libertando dentro de um conto canto de facas intricando s e m fadas sonâmbulas a conta-gotas go-tas negros soluços pisca-piscando jorro serpente picando lambendo casinha de ouvidos tintos aveludados buracos hienas sangrando corujas engolindo cristais pontiagudos sanha servindo à senha incorreta digitar novamente a frase secreta aguardar confirmação – próxima estação: fora do ruído das imagens cada vez mais altas por dentro ( a mentira do acordar)
fundamento de todas as religiões ou o medo de não-respirar mais o próprio eu sufoca de tanta luz ligando para o celular da morte e recebendo de volta a revolução da nossa menor parte que arde no soluçar dos beijos na chama de todas as mortes enlaçadas pelo sussurro brando de um ruído indecifrável tocando no esvaziado sentido de todos os números invertidos que cabem na poeira que retorna ao toque menor do olho do furacão-morte que essa brisa parada anuncia
ares de tocar a pele do tempo aos pedidos de segunda-via viela que segura os passos nem tão trôpegos do medo urgente dos próximos encontros sangrando digitais em mais um pedaço de rasa-rasura dentro das ruínas do Hotel- Memória.
O Espaço: – é um quartinho inteiro de desespero com uma janela quebrada que dá pra rua, uma rua encovada e vaga, dura caminhada lacuna certeza, pedaço de noite sem dormir na boca que mastiga fios de imagens entrecortadas que se prendem aos recordatórios dos dias tão lá atrás, nos bequinhos sem saída que se pregam em nós, para sempre a partir do espelho ou em nosso olhar relembrado em qualquer um nessa fila que demora a andar e esquece um caco refletindo o silêncio de horas rasgando as células do vento entre o abraço de tigresa e seus dentes afiados mas incapazes de rasgar a pele do fogo do tempo…É um quartinho todo branco em silêncio grave regendo um fio inseguro de travesseiro que ensopa de realidade a vida cavalgando no peito-certeza todo improviso de olhares adverbiais no lábio do verbo que grita AGORA É NUNCA!
O Deus : -, desista : a regra secreta no olhar do tempo é esse instante de nuvem morta e transparente , como se fosse possível ler a voz de um desconhecido desintegrando-se diante do olhar que é a canção dentro do espaço de um nome e será um instante branco como a senha no rosto deste morto ou morta no interior de uma cela ou de uma floresta , desista porque o amor desiste
sobre a incidência que existe no que sobra de uma sombra que é doce desejo de estar fora . Delicada é a costura em ponto de cruz , atravessando o tecido deslembrado em que se perfura a agulha no revés permissivo do erro e fere o dedo — riscadura do momento entre — alinhavo de surpresas em bordas de fios que tramam uma fisgada no dedo, desista
o amor desiste enquanto há um medo em esbanjamento , enquanto há no espaço de um nome um segredo que nunca se revelará e — no enquanto — gargalha alto , engolindo a súplica do olhar apelidado de nuvem
é como se de mim tivesse chovido na idade do transbordamento
na agulha do tempo que estoura o balão de água
agora sou tudo o que racha , tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede , sim , existe toda uma constelação de diferentes sedes dentro do corpo
estou sentindo o desejo controlável de enfiar a cabeça dentro do oceano e beber um grande gole de água salgada
estou possuída pela sede demoníaca , perto de mim , na cabeceira da cama , há um copo d’água com uma rosa vivendo nele . Como será sentir a sede da rosa em um copo vazio ? saiu de mim a água que enchera o copo onde a rosa agora vive
e eu tão menor que ela , tão menos sublime
esvaziei-me para alimentá-la a fim de preferir sua vida menos maliciosa , menos consciente e por isso , com mais direito à existência , pertencendo onde me agarro com dentes amarelados e unhas já esfoladas . Sou o que eu persigo . Todo rudeza . Todo imobilidade
na verdade , transformo-me no copo vazio . Sou o que veio antes da água chegar e fui bebida num gole só
na verdade sei como é esta outra sede demoníaca porque estou morrendo mais rápido do que antes . Estou dentro de uma coisa chamada : ‘Paciente em estado crítico’ e essa coisa é como ser um copo para a terrível ausência de um campo de rosas vivas
O Momento da morte: – Com o coração hermeticamente aberto como um açougue metafísico durante os sete dias de um domingo interno ou imaginário, como qualquer outra idéia que tenta sem sucesso enlaçar o tempo que já havia antes do ser, cancelaremos todos os sentidos antes do verdadeiro fim e abraçaremos as asas da singela brisa acordada que nos excitará com o frescor dos instantezinhos que saltitam pela íris e coçam-nos de alegria, como passarinhos entre os dedos vibrarão as auras de assanhamentos corados pelo solar momento da separação entre a visão do mundo como um quarto e a recém-chegada e logo esquecida sensação incompleta de sair de um sonho com o coração hermeticamente aberto como uma aura aterrada dentro do sétimo dia do talvez, estaremos amalgamados no ventre de todos os versos suspirados e não ditos antes da boca que engolirá os pseudo-beijos do real como a chuva engole o vento e dissipa arrepios no entendimento dessa paisagem incendiada por nossos olhos.
Nota: Juliana Sorel é um heterônimo de Beatriz Bajo & Marcelo Ariel, este texto é parte integrante do meu livro inédito SER O REI DO TEU SILÊNCIO POEMAS 2009-2012 e servirá de base para uma peça homônima.
***
PEQUENA CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA 2
Dando sequência ao meu mapeamento, apresento dez poemas de Maurício Salles Vasconcelos, a poesia de Maurício tem a densidade de uma cena de Godard e como os filmes de JLG comenta e ilumina o nosso tempo,imagens pensantes que atingem uma autonomia que jamais se desvincula de uma ideia que atravessa conceitos para tocar e tornar visíveis dimensões da realidade , eu já havia apontado com entusiasmo essa característica de criar imagens que pensam por si mesmas, quando resenhei o romance de MSV ‘ Ela não fuma mais maconha’ (Annablume/Selo e) mas nos poemas essa característica está potencializada e alcança momentos de hierofania. A poesia de MSV dialoga com a cultura pop, se críticos musicais, como Alex Ross e Lester Bangs resvalam no poema em seus textos sobre música pop, Maurício em seus poemas revela que existe uma poética emancipada tanto da efemeridade quanto da dimensão do esquematismo dentro do universo das canções pop e que esse universo pode estar conectado com a dimensão do ser do Poema. O próprio corpo na poética de MSV tem o status cósmico de uma canção dentro de um filme.
DEZ POEMAS
Mauricio Salles Vasconcelos
A morte por Syd Barrett –
Música de noite colorida para que o morto arrebente a folia
Depois vêm mais instrumentos, pessoas para rodeá-los
Como se fosse algo, o efêmero essencial dope livre
Porque sacrifício por noites como esta: cume óbvio de óbito e
Vida, sem mais fronteira, fato
Adstringente, esponja dos resíduos de droga e outros
(Injetamentos involuntários)
O alheio inventor do Som Progressivo passava em sombra
Por tubos, forjas em delírio: autoexecução
Para perder todos os fios de cabelo
Sob um conto cruel colhido no pico da neve
Imediato stream adolescente adstrito
A um emblema com esperma e estilhaço de rosto
Vacas e planetas sobem ao átlas de um quarto até jardim enquadra-
Ângulo em degelo, a mente rodovia um disco
Pois o dado em giro diz que é preciso continuar a existência
(Uma matéria impalpável que volta ao giz
Reveste-se da palavra, do documento do que é dito)
(Para se fazer crer)
Enquanto a música refugia-se em um
Desses dias onde nos perdemos desde
A festa como única hipótese
Sob o som de fundo, fetiche-recomeço
Abismo e Anunciamento:
Por Syd Barrett
* Vitimado há anos pelo diabetes, um dos líderes do Pink Floyd, SB foi se detonando ao longo dos anos de psicodelia por conta de viagens lisérgicas extremas, e, depois, por internações fatais que o retiraram gradativamente da cena da música.
Descarrego: Cão
Nas costas leva e traz
Uma gravura tal/igual
Sua desmesura ao fim de rua,
(Logo início) onde
Existiu uma fábrica (outro índice
Agora rola, impossível lazer
Sob desertada fronteira, uma legenda
Feita a tinta), então dorme
Porque sabe do seu final
Mais a linha-limiar
Em que supõe, fiado
Pelo mesmo sono ou
Série do cão a estirar
O próximo fim ao longo dessa costa a
Custo exercita-se bem aí
Fica de fora – Faz
Orla, poça e arame
FábricaFechada –
No Trespassing (mesmo vaga) –
Arena ideal ao declive
Desterro para distraídos
Praticantes sobre vazio
…………………De lugar e
Limite
………….PRIMEIRO SEXO
.
…………Queda de um braço por outro
Só para ganhar o parceiro do seu corpo
A ser visto de viés
Bem antes do gozo – um jorro
Confere a féria, toca o trocadilho
.
Refaz a criança que ainda mora na rua
E continua consigo no último brinquedo
Esparze esperma no rosto de um igual,
Um toco maciço de pau e pé de tênis
.
Sempre assim será um homem
Pedestre
Mais o seu negado polo
Transitivo
Espirala, em debandada
.
Tal como se enunciasse “um”
Primeiro aceno, logo
O próprio sentido
De tudo à distância, a
Caminho.
ÍNSITO
.
Jogado ao início zero a z, tarde demais,
Contra o espelho, desejo
(Onde não pulsa palavra)
E parece não habitar ninguém a mais
Há um mar
De barro, frisa em óleo
Gaivota empelicada num torpor
Gráfico bíblico recai, esplende
A zona incisa,
Ínsita
Da mais selvagem à inocente
Picada ondulação febril
Ida acrescida ao calor, à toa,
Ao monumento histórico/natureza
Em aberto, abusiva,
Recuperada aos retalhos
Passando pelo cós do corpo
Ainda a expurgar a vida
E o ser de cima, tomado
Em abstrato
Daquele mesmo contorno
Pele osso orifício
Por surgir,
Sempre à vista.
PELO DITO
.
Vem e vira sexo, a única
A última coisa senão
Esparrame, fica de sobra
Algo gritante, um pingente
Fora de uso (prontamente avistado
Por qualquer outro, cada vez mais)
Tal qual a vida em imitação infinita, o
Segredo imediato
Despido de mensagem
Até a vindoura viva criatura
Dizer “sexo” (sempre em aspas,
Nada por cima da carne seca,
Sedenta, mais que salgada,
Só vibra na ponta-da-língua
Do que é dito muito além de quando
Se faz e inacaba)
A não ser por posse
Pela palavra ou réstia de senso
Vem e vira, vende verde
Antes da hora,
Ao alcance de seu próprio vazio
Essencial, exclusivo,
Morre pela boca
.
Sem portador
.
Bebe da mesma, festejada fonte
E se cala
Sobre seu despenhadeiro
Nunca tomado de todo
Desde o princípio
Posto à beira
“Vai e se vira”
DUBLÊ
O ex do sexo continua em ação
Força-tarefa-em-festa, é ator
Recém-chegado do Interior-BR
Engaste em brasa, a contrariar
A íntima face, autoexposto
Reclinável ao menor apelo
– Divindade peso-bruto
Dos chamados – Está por livre risco
Intocável feito instância
Retórica, pura premissa, sussurro
Subreptício
Do amor há pouco vindo
Logo depois deposto:
Ícone imanente a Globo Filmes
Rede Social desfiada
………..Do corte à costura “para fora”
Ninguém nunca palpável
Visto de frente
Stunt
De estontear o corpo
Em abismo da palavra à voz
Sem repetir o mesmo rosto
O exsexo cria seu ATO AUTÔMATO
Nunca se completa
Não chega a si,
Miragem reflexa
Figurante fatal
Inoculado ao mais simples
Decurso do desejo –
Quer tomar toda a cena
A alheia, bem além do físico
E do foco, justamente,
Em aventura
Pelo mais oculto indício
Nem deixa pista
Não, ninguém passou
Por aqui
…………………………….BOLAÑOS Y BOLAÑO
A noite significa o desenrolar do seu fim – de um até o próximo um –
O tempo durado de uma leitura – Stunt Daily Men (a TV projeta apenas
Um lume de som sobre cada pessoa e essa não passa de uma tela,
É “sobre mim” que se desencadeia a ficção/deriva de fatos e absurdos
Programados tais quais tramas alheias, entretecidos thrillers
) Se fico aí a mirar o aparelho ou o aparato de um livro
Destituído de letra posso me transformar no que não quero, justo
Naquilo que eu mais penso) Bolãnos y Bolaño (a moral e seu paso doble
Decurso devolvido ao vazio
Onde “posso” recair na farsa do último eu
“Ele” pronuncia plano mortal em travessia
Pela corriqueira patusquela em vila, vivência) Miniatura
De uma casa-de-fundos
Impossível escapar da parede-e-meia/uma canção se desenfreia
Soprada à toa pela vizinha cada vez mais para dentro:
Cabeça-de-porco, lugar em que recontam uma anedota, paródia-polícia
Feito uma sina em contágio, só porque se narra em voz alta, talvez um Amuleto
A tilintar no quarto forrado de carne, poltronas viradas para o quadro
Em movimento: tela sobre tela de uma tevê aberta, reincidente
A denunciar a ausência de um autor, o disparate da palavra final
Bolaño y Bolaños (no abismo desses cômodos onde quer
Que qualquer um esteja) Com um livro pela frente (suplemento supletivo)
Ou a voz intermitente por trás a orar pela novela noves fora
Infiltrações pelos subúrbios infindos – a bruxa mora ao lado a bisca
Dá em 71 endereços borrados enquanto o churrasco é exposto
Em fileira no palito, pela ponta (carne cortada, irremovível)
Dos lugares e tempos
Dados como mortos, fuzilaria sobre sol na placa Programa Comunidade
Tornada pista-de-alvo, parqueamento de terrenos prontamente ocupados:
Entra mais um na sala televisiva, uma espécie de escrita continental
Flagrada em rostos mudos, ventríloquos em portuñol
Tradução simultânea da história corrida, histriônica hermenêutica
Sem conclusão nem pater-familis
Um sabor de fim se acresce, cruza
Existido passado, potente o bastante para voltar a
Residir aqui: pelo tão puro mero atrito
De corpo parede pessoa e
Limite do que ainda pulsa subsistente
Dilatado até a invisível morada com seu cômico señor fabulista
A secretar um substituto ou
Subtítulo – Nada acima
Dessa criatura cada
Vez mais passível de desaparecer,
Demorar em igual distância
Sem nenhum outro dito
A mais
Equivalente.
Apenas a piada adicional,
Advinda não-se-sabe (impossível de revolver Bolaños
Y tão ao seco e no singular)
Sempre à mão, ideal, dada em dobro
Para a sempre referida, em bocas plurais,
– Avoada, ali adiante proliferante
(uma só, sem tirar nem repor) –
Vida
* O cômico Roberto Gomez Bolaños (intérprete do protagonista da série mexicana Chaves) e o cultuado escritor chileno Roberto Bolaño criam, num extremo, uma correspondência entre TV e literatura no contexto latino-americano. Ambos são celebrados respectivamente pelo programa televisivo não mais transmitido, sempre homenageado em diferentes eventos (inclusive no Brasil) e reprises, assim como se dá a divulgação crescente do trabalho literário, cada vez mais intensificada após o falecimento do autor. A coincidência dos nomes e prenomes forma uma face dupla pelo contraste do humor popular tomado em relação à gravidade paródica de narrativas como 2666 e, em especial, Una novelita lumpen. Um vivo, e morto, o outro.
HARMONY KORINE
.
Onde estamos – continuados –
Entidades extraídas de recentes
Fatos mortos pessoas
Movediças por força de seus clones/clowns
Mais que expostos
Em réplica, talvez
Récita de uma forma jamais finda –
Ópera horária –
Sob o horror do mês
mesmo mesmerismo mímico
Mirado em fonte perdida
Diadia o gume do grude
Gera apenas agora refeita maré
De margem e morte.
………………...FRAME
.
……….Cão faz frame, não guarda.
Abissa a festa das espécies, bandeia
Pela eternidade,
Deixa, então, repetir a cena
Básica, mais que primeva, igual à fome e ao croma, entre cinza
Desfocado branco, tudo se iguala, e se evola:
Recai no próprio dorso – sono em falso –
Força involuntária, gritada, latida ou só olhos
Literais sobre o ocorrido/ser/tempo/filosofia forasteira a
Domesticar contínua fotografia, feito um fato selvagem
Dado de antemão sempre ao lado, pronto para morrer
………Pela imagem de si mesmo.
MIRA
.
Vazado desaguadouro
Halo além do Pacífico – ponto-de-guerra
E repouso
A cada encontro.
Não-sempre é psi, nem-inclusive sina de febre
Uma tatuagem – tudo o que delimita
De frente um fantasma
Hieróglifo entretela renda negra mais que
Visível, pronta para ser despida
Com alguém dentro e a caixa de outra
Surpresa: Represa de vozes
E gestos contagiantes
Mais uma mulher, mistério é uma borda
Complemento do rosto e um
Corpo não-coincidente
Insula-se o começo desde
Um pensamento onipresente, alheio
Por acaso: desígnio do sexo
A ser testado mesmo depois
Do fim,
Ao vivo, como se fosse
Uma primeira vez.
PARA LER NA SENZALA:
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A obra poética reunida de Ademir Demarchi. Publicado com recursos do fundo de cultura de Santos, é um dos melhores lançamentos de poesia do ano. Seria necessário um grande debate sobre o quase falso milagre dos fundos de cultura, apesar de alguns acertos que parecem mais ser fruto do acaso e do empenho solitário e humilhante dos próprios artistas do que de burocratas, políticos e empresários da cultura . Não consigo acreditar em editais. Só o mecenato parece ter uma aura de dignidade. Se o fundo de cultura de Santos, tem a honra de tornar possível a publicação de livros como esse, o Fundo Perdido dos Milionários depositado no Banco do Esvaziamento poderia fazer um milhão de vezes mais. Bilionários anônimos poderiam investir na publicação de livros de poesia contemporânea revendidos a R$5 em bancas de jornais e na criação de bibliotecas 24horas com acervos dignos em todas as cidades do Brasil. Comecei falando do livro e caí no discurso, mas caí para o alto. O Mundo precisa cair em si.Voltando ao livro, toda a série que abre o livro, uma panorâmica digna de Dziga Vertov no corpo sócio-infernal da miséria, parece ter sido narrada por um ente ambulante que é um personagem de Woody Allen em um ensaio de Cioran.
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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco,2010), O Céu no fundo do mart ( Dulcinéia Catadora,2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011) entre outros… E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com
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5 maio, 2012 as 19:28
5 maio, 2012 as 19:42
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6 maio, 2012 as 14:23
8 maio, 2012 as 15:42