Poesia Brasileira Contemporânea
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Poemas de Lara Amaral
Nos poemas de Lara Amaral existe um exercício de autoinvestigação do mundo, a função mais urgente de uma poesia segundo as entrelinhas do pensamento de Emersom e de seu discípulo Borges, eis aqui uma poética que tenta cancelar as fronteiras entre exterioridade e interioridade, onde o horror é um cenário montado ironicamente por uma poderosa imagética. Abaixo alguns poemas selecionados pela autora.
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Fratura imposta
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uma rachadura no copo
um gosto de sangue
no líquido
o dedo percorre a fissura
enquanto, no corpo,
o arrepio
não pude saber
quem feriu quem
no deslize do cio
era o gole final
o sabor do veneno
a trincar
o espesso vidro
Vale
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A rede presa entre dois morros
uma altura que não meço em palmos
balanço com pés e cabeça pendurados
equilibrando o frio tenso no estômago
meus cabelos não alcançam o chão
são os cílios que varrem a vegetação
quero dormir ali e ter daqueles sonhos
de vertigem em que se cai da cama
como quem cai no precipício.
Estopim
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Nunca sei o que será de mim
Pista de mão dupla sem
Desvio
Caixa de música sem
Corda
No pescoço
Dependurada
Como argola que prende cortina
Transparente
Por um fio
Enxergam-me através
Sem desa(r)mar
Como bomba de breve
Pavio
Marca texto
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deixo passar a memória
não estou aqui
a palavra delineia
contorna
algum vício insanável
sinto-me mais
que abstrato
sou ser que passa
que nem nota
de rodapé
algum relance me capta
ou fico como dobra
de fim de página.
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In.vertebrada
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deitada na cama
a coluna é uma vértebra
só
desarticulada
para o lado que movo
o princípio da minha nuca
vai o corpo
todo
contorcionista
a pélvis ensaiando vida
dança
segue a alma: presa
a fibras óticas
movida a ninguém
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Letargia
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Amo como quem morre
Não de tanta entrega
Mas de deixar-se corroer
Para restar o silêncio de um corpo
E a falta do sentir
Escrevo como quem vive
Reencarnando personagens
Possivelmente mais tristes
Até que eu seja só partícula
De algo que não me reconheça
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Vista do Milésimo Andar
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É o paraíso lá fora:
onde eu não piso
o céu começa
no meu abismo.
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Cai, cai…
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Fazer subir
o balão de seda
hipnotiza
a levada do céu
E se, quase noite, houver
um pedaço de lua
mais um resto de clarão
horizontal na nuvem, e lá
a forma arredondada tocar
atingir seu ponto Ícaro e
queimar-se na réstia de luz
alaranjada
Fica o céu inconsolável
a fechar-se no quedar da noite
Em tempo que não há
anunciação
há coisa mais triste
que ver o balão cair?
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Ensaio sobre as vistas turvas
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Ser cego é fechar a alma
abrir-se inteiro
e deixar alguém cravar a estaca
apunhalar-se nas costas
em frente ao espelho
demais]
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Cabimento
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Pelo que querem de mim
me desconheço
É uma junção de passos
em linhas paralelas
o corpo fundindo-se a bases
de pirâmides
quadrados enquadram mentes
em transe
Meu jeito trôpego
mandam logo para o espaço
concêntrico de ângulos
compassados
Pergunto o que há de errado
em desamparadas
geometrias
Encaram-me com seus olhos
losangulares
dão-me mais de quilômetros
de fitas métricas
e respondem com suas vozes
trianguladas:
“Meça aí sua quilogonal
insignificância”
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Larissa Amaral Teixeira usa o pseudônimo de Lara Amaral como assinatura poética. Nasceu em Brasília em 23 de novembro de 1986. Formada em Jornalismo, escreve poesia desde os 13 anos de idade, e arrisca alguns contos de vez em quando. Tem poemas publicados na coletânea “Maria Clara: universos femininos” (Editora: LivroPronto). Publica no espaço virtual: http://laramaral-teatrodavida.blogspot.com/.
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PROSA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: Dois contos de Amélia Loureiro
Amélia Loureiro como boa mineira no sentido mais profundo do termo pratica em seus contos uma sutileza espiritual ou seja um entrelaçamento entre os tempos e lugares, com um entusiasmo contemplativo onde a distância entre o narrador-narradora e o mundo cria fortes possibilidades de encontro entre um sentido simbólico e um sentido ontológico, ambos pré-existentes. Gosto da recente seleção de jovens escritores brasileiros realizada pelos editores da Revista Granta, mas prosas como a de Amélia Loureiro florescem nas brechas do mundo da informação e dos mapeamentos limitados por uma burocracia geracional. O único paralelo que encontro é entre a energia dos contos dela e a obra de Maura Lopes Cançado.
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1.
ELA ERA UMA DEUSA SEM MÃE
Por isso vive à procura do telefone materno. E seu vestido é de um azul do mar, longo e de mangas compridas. Ela anda por todos os lugares onde existam pessoas que podem lhe falar do tempo em que vivia com sua mãe em alegria.
-Eu nasci num armazém do século XIII. Para se chegar ao cômodo-hospitalar onde as mulheres partejavam, era preciso atravessar um pátio coberto por uma clarabóia. Ali os mundanos bebiam resolvendo negócios; apareciam tabuleiros de carne cozida, assados, pastéis. Na banca lateral uma cesta coberta continha ovos da pluralidade de fêmeas da redondeza. Sobre camadas de lama e argila, o trânsito e a conversação. Mais à frente, lá no canto direito, o cômodo chaveado por fora. Era naquele século que minha mãe se encontrava sobre a maca esperando o nascimento tardio do filho homem, caçula. As duas meninas -uma delas era eu -haviam nascido poucos minutos atrás, agora sob os cuidados dos médicos em algum aposento contíguo.
É deusa mas não tem mãe. Por isso está naquele imenso terraço deitada num banco de banhistas de verão. Quando acorda vê das inúmeras janelas, torcedores, gritos, cascatas de cerveja, brigas de música. Foi o sol que a fez caminhar.
Uma amiga de infância se prepara para sair do terraço acompanhada de um grupo. A porta de vidro se abre para o interior de um salão, e nela aparece a imagem da psicóloga. Não poderia ajudá-la: há muito não guarda o código para a comunicação desejada. Sem o número para a ligação, vaga as ruas descalça e se aproxima ardente de todo telefone público. Aproxima-se de todo casamento sem união e folheia o seu grande álbum. Páginas de xerox lavadas e exercícios de como equilibrar no peito uma coluna prefabricada. Ela ainda procura nas fotografias de lares consumidos o templo em que vivia com sua mãe.
De volta aos sinais de trânsito, a esquina é seu pouso. Sente a exaustão divina. É a Combalida que traz a cabeça e os braços pendidos no meio-fio. Lança um olhar para a moça mais adiante lhe acenando com veemência para ficar, para que não se vá ainda. “O diretor gostou muito de você, a sua posição de cócoras neste exato momento anterior! Espere, ele vai te filmar assim, nesta cena cool e desesperada. Ele disse que você é uma estrela e que você e a paisagem urbana se beijam como o boto e a sereia.” Agora ela se levanta, cruza o espaço ao meio e ainda pode ver o olhar furtivo do diretor, quando ele em expressão arrependida desviou o corpo para o lado rumo aos vultos e andaimes. A deusa penetra onde o som da máquina não alcança mais.
– Eu já tive o filho nos braços. Minha mãe me entregou aquele serzinho nu, e pensar que antes havia só o cordão ligando a gente! Seus movimentos de inocência em meu colo fizeram-na sorrir. Eu concordei. Presentes, Luna e Ella esperavam minha decisão sobre a viagem. Eu concordava que o filho devia ficar comigo, mas e à noite, em Londres e Paris, como eu me arranjaria? Quem ficaria com ele para eu sair? Dei o filho de volta para os seus braços… os braços de minha mãe. Me recusava. Mesmo porque ele nunca foi meu. Eu nunca fui mãe. E ela nunca existiu.
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2.
CRISTAL GRISE
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(“A muralha da China sempre reconstruída. A muralha de Berlim intacta. A muralha de Israel. A muralha do México. A muralha dos Estados Unidos da América. A muralha em mim.”) Mantra onipresente por debaixo da chapinha negra reluzente da mulher quando desce do carro em frente ao hotel em que ficará por um único dia na maior cidade do planeta. Nada de sua silhueta avisa sobre o forro dos sentidos, aquilo que é chamado de o mundo interno. Sussurra antes de entrar: – Caliente analfabeto é o mundo.
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Joga a bolsa sobre a cama e os olhos sobre o esplêndido espelho da suíte: (“cansadíssima. Extenuada. Esquecida de mim em um encantamento.”) Liga a TV, abre a torneira da banheira, mergulha o corpo alvo deixando de fora (“a enorme cabeça-bólide trancada para qualquer influência. Das estrelas longínquas, das nuvens, dos bichos, das árvores, do ar farfalhando as folhas.”) Extrema quietude externa: (“uma predileção exagerada pela queda. Cair e permanecer caída. O amor pela prisão, sem nunca perceber que se é o prisioneiro. Sempre um olhar obnubilado protege. Um choro mudo, e endereçado, claro. Até o ponto em que a existência vira bem barata. Somente as flores devem florescer. Nada além do foco feio fora e eu perfeita, e fechada.”)
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Dispara um grito de horror e as batidas do seu coração, involuntariamente. (“Quantas realidades cheias de luz e alegria eu não posso sentir e nem falar? Meu coração sabe. Ando em guerra. Armada contra mim: eu versus eu mesma.”) Não se ouve mais a TV. Nem mesmo ao longe como antes. Um silêncio surdo se instalou através da pesada porta do banheiro fechada à força pela corrente de ar vinda da janela da frente, aberta. (“Não há qualquer esperança vinda de fora. Eu contra mim mesma. Separada de mim. Nenhuma espera.”) Um tremor, um espasmo mínimo da luz fluorescente do teto, quase imperceptível aos olhos fechados: (“não reconheço a eternidade em mim, nem espero sentir as grandezas materiais como os mil sóis.”) Respira bem fundo e agora mergulha toda a cabeça: (“vivo dentro da minha estrita geometria cinza, meu corpo-pensamento, e nada cabe aí além de memória.”) Seria lágrima ou água clorada aquilo que escorre pelo rosto? Os dedos molhados não decodificam: (“o hábito de não considerar nunca a minha presença. Plugada a uma segunda natureza. Filha da história, nem homem, nem mulher. Se vociferasse ninguém me atenderia na sala blindada por carpetes mofados.”)
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2:00 pm. Volta a ligar o celular enquanto disca para a telefonista do aparelho fixo na mesinha de cabeceira: – algum recado? Obrigada. Pensa batendo a porta atrás de si que tem um intervalo até a reunião na galeria. O frio é estimulante assim como flanar pelas avenidas do comércio internacional. (“Onde eu guardei aquilo que sumiu?”) – Pernas pra que te quero! Calcinhas comestíveis no super saldo da cumbuca.
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Toca o cel. – Escuta-me. Você fala muito também. Não ouço você sim, e você não me ouve sim. Vejo-me em você sem nunca admitir. Você concentra em mim o que deseja e nunca ousa. Não é este o pacto firmado sem palavras? Não estou presente e você também não. Não te enxergo verdadeiramente nem de perto. Você não me surpreende. Nada além. Sem desculpas para ambos. Seu porte não me atinge. Você não está no que vejo. O que em você poderia me impactar? Não espere o júbilo de mim, querido. (Querido eu falo no momento de ferir.) Deixe pensar os outros. Não há enredo na canção porque na vida não há enredo. E por acaso serei mais palpável em pessoa? Nem júbilo nem nada. No máximo um sorriso, mesmo escancarado, pintado na boca. Nunca nascido, sempre morto. Saiba amado homem, o mesmo eu espero de você. Seu sorriso maquinal. Obrigada. Muito espesso. Comprido. Bárbaro. Automático. A obra de cada um. O direito privado reclamado. A autoridade conquistada. Eu sei e você sabe: todos nós sabemos. EU SEI PENSAR, EU NÃO SEI AMAR. O amor infinito encontra fechado o meu coração.
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Cavalos de pelica para o lazer. Turistas em ondas: – Babo de prazer: mais um. Mais um: eu pago! Vê os pet-shop-family: – Cachorro é amizade: eu compro. Quantas irrealidades cabem em um único momento? -FUCK! DON’T YOU SEE, BITCH? Por um triz não acontece o pior: não viu o carro marinho ultrapassando o branco no momento em que cruzava a avenida, e o sinal já não era mais verde para ela enquanto a voz do outro lado do celular emudecia após estertorar-se. E percebeu que não havia mais tempo.
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Teria que correr ou… Não havia senão. Agora é tudo ou nada e precisava clareza para apresentar o seu projeto, o trabalho de vários meses. Poderia começar assim: – Caminho na rota rude. Fala alto e ri de si, do que acabou de ouvir. Corre mais e já está no hall da entrada. – Pensei em trabalhar os seguintes conteúdos-formas: Meditação alienada. Os templos do consumo. A cerveja hóstia e o cinema missa. Pombas enfurecidas na praça. Margarida refrigerada. Anquinhas pisoteadas. Maçã sem amor. Estupidez diplomada. Ânus despetalado. Alma embalsamada. Câncer de sol. Respiração involuntária. Vida sem morte. O berço de perna quebrada. Ausência do verbo. A imitação norteadora. Hidrantes como natureza num campo queimado, e espalhadas, as sereias envoltas em gibão de couro curtido. Deu certo: 3 cidades simultaneamente. (“Mesmo que os sinos toquem a virgem não fechará outro tipo de negócio: olé!”)
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11:11 pm: De volta para o hotel acompanhada de algumas pessoas do staff da galeria. A embriaguez ruidosa do grupo propicia o ambiente para as formas-pensamento: (“A felicidade é útil como um helicóptero e depende de você desejar. É assim que todos nós aqui vibramos agora. Se você deseja, acelera, luta, consegue: é a felicidade que chega e está indo embora. Você comeu e agora só resta a fome, o buraco que engole tudo e nunca é preenchido. Comi até sentir uma dor. E quando estou triste penso em comer. Na vida que escolhi tenho os meus horários e não tenho tempo. A fome, fome mesmo, nunca chega, a comida vem sempre primeiro. Fome não é fome mesmo, é desejo.”) Agora resta o sono se ele ainda for possível.
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(“O que faço é o que sou. Negocio a minha comida, o meu lazer, a minha respeitabilidade. A minha área de atuação é onde todos os meus saberes confluem para me salvaguardar. Toda a minha vida nessa carreira. A minha vida é a minha carreira, compreende? Sem cansaço nem fraqueza. E ainda uma dureza adquirida nos esbarros, super população, esfomeados. Todo o poder de fogo crispado. Fora o resto, sou feliz por minha vida ter um desenho nítido. Feliz ainda por me sentir útil à sociedade, verdadeiramente participante, com todos os meus recursos direcionados e disponibilizados. A sensação gostosa de pertencer a uma corrente: você paga pelo que eu posso te oferecer, e eu administro os meus recursos comprando de você aquilo que ainda não tenho e anseio. Um amplo espectro de investimentos em instrução, um loft, a casinha no campo, as milhas da vida em trânsito, aquele condomínio fechado na praia, sexo seguro, sexo solitário. Fico feliz pela infinitude dessa lista, pelo meu dom de lutar, pelo sentido de segurança que tudo isso junto proporciona. Adoro arte, meus amigos, design, viagens, informação, spa, spinning, equitação, ioga, moda, livros, romance, lingerie! Ah!”) Nada como o frescor da manhã, um acordo bem feito e cenários passando velozes através da janela de um táxi.
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(“A outra. Passo por ela que não me vê, não me atende, e eu que também finjo não vê-la, fico parada, só olhando ela se afastar. O que me é insuportável é esta vida sem morte. É disto que padeço. Sou uma horda vinda do desejo de ser única.”) Ela escreve em seu caderno diário fechado no mesmo instante em que pousa o avião no solo de origem exatamente às 11:11:11. No saguão do aeroporto a canção que toca é a mesma em todas as estações, e ela canta junto:
Granizo é meu coração,
Grise a minha língua.
Avise-me se me encontrar.
No momento em que me encontrar,
Grite! Grite!
Amansa-me com suas palavras duras.
Corra até mim e me empurre.
Detone o meu alvo escuro.
Lança-me de encontro a mim.
E me grite! Grite!
Pois de cristal é o meu coração.
Amélia Loureiro
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Novas Revelações do Príncipe do Fogo
( poema inacabado comentado)
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Para Febrônio Índio do Brasil
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Primeira parte : Melancholia
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Eu sou a árvore,
feche os olhos,
primeiro você vê as armas
do Sol: As manhãs
e eis a beleza terrível se movendo
na pele do antisonho
e na do mar também,
eis as nuvens de sangue,
cavalos selvagens da luz
cavalgados pelo vento,
este corpo do espírito geral,
eis o céu
que jamais será
como os campos
porque é incorruptível,
apesar do rugido dos aviões,
evocando a raiva dos pássaros,
depois você verá o espetáculo
das montanhas de ossadas,
quase tocando o céu,
isso jamais terá seu poder nomeado,
será como o Sol.
Um Poder que estava em nós,
mas não pertencia a ninguém.
Agora, você verá a escuridão dourada,
não é um grito do céu
como o indecifrável canto das mônadas
caindo em ondas
imperceptíveis, humilhando
todos os místicos
que irão correr em sonho por cima do mar
até chegar na África Geral,
eles e nos, anestesiados
pela conversa silenciosa das ossadas,
que sussurram na hora do despertar:
” Não basta você flutuar por aí,
na margem etérea do sonho, meu Irmão!”
e depois começam a cantar…
E eis que Ele retorna das Áfricas Reunidas,
a beleza das chacinas
é como a das explosões solares,
Ele pensa
A expansão solar rindo por último
e depois a gargalhada dos mangues e das florestas
e a dos países oceânicos também,
diz a Estrêla-do-Mar.
O desaparecimento da tua infância
te saúda através do desaparecimento das manhãs.
O desossamento dos bebês de oito meses
te saúda, através do fogo dos espinhos.
A rosa congelada cantará o nome de todas as coisas.
Tudo cantará o triunfo imaginário do pó humano,
antigas simulações e distrações
até a esperada extinção, já sem nenhum peso na memória
das coisas.
Os insetos demoníacos em trégua com os insetos angélicos
Os grandes blocos de granito, sonolentos
se espreguiçando, como os místicos,
vomitando abismos.
De nada adiantou
o lamento da môsca,
inútil a confissão das poças de sangue
secando debaixo do Sol.
Inútil o riso das sementes
flutuando na brisa,
inútil o riso do dente de Leão saudando o pó
ajoelhado diante do olho d’ água,
como Robespierre,
como Gandhi,
como Voltaire.
Ah, a eternidade se contorcendo de tédio
dentro das pedras,
se afastando violentamente de nós.
E séculos antes a pírâmide de livros
refletida no riso de Mona Lisa de todos os mortos.
Ah, as equações da harmonia
anuladas pelo balé das águas-vivas.
Ah, os cavalos marinhose as abelhas
sem nenhuma saudade
do pó humano.
Ah, agora podemos sentir o Sol
cansado de nossas ficções
fitando a célula como se ela fosse Ícaro.
E eis que as nuvens mergulham no mar
e os peixes devoram os pássaros.
E agora, Centauros sem a parte humana
correm em todas as direções.
Sereias sem a parte mulher
nadando em círculos como seus neurônios,
Sr. Dante.
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Fim da primeira parte.
Comentário: A mais profunda selvageria é o desejo perpétuo do fim do mundo, comum nas crianças de dez anos do século 21 e 22. O amor este vírus espacial inoculado pelas explosões solares através da corrente elétrica em nossos neurônios, pode ser imensamente sonhado pelos ciborgues do século 21 e 22, estes hiperseres que certamente conseguirão manter o rastro harmônico da poesia. A mais profunda selvageria será a comparação entre um ciborgue e um humano, em detrimento do humano, os ciborgues serão extraordinariamente superiores, como a Rosa Real feita de matéria reciclada de cadáveres fabricada pelos laboratórios do Google Biologic, Rosa que dura mais de mil anos sem perder jamais seu perfume. Este não é meu melhor poema, o melhor poema de um poeta é seu corpo explodindo no fundo do mar, um bloco de gelo pegando fogo, uma pilha de cachimbos de crack do tamanho de um arranha-céu pegando fogo com dez mil crianças dançando em volta e etc…
Marcelo Ariel
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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco,2010), O Céu no fundo do mart ( Dulcinéia Catadora,2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011) entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com
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