Para a educação de jovens críticos


…………..Aforismos rortyanos para a educação de jovens críticos

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Alunos que sabem do meu interesse pelas decorrências literárias dos trabalhos de Wittgenstein, vez ou outra me pedem que prepare algum curso sobre teoria e crítica contemporânea, e que considere especialmente aqueles autores cuja leitura de Wittgenstein ou de Donald Davidson, o seu mais brilhante debatedor, está patente. Gente por exemplo como os norte-americanos Richard Rorty, Stanley Cavell, ou Marjorie Perloff. Marjorie já entrevistei recentemente e convém deixá-la em paz. Pensei então, desta vez, em aproveitar o espaço livre para apresentar uma pequena súmula do pensamento de Rorty em suas próprias palavras. Ou quase. Para deixar o estudo mais agudo em português, fiz aqui uma pequena seleção de textos de Rorty, e os modifiquei ligeiramente – mas sempre de forma perfeitamente inocente. O meu propósito foi o de enfeixá-los na forma de agradáveis aforismos, vagamente inspirados em La Rochefoucauld, de modo que se habilitassem a conquistar a atenção e a boa vontade de um público de jovens aspirantes a críticos. A seguir, o corpo de frases que obtive, incluindo-se um anexo davidsoniano (devidamente alterado por Rorty, sempre deformado por mim), e uma conclusão, digamos, amoral.
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  • A fusão de público e privado, seja platônica (ser justo é do interesse de cada um) ou cristã (a realização pessoal está em servir a outrem), pressupõe sempre a crença numa “natureza humana” comum.
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  • Mesmo críticos desta posição platônico-cristã conservam teorias sobre a “natureza humana”, como a “vontade de poder” ou os “impulsos da libido”. Críticos assim já não acreditam na solidariedade do “eu profundo”, mas continuam a crer num “eu profundo”.
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  • Os historicistas tentaram superar o dilema, negando tal “natureza” e afirmando que as “circunstâncias históricas”, a “socialização” são tudo, que não há “humano” antes da história. Em vão: a tensão entre público e privado se mantém.
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  • Historicistas nos quais predomina o desejo de “autonomia privada” tendem a ver a “socialização” como contrária a “algo profundo em nós”; historicistas nos quais predomina o desejo de “instituições mais justas” interpretam a vontade de “perfeição pessoal” como “irracionalismo” ou “esteticismo”. No entanto, é inútil optar entre as posições.
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  • As posições criacionistas e coletivistas não são opostas, pois não é possível englobá-las numa só perspectiva. Devem, pois, ser aplicadas a diferentes fins.
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  • “Criacionistas” são ótimos para lembrar que as virtudes sociais não são as únicas e que há necessidade de buscar uma “nova pessoa” ainda não descrita pelo vocabulário comum; “comunitaristas” são bons para recordar o fracasso das instituições em corresponder a convicções já partilhadas por muitos.
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  • Se quiséssemos falar como Wittgenstein, diríamos: As posições criacionistas e coletivistas pertencem a diferentes “jogos de linguagem”.
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  • A máxima conciliação possível entre as posições de criacionistas e coletivistas é ter como objetivo prático uma sociedade justa e livre na qual se permita o máximo de esteticismo ou irracionalidade em termos privados.
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  • Um tipo com esse objetivo poderia ser chamado de “liberal irônico”, na qual “liberal” é alguém que imagina ser a crueldade a pior das práticas, e “irônico” quem entende ser contingentes suas crenças e desejos.
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  • Um liberal irônico é historicista e nominalista a ponto de admitir que não está além do acaso.
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  • Na utopia de um “liberal irônico”, a solidariedade seria criada e não descoberta em “profundidade” pela reflexão.
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  • O gênero mais próprio desta cultura pós-metafísica não é a teoria, mas a narrativa, que liga o presente ao passado e ao futuro, entendida como ficção capaz de redescrever uma cultura e produzir mudança e progresso.
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  • Há um cisma moderno: de um lado, os fiéis do Iluminismo, na qual a ciência é a atividade paradigmática do homem, e as ciências naturais descobrem a verdade em vez de a fazer; de outro, os que consideram a ciência apenas mais uma atividade humana, cujas descrições “inventadas” não atingem algo “sólido” além delas; quer dizer, elas são úteis apenas para previsão e controle do que ocorre.
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  • Nem “Mente” nem “Matéria” representam uma natureza intrínseca.
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  • Dizer que o mundo está “diante de nós” significa dizer que não é criação nossa, que a maior parte das coisas no espaço e no tempo são efeitos de causas que não são estados mentais do homem; a “verdade” porém não está “diante de nós”: ela só existe onde há linguagens, criações do homem.
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  • Muitas vezes somos tentados a confundir a ideia de que o mundo pode justificar a crença na verdade de uma frase com a tese de que o próprio mundo se divide em fragmentos em forma de frase chamados fatos.
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  • Encontrarmos justificação no mundo para perfilar uma crença, ou supormos que o mundo tem as causas dessa justificação, não é o mesmo que supor que um estado não-linguístico do mundo seja um exemplo de verdade ou seja capaz de tornar verdadeira uma crença por corresponder a ela.
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  • Convém dirigir a atenção para os vocabulários em que as frases são formuladas, e não apenas para as frases individuais; isto ajuda a perceber que o maior acerto das previsões de um desses vocabulários sobre o mundo, não o torna intrínseco a ele.
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  • O mundo não pode decidir quais “jogos de linguagem” devem ser usados. Isto é muito diferente de dizer que a decisão seja arbitrária, ou que os jogos são a expressão de algo profundo e subjetivo.
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  • Jogos de linguagens não são objetos de escolha ou de vontade: perde-se ou adquire-se gradualmente o hábito de usar certas palavras.
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  • As mudanças nos vocabulários são mudanças na cultura. Não decorrem nem da aplicação racional de critérios, nem de atos gratuitos; não referem uma adequação ao mundo, uma vez que realidade “em si” do mundo é indiferente às descrições que fazemos dela; nem referem uma expressão da natureza real do “eu”, porque o “eu” é criado pelos usos dos vocabulários.
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  • O mundo não proporciona critério de escolha entre metáforas ou linguagens alternativas, apenas podemos compará-las entre si, não com fatos além dela.
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  • O que Hegel descreve como processo do espírito que se torna gradualmente consciente de sua natureza intrínseca podíamos descrever, muito aquém disso, como processo de mudança das práticas linguísticas europeias a um ritmo cada vez mais rápido.
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  • O que os românticos descreveram como primazia da imaginação sobre a razão podia ser descrito – sempre aquém disso –  como uma mudança cultural em que se adquire um talento para falar de outra maneira e não para argumentar bem a respeito de um mesmo assunto.
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  • Linguagens e práticas sociais podem produzir seres humanos de um tipo que não havia antes.
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  • O filósofo é, na melhor das hipóteses, auxiliar do poeta e não do físico: a filosofia não diz o que as coisas são, cria novas “descrições”, como a crítica literária.
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  • Dizer que falamos a verdade sobre algo é apenas nos cumprimentar pela utilidade de um jargão inovador.
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  • Abandonar a ideia de uma “verdade diante de nós”, de uma “natureza intrínseca”, não é o mesmo que dizer que não há qualquer verdade; é apenas dizer que a verdade não é “assunto profundo”, de “natureza”, e sim de análise da utilidade relativa dos vocabulários.
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  • É difícil criticar um vocabulário familiar e consagrado dentro do mesmo vocabulário: a filosofia ou a crítica interessante raramente é um exame de prós e contras de determinada tese, mas uma competição entre um vocabulário “instalado”, que se tornou “prejudicial”, e um “novo”, que “vagamente” promete “grandes resultados”.
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  • O método científico consiste em redescrever muitas coisas de novas maneiras até se criar um padrão de comportamento linguístico que, por sua vez, gera a adoção de novas formas de comportamento não linguístico (novos equipamentos científicos, novas instituições etc.).
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  • A ideia de contingência da linguagem leva ao reconhecimento da contingência da “consciência”.
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  • O progresso intelectual e moral passa a ser entendido como uma “história de metáforas cada vez mais úteis” e não como “história de uma compreensão cada vez maior do que as coisas são”.
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  • A perspectiva tradicional é a de que existe um “eu fulcral” que tem “desejos e crenças” e pode decidir entre eles, ou exprimir-se através deles, de acordo com a sua coerência interna ou a sua referência a algo exterior a eles. O pressuposto tradicional é o de que os desejos são tão melhores quanto mais correspondem à natureza do “eu”; as crenças, tanto melhores, quanto mais correspondem à realidade.

 

Wittgenstein, básico:

– Linguagem são vocabulários alternativos, com usos mais ou menos eficazes, que podem interferir entre si, e que não compõem um puzzle unificado.

– Novos vocabulários não descobrem como se encaixam os antigos: apenas formulam novos objetivos.

 

Duas pressuposições tipicamente tradicionais são:

– existem relações nas quais a linguagem pode opor-se a não linguagem.

– a linguagem tem unidade.

 

Duas típicas decorrências das pressuposições tipicamente tradicionais são:

– há “significados”, entidades não linguísticas, que cabe à linguagem “exprimir”.

– há “fatos”, entidades não linguísticas, que cabe à linguagem representar.

Ambas consagram a linguagem, tipicamente tradicional, como meio.
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Ryle, básico: Não há algo chamado “mente” ou “consciência”.

Convém desconsiderar a utilidade da consideração da linguagem como meio entre o “eu” e a “realidade”, sejam eles “transparentes”, como julgam os realistas, sejam “opacos”, como pensam os céticos.

Conhecer uma linguagem não é diferente de saber orientar-se no mundo; não há nenhuma estrutura definida partilhada pelos usuários de uma linguagem, que a dominam primeiro, e depois a aplicam. Regras convencionais não explicam o ato de comunicação efetuado.

“Mente” e “Linguagem” não são nomes de meios entre o “eu” e a “realidade”, mas sinais da conveniência de se utilizar certo vocabulário para lidar com certos organismos, de fazer convergir seus sinais e ruídos; ou seja, são táticas úteis de previsão e controle de comportamento.

Quando desaparece a ideia de linguagem como meio desaparece também a ideia de que ela tem uma finalidade: é o fim da história intelectual como teleologia.

A “nossa linguagem” é o resultado de um grande número de contingências, de milhares de pequenas mutações.

Revoluções científicas são “redescrições metafóricas” da natureza, que não estão, nas ciências exatas, mais perto das “próprias coisas” ou “menos dependentes da mente” do que as redescrições da história oferecidas pela crítica da cultura.

Usos literais podem ser abordados pelas antigas teorias; usos metafóricos levam a desenvolver uma nova teoria.

Platônicos e positivistas têm em comum uma perspectiva reducionista da metáfora, como se elas devessem ser parafraseáveis ou então ser inúteis para a única finalidade séria da linguagem que entendem, a “representação da realidade”.

Românticos são, ao contrário, expansionistas em matéria de metáfora: consideram-na estranha, mística, afeita à faculdade misteriosa da “imaginação” que expressaria o centro do “eu”. Para eles, “literal” é o mesmo que dizer “irrelevante”.

A história positivista da cultura vê a linguagem como algo que gradualmente toma a forma do mundo físico; a história romântica a vê como algo que gradualmente traz o Espírito à autoconsciência. Nem uma, nem outra distingue os sentidos pelos usos.

Para os positivistas, Galileu fez uma descoberta; para um wittgensteiniano, é alguém que encontrou uma ferramenta mais útil para determinados fins do que qualquer outra que existia antes.

Cientistas, filósofos e poetas revolucionários não resolvem problemas anteriores, mas apenas os dissolvem, mudam a maneira de falarmos e, portanto, mudam o que julgamos ser.

Problemas filosóficos são tão temporários quanto os poéticos.

Se se entendesse o sentido da história apenas como história de metáforas sucessivas, o poeta, na acepção genérica de criador de novas palavras ou linguagens, seria a “vanguarda da espécie”.

A ideia da “natureza intrínseca” é remanescente da ideia do mundo como criação divina.

Abandonar a ideia das linguagens como representações é “desdivinizar” o mundo e abandonar a “função sacerdotal” do intelectual de contatar o que transcende o humano.

 

Anexo Davidsoniano

A distinção entre literal e metafórico não é como a que existe entre dois tipos de significado, ou dois tipos de interpretação, mas entre usos familiares e não familiares de ruídos e sinais.

Metáforas não têm significados.

Lançar uma metáfora num texto é uma forma de produzir efeito no interlocutor, mas não maneira de transmitir mensagens.

A metáfora não pode ser parafraseada por uma frase familiar, não tem lugar fixo num jogo de linguagem, não tem valor de verdade. Com o tempo poderá tornar-se habitual, uma metáfora morta, isto é, uma frase comum da linguagem.

 

Nietzsche by Davidson: A linguagem assemelha-se à ideia de evolução: novas formas de vida a matar velhas. Mas às cegas, sem qualquer finalidade superior.

A ideia de “natureza intrínseca” não tem interesse, como não tem interesse a ideia de que a linguagem possa ser adequada, ou não, ao “mundo” ou ao “eu”, isto é, de que ela seja um “meio” quer de representação, quer de expressão.

Não há função fixa a ser desempenhada pela linguagem.

Nem mesmo existe a “linguagem”.

Uma “teoria de passagem”, em constante correção para abranger toda sorte de ruídos produzidos por seres humanos, pode ajudar a criticar a ideia de linguagens como “entidades”.

“Linguagem” e “Mente” podem ser consideradas “naturais” por apresentar questões causais com o resto do universo, mas não por apresentar questões de adequação da “representação” ou da “expressão”.

A história da linguagem e da cultura é semelhante à seleção natural na teoria da evolução de Darwin: metáforas antigas estão constantemente a morrer, a tornarem-se literais, e a servir de plataforma para novas metáforas.

 

Conclusão amoral:

As descrições das Ciências Humanas, na melhor das hipóteses, são semelhantes às da Crítica Literária, entendida como avaliação de metáforas temporárias.

 

 

 

 

 

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Alcir Pécora é professor livre-docente de literatura na Unicamp, onde leciona desde 1977. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. Crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos, no Brasil e no exterior. Entre suas publicações, destacam-se: Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 94); Máquina de Gêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. É organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst pela Editora Globo.

 




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