Paco de Lucía e o flamenco


Paco de Lucía: “O flamenco é a arte mais importante da Europa”

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Um dos grandes músicos espanhóis vivos, reconhecido em todo o mundo como um dos melhores compositores e guitarristas, Paco de Lucía encabeça a revolução que viveu o flamenco nas últimas décadas. Aos 65 anos, com uma trajetória de mais de 30 discos (o primeiro deles lançado em 1967), é também o primeiro artista da longa tradição cigana-andaluza que consegue o importante Prêmio Príncipe de Astúrias de las Artes, um justo reconhecimento ao seu talento e a arte flamenca. Num raro momento de descanso da tournée de verão por toda a Espanha, na qual divulgava o seu disco, Cositas Buenas, e apresentava uma banda completamente nova, conversou conosco sobre o flamenco, seus medos e a necessidade de renovação. [Ajr]

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Ajr. – Paco de Lucía é um pseudônimo artístico?

PC – O meu nome civil é Francisco Sánchez Gómez. Sou o filho mais novo de uma família humilde, e primeiramente fui conhecido no bairro com o apelido de “o filho da portuguesa”, porém logo passaram a me chamar de Paco, o que é habitual em Espanha para os que se chamam Francisco. O “de Lucía” veio logo depois. Onde morava viviam muitos Antonios, muitos Pepes e muitos Pacos. Assim, para diferenciar-me dos demais, passaram a me chamar de “Paco, o de Lucía”. Lucía era a minha mãe.

Ajr. – Assim, um belo dia, Paco, ex – Francisco, filho de Lucía, recebeu o Prêmio Príncipe de Astúrias de las Artes…

PC – E gostei muito, principalmente, e isso já disse publicamente, pela importância dada ao flamenco com este prêmio. É uma luta que venho levando há anos. Já era hora do flamenco ser realmente reconhecido, de situar-se no lugar que merece. Ao recebê-lo, lembrei de Camarón, que merecia o Príncipe de Astúrias tanto ou mais do que eu.

Ajr. – A sua vitória não era dada como certa.

PC – A verdade é que nem eu mesmo esperava esse prêmio. Considerava que na última hora escolheriam outro, talvez Almodóvar ou Bergman, ou a um músico clássico. Quando me comunicaram que estava entre os nominados e que tinha muitas possibilidades, não levei a sério. Pensava que outro ganharia.

Ajr. – Verdade que evita lançar discos o máximo que pode? Teme o fracasso?

PC – É muito complicado para mim. Sinto medo de repetir-me, me pergunto se estou fazendo algo novo. É uma angústia horrorosa. Porém quando percebo que fiz algo bonito, nem que sejam dez segundos de música, me emociono e dou pulos de alegria. Necessito saber em cada disco que estou jogando a vida. É uma luta contra o tempo, a idade, a falta de energia, de estímulo. Quanto ao fracasso, me preocupa muito. Não sei se é por vaidade ou por necessidade de afeto, ou pelas duas coisas. Vivemos dentro de um sistema que é como um jogo onde o sucesso significa ganhar a partida, e só o consegue quando muitos gostam do que fazemos. É uma loucura. Se nos preocupamos muito, terminamos frustrados ou loucos.

Ajr. – Quando colocou no mercado Cositas Buenas, houve uma espécie de silêncio na mídia, os especialistas não sabiam dizer se gostavam ou não. O que passou na sua cabeça?

PC – Já esperava. É algo completamente novo, muito diferente. Os jornalistas calaram-se porque tinham como experiência outros discos meus, que entenderam depois de um certo tempo e passaram a gostar. Com Cositas Buenas ficaram perplexos, sem opinião, não se atreveram a dizer que não gostaram. Porém é um disco que, para mim, é muito bom, um disco importante. Ele demonstra que se acabaram os fogos de artifício, a velocidade, a rapidez. Agora há mais sentimentos, descobri matizes de harmonias e ritmos distintos. O resultado é muito interessante.

Ajr. – A crítica é importante para o seu trabalho?

PC – Quando comecei, uns falavam bem e outros mal de mim, e isso me fazia refletir. Porém o que dizem agora é meio aborrecido, repetitivo, me tratam como um selo de qualidade, um produto aprovado. Eu preciso de críticas, e inclusive de críticas negativas, sempre que sejam construtivas, para seguir crescendo. Para seguir vivendo necessito de surpresas.

Ajr. – A inspiração seria um trampolim para tais surpresas?

PC – Sempre pensei que a inspiração surgia quando ela tinha vontade e é mentira, surge com o trabalho. Quando se está inspirado parece que as idéias fluem melhor, mas surpresas só mesmo tocando a guitarra diariamente e passando as idéias num papel sempre e sempre para ver se surge algo novo.

Ajr. – Depois de vinte anos com o mesmo grupo, surge repentinamente com músicos totalmente novos. O que aconteceu?

PC – Necessitava de gente nova, de uma nova energia que me contagiasse. Eu creio que foi uma mudança positiva, por que tenho tocado com mais vontade do que tocava ultimamente. Claro que sinto saudades dos meus velhos companheiros, e até pensei em conservar um ou outro, mas terminei optando por mudar totalmente. Não queria influências.

Ajr. – Há muita diferença entre essa banda e a anterior?

PC – O meu antigo grupo tinha uma base de jazz muito forte e esta agora é mais flamenco. A maior parte são ciganos e conhecem profundamente o que faço. Todos têm o flamenco como base. Agora também há mais canto. É que quero ser mais flamenco a medida que vou envelhecendo.

Ajr. – Que lugar ocupa o flamenco dentro da cultura mundial?

PC – O flamenco é a arte mais importante que temos em Espanha e me atrevo a dizer que em Europa. É uma música incrível, tem uma grande força emotiva e um ritmo e uma emoção que muitos poucos outros países possuem. O flamenco representa a cultura espanhola, embora muita gente não aceite essa afirmação, já que é andaluz, e não tem nada a ver com o catalão, o vasco ou o galego.

Ajr. – O primeiro disco seu que comprei, toca com John McLaughlin e Al di Meola, numa verdadeira fusão musical…

PC – Não acredito na fusão musical. Nos meus trabalhos com Di Meola, McLaughlin ou Larry Coryell a música não era flamenco nem jazz, era uma fusão de músicos e não de músicas. Eu aposto num flamenco com uma mão agarrada à tradição e com a outra na inovação. É muito importante não perder a tradição porque é onde mora a essência, a mensagem, a magia.

Ajr. – O seu cachê é um dos mais altos da Europa, tem recebido prêmios, reconhecimento, prestígio, boas vendagens… É uma novidade para um músico de flamenco, não?

PC – É um sonho, não é real. Eu tenho muito mais do que sempre sonhei, porque existem pessoas maravilhosas, em todas as áreas, escritores, atores, todo tipo de gente que faz coisas inacreditáveis e que, em troca, não são reconhecidos, e muitos morrem sem esse reconhecimento.

Ajr. – O que tem ouvido ultimamente?

PC – Remedios Amaya, o paquistanês Nusrat Fateh Alí Khan, Ketama, Rubén Blades, La Niña de los Peines, e, obviamente, Camarón.

Ajr. – A sua devoção por Camarón de la Isla é conhecida.

PC – Sofro por sua morte até hoje. Foi horrível. Ele não era normal. Essa voz… tudo o que criei e toquei em minha vida resume o que senti escutando a Camarón. Passará muito tempo para que surja outro fenômeno como ele.

Ajr. – Se considera um tanto enigmático?

PC – Quer dizer meio louco, não? Pois sim, e é muito fácil explicar o motivo. Para tocar bem é preciso passar muitas horas trancado, sozinho, treinando, pensando. E isso um dia e outro e outro até chegar a uma certa neurose. Recordo uma certa época de minha vida que tocava o telefone e eu tremia ou ficava todo um dia nervoso por saber que receberia visitas, suando muito. Tudo resultado de estar tanto tempo sozinho. É muito complexo. São muitas horas ouvindo-me e chega um momento em que é preciso companhia para saber se não enlouqueci de vez. Pois você acertou, realmente tenho um toque de loucura.

Ajr. – A nova geração de guitarristas flamencos reconhece-o, com unanimidade surpreendente, como único mestre. Vicente Amigo, o chama de “Deus”, e Tomatito, de “Padre Nuestro”. Não se assusta com essa responsabilidade?

PC – Apenas procuro fazer o meu trabalho da melhor maneira que posso e divulgar o flamenco o mais longe que consiga. Não sou nenhum Deus. O que sei é que passei a vida viajando e agora desejo um futuro diferente. Quero passar longas temporadas no México, fazendo pesca submarina e cozinhando. É o que quero. Tenho pensado muito no tempo, já que não o terei por muito tempo. Quero ficar em casa e compor. É o que fica. Os shows são passageiros.

 

 

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[Entrevista publicada orginalmente na parceira Revista Agulha]

 

 

 

 

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Antonio Júnior (Brasil, 1970). Escritor. Autor de livros como O aprendiz do amor (1993), Caprichos (1998) e Artepalavra – Conversas no velho mundo (2003). A série de entrevistas que vem realizado com distintos nomes da arte e da cultura em todo o mundo encontra-se em El Gitano (www.elgitano.blig.ig.com.br). E-maiL: antonio_junior2@yahoo.com.




Comentários (4 comentários)

  1. Daniel Lopes, Um prêmio merecidíssimo. Paco de Lucía é gênio!
    30 junho, 2012 as 16:19
  2. Daniel Lopes, “Sinto medo de repetir-me, me pergunto se estou fazendo algo novo. É uma angústia horrorosa. Porém quando percebo que fiz algo bonito, nem que sejam dez segundos de música, me emociono e dou pulos de alegria. Necessito saber em cada disco que estou jogando a vida. É uma luta contra o tempo, a idade, a falta de energia, de estímulo. Quanto ao fracasso, me preocupa muito. Não sei se é por vaidade ou por necessidade de afeto, ou pelas duas coisas.” Tb cabe à literatura, Arte é Arte. Sinto igual
    30 junho, 2012 as 16:21
  3. clarissa, Adorei a entrevista. Adoro o Paco e é a primeira vez que o vejo “hablar a pecho descubierto”. Muita clareza nos acordes e nas ideias! Parabéns\1
    19 setembro, 2012 as 0:02
  4. Ruben, Clareza de idéias, humildade, quão grande é. Parece que não tem a noção da importância q tem. Paco de Lucia, sempre será. Obrigado pelo legado
    14 março, 2013 as 12:12

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