“A barbárie está no miolo da civilização”


Quando Theodor Adorno pronunciou o célebre “dictum” – não é possível poesia depois de Auschwitz –, o poeta judeu-romeno, Paul Celan, já havia escrito, em alemão, alguns dos poemas que se tornaram insígnias da barbárie ocorrida na Segunda Guerra. O poema “Fuga da Morte” (Negro leite primevo nós te bebemos à noite/(…) A Morte é um mestre da Alemanha), soa como um dobre fúnebre evocando a catástrofe, que atravessava a consciência europeia como uma lâmina perante a tensão trágica dessas palavras.

Celan tornou-se o grande poeta europeu do pós-guerra, conquistou a admiração de figuras como Adorno e Heidegger; recebeu prêmios; era convidado para ler seus poemas. Mas em abril de 1970, as sucessivas crises depressivas o encaminharam para a ponte de onde se lançou ao Sena.

O tradutor e ensaísta, Flávio R. Kothe, se encontrava nesse momento em Berlim, onde estudava com um amigo do poeta, o ensaísta Peter Szondi. Coube a ele publicar, no Brasil, os poemas de Celan. Lança agora mais um volume alentado de traduções, Poesia hermética de Paul Celan, editora UNB.

Oriundo de uma família de origem silesiana que fugiu da guerra para o sul do Brasil, Kothe é o exemplo daquele processo que trouxe ao país inúmeros estrangeiros que acabaram se estabelecer e atuar em vários segmentos, inclusive na cultura. Professor titular de estética na Universidade de Brasília, livre-docente em Teoria Literária, pós-doutorado nas Universidades de Yale, Heidelberg, FU-Berlim e Bonn. Foi catedrático-visitante na Universidade de Rostock, professor da UFRGS e no Instituto de Estudos Avançados da USP.

Nesta entrevista, rememora a época em que estudou na Alemanha, a recepção e o desafio de traduzir Celan, e a barbárie dos tempos atuais.

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Começou a publicar Paul Celan na década de 1970, em revistas e jornais do Brasil; em 1977 sai o pequeno volume, “Poemas”. Em 1986, amplia e publica “Hermetismo e hermenêutica”, que ganha um prêmio. Ou seja, a obra do poeta começava a conquistar o leitor?

 No Suplemento Literário de Minas  Gerais, Celan teve ajuda de Murilo Rubião; na Tempo Brasileiro, de Eduardo Portela, da Embaixada Alemã e do Instituto Hans Staden. Mostrei, em 1980, algumas traduções para Haroldo de Campos, que as comentou linha por linha. Moacyr Scliar gostava do que fiz, o livrinho tinha tido forte impacto nele. Quando surgiu Hermetismo e hermenêutica, houve uma longa resenha de Erwin Rosenthal no Estadão. Nos cursos de Letras, Celan não foi recebido assim. Usei Celan como parâmetro para examinar poetas brasileiros contemporâneos no livro O cânone republicano II (editora UNB). A geração de 45 não o aceitou, os alinhados com o modernismo paulistano também não; com os concretos, ficou clara a diferença entre a poesia hermética e o texto deles.

Na época em que publica as traduções, o Brasil estava sob uma ditadura; a poesia que surgia aqui era a dos poetas marginais, distinta dos temas que Celan tratava. Como explicar que a obra dele tenha se sobreposto a tais condicionantes, já que este é o terceiro volume que publica?

 Não se trata apenas de Celan, da repressão da ditadura, da comunicação fácil. Vai além do que se está chamando de “pós-verdade”. Há em curso uma revisão profunda da concepção do que seja verdadeiro. Pascal dizia “não nos acusem de sermos obscuros, pois fazemos da obscuridade profissão de fé”. A poesia hermética não é obscura no sentido de acrescentar dificuldades ou ser esotérica: ela diz do modo mais singelo possível o difícil do que ela tem a sugerir. Tem-se confundido o iceberg com os 10% que dele aparecem, mas que não deve ser 10% da realidade. Os sonetos de Shakespeare, os poetas metafísicos, Pascal, Hölderlin, Baudelaire, Mallarmé, Trakl, Rilke, parte do Fernando Pessoa, participam da busca desse outro horizonte. Isso tem sido estudado nos centros de excelência, mas não entrou ainda na consciência geral dos pensadores e escritores brasileiros.

Na edição atual, refez várias traduções e verteu outros poemas. Traduziu, também, “O Meridiano” (discurso lido no recebimento do Prêmio Georg Büchner de poesia, em 1960), são quatro décadas de dedicação?

 Nunca abandonei Celan. A bibliografia sobre ele tem crescido muito, a começar pela das amantes e dos amigos. Isso se intensificou ao retomar Heidegger, parte da obra dele é uma resposta ao pensador, com quem teve contatos pessoais, creio até que em alguns pontos ele vai mais longe do que este. São dois caminhos de um mesmo diálogo. Nos meus comentários tive uma luta corpo a corpo com Celan. Para compreender é preciso ir de algum modo além do horizonte do compreendido.

Celan não era alemão de origem, porém torna-se um dos poetas mais relevantes do pós-guerra, e sua poesia conquista a admiração de figuras como Adorno e Heidegger. Isso se deve àquela “culpa” que a intelectualidade alemã teve sobre seu passado nazista?

  Houve, na década de 1960, essa “culpa”, o denegrir-se alemão como forma de penitência. A Escola de Frankfurt alimentou-se disso. O movimento estudantil de 1968 na Alemanha praticou a ruptura com o passado nazista. Celan não seria um grande poeta se fosse só isso. Ele não é apenas testemunha do holocausto, mas este é o pano de fundo para questões mais amplas, como a “salvação cristã”, o “advento judaico do Messias”, a aposta marxista na redenção humana pela superação do conflito de classes.

Na sua perspectiva, o “dictum” adorniano sobre não ser possível poesia pós-Auschwitz, procede ou já não faz sentido?

   Esse “dictum” foi uma tirada provocativa: a resposta de Celan e Szondi foi escreverem sobre Auschwitz. O dictum já estava no Café Voltaire de Zurique, durante a Primeira Guerra, quando os dadaístas se juntaram para protestar contra a cultura fazendo poemas sem sentido, pois ela não impedira que a barbárie eclodisse onde a civilização era mais avançada. Buchenwald ficava perto de Weimar. A arte não salva o homem, mesmo que sirva de consolo. Ela torna a vida mais suportável. O esforço humanístico na República de Weimar não salvou a Alemanha da barbárie.

 Acha que a barbárie agora tem outras feições, e assim como no poema “Stretto” (Hiroshima, Vietnã, Dresden, etc), “essa consciência crítica da negatividade da história” acabaria por se impor, também, num poeta como ele. Ou seja, a barbárie não cessou?

   Cada século prova ser pior que o anterior. O marxismo pecou por uma concepção ingênua do homem, achava que ele nascia bom e que bastava soltar as cadeias da classe para aflorar o anjo que havia nele. Nem 5% das pessoas estão dispostas a dar o melhor de si para o bem de todas. Estão hoje aflorando cada vez mais tendências totalitárias de direita. Se as forças contrárias não se aliarem numa frente ampla, serão varridas da história. A barbárie não é apenas periférica. Ela está no miolo da civilização.

Fez sua formação na Alemanha, onde estudou com o ensaísta Peter Szondi, que era amigo de Paul Celan?

   O Instituto de Teoria Literária e Comparatística da Universidade Livre de Berlim era dirigido por Peter Szondi, que foi meu professor e orientador, coincidiu de eu chegar lá quando Celan se suicidou em Paris, em 1970. Ele tinha estado no Instituto antes. Éramos poucos, de vários países. Exigia-se o domínio de inglês, francês e alemão e suas literaturas. Nós não temos mais esse tipo de formação em Letras. No Brasil, ela existiu na UFRGS, mas foi extinta pelo AI-5, em meados de 1969.

Em que medida Szondi foi importante na sua determinação em traduzir Celan?

 Estudávamos traduções de Shakespeare feitas por Celan e Stephan George para examinar a interpretação implícita nelas. Era impressionante a acurácia hermenêutica de Szondi, a capacidade de ver macroestruturas. Depois conversei sobre Celan com Hans Georg Gadamer, Paul de Man, Beda Allemann e outros. Traduzir foi um modo de captar a grandeza sintética do hermético. Celan faz parte de um conjunto de autores ditos obscuros, que elaboram uma noção diferenciada do que pode ser mais verdadeiro.

Acredita que a morte do poeta foi tão impactante a ponto de influenciar o suicídio de Szondi?

  Seguramente, mas também a lembrança da guerra. Peter nasceu em 1929 e foi, com seu pai, o famoso psicanalista Leopold Szondi, posto num campo de concentração e trocado por gasolina americana. Celan estava numa fila dos judeus que seriam levados ao extermínio e escapou porque trocou de lugar. Em vez de darem valor à vida, pareciam sentir culpa por terem sobrevivido. Como me disse Beda Allemann (organizador da obra completa de Celan pela Surhkamp), Peter era um dialético nato, capaz de captar antíteses, conectar o micro com o macro, ser sensível à conexão de detalhes com grandes problemas.

E entre vocês que contatavam diariamente com Szondi?

 Eu vi Szondi, creio que na véspera do suicídio. Estava pálido e distante, sem o olhar negro e penetrante que o caracterizava. Nosso grupo tivera uma conversa séria com ele, sobre se a negação da negação, sem superação, bastava como posição ou se era um impasse o desespero sem saída. Por duas semanas não tivemos notícias dele, até que os bombeiros encontraram o corpo no Heiligensee, um lago a norte de Berlim. Como pessoas que estavam no ápice da carreira e nos melhores centros abdicavam assim da vida, como se nada tivesse valor?

Apesar do hermetismo, a projeção de Celan aumentou. Estudos, biografias, documentários, filme e até versões musicais da sua poesia surgiram (Michael Nyman musicou vários poemas, interpretados pela cantora alemã Ute Lemper). Não parece um paradoxo?

 O que tem qualidade pode ser esquecido ou não penetrar em meios de menor densidade teórica e artística, mas acaba encontrando algum espírito esclarecido que o ajuda a aparecer. Benjamin dizia que todo monumento da cultura é um documento da barbárie. Os raros, com algum discernimento crítico, precisam continuar denunciando a negatividade da história, senão fazem o jogo do inimigo, erro em que caíram tanto Celan quanto Szondi. O melhor não existe para provar que o pior é menos bom, pois ele não consegue ser melhor se não ultrapassá-lo como referência. A maioria das letras de música e dos poemas em curso são simplórios: como um fósforo, eles não acendem na segunda leitura. A poesia hermética não acrescenta dificuldades ao difícil do que ela tem a dizer. Quem a habita não compactua mais com o blablablá do cotidiano.

Há um fato interessante, no Brasil, sobre a divulgação de autores alemães: a presença de figuras exiladas aqui durante ou depois da Segunda Guerra, como o tradutor Herbert Caro; noutra instância, mais como jornalista, Otto Maria Carpeaux, entre outros. É oriundo de uma família de silésios que vieram para cá, como se insere nessa história?

   Pertenço a um povo extinto. Hitler é responsável pela extinção de três povos germânicos: silésios, sudetos e pomeranos. Muitos emigraram para o sul do Brasil ainda no século XIX. Os russos destruíram totalmente Glogau, de onde vieram meus antepassados; os poloneses arrasaram os cemitérios dos alemães, expulsando todos os vivos, em 1947. Meu bisavô era contra a guerra, dizia que não havia criado os filhos para bucha de canhão. Eu cresci bilíngue, tive sorte. Traduzir Celan, Kafka, Marx, Benjamin, Süsskind foi um jeito de dizer o que eu não podia falar.

Passou mais da metade dos seus 70 anos ligado à obra de Celan?

   Passei meio século com ele e ainda estou aprendendo. Quando leio outros autores, aprendo a entendê-lo melhor. Isso não significa aderir totalmente ao seu percurso. Os poemas de Celan se tornaram cada vez menores, as palavras se fragmentaram, até que se instalou o silêncio do suicídio. É um direito universal e uma fraqueza. Muitas vezes perdemos, cometemos erros. No entanto, temos de lutar para fazer do melhor modo o que podemos fazer de um modo melhor que a média dos outros. A natureza vai nos suicidar de qualquer maneira. Somos finitos, mas temos às vezes alguma abertura para o grandioso.

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Jorge Henrique Bastos é jornalista, tradutor e editor, organizou “Poesia brasileira contemporânea, – dos modernistas à actualidade”. (Antígona, 2002). E-mail: jorgehenriquesbastos@gmail.com




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