O último leitor
…………………..Ricardo Piglia by Mariana Eliano (2014)
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Partiu Ricardo Piglia, escritor imenso, mas sobretudo imenso leitor. Por sorte, nos restam suas palavras, os frutos tão diversos de sua erudição. Publico aqui abaixo uma longa entrevista que fiz com ele quase dez anos atrás, em que se manifesta com clareza, penso eu, todo o seu poder de síntese e de elaboração. Sujeito crítico, sujeito pensante. Obrigado, Piglia, por tudo o que nos ensinou.
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Em O último leitor, o senhor diz que “a literatura dá ao leitor um nome e uma história, subtraindo-o da prática múltipla e anônima”. Curiosamente, sua própria história literária é também a de um leitor, o que fica explícito nesse e em outros livros. O senhor escreve porque lê?
Todos os escritores escrevem porque alguma vez leram um livro. Cada um sempre tem a superstição de ter inventado tudo do zero e a crença de que nada existia antes que ele escrevesse, mas a vontade e a decisão são sempre posteriores à prática da leitura. Cabe, contudo, estabelecer algumas precauções. O escritor não precisa ter lido toda a literatura. Não é como um filósofo, que se supõe que deve ter lido Kant, Hegel, e tem que ter o conhecimento de uma tradição antes de praticar essa disciplina. O escritor pode escrever bem e nunca ter lido Tolstoi ou Dante. Para garantir a qualidade da produção literária, não importa a quantidade de livros lidos e nem mesmo a leitura de todas as obras que fazem parte do que poderíamos chamar de cânone estabelecido. Não há uma relação de continuidade entre o que se considera uma biblioteca ideal e a habilidade do escritor para lhe dar continuidade. A questão principal é a maneira como ele lê essas obras.
Seria o escritor aquele “que lê mal, distorce, percebe confusamente”, que você menciona no mesmo livro?
Sim, exatamente. Ler errado costuma ser muito produtivo. Existem muitíssimos exemplos de escritores que leram de um modo desviado e tiraram bons frutos disso. Borges é um caso, um grande leitor que tergiversa o sentido dos textos e constrói dessa maneira os novos. Ele trouxe ao centro escritores que até aquele momento eram marginais e se recusava a ler Thomas Mann, chegando até a desprezá-lo. Os escritores, enfim, fazem uma leitura que tende ao uso dos textos, a se perguntar como estão elaborados, observando os processos de construção.
Se escrevem a partir desse tipo de leitura, e pensando na ideia de que o bom livro é aquele que carrega em si a tradição e dá um passo adiante, a literatura não seria uma construção coletiva, de todos os escritores em conjunto?
Sim, faz sentido. O escritor escreve porque antes se escreveu e aspira a incluir nessa rede uma percepção ausente, um pequeno rastro de alguma coisa que não estava ali, descrente de que essa novidade seja uma ilusão. Todos os livros são uma tentativa de marcar alguma coisa na língua, algo que seu autor tem a fantasia de que não existia antes. Evidentemente, se fosse possível ter acesso a toda a informação, sempre se descobririam esses rastros em algum lugar oculto do universo da cultura. E, no entanto, essa aspiração de dizer algo diferente é fundamental para a riqueza da literatura. A tradição, nesse sentido, pode ser entendida como algo que ajuda a escrever, a referência do que já se fez que permite dimensionar o que se pode vir a fazer. A tradição é como um rio em que se nada, que irremediavelmente acompanha toda nova narrativa.
O senhor é considerado um dos leitores mais lúcidos dos nossos tempos. Como faz para conciliar a função de leitor imparcial, que aceita, compreende e não tem a intenção de refazer e corrigir, com a do escritor que distorce?
Primeiro devo observar que a leitura perfeita, a que responde com exatidão ao que o livro implica, é uma utopia. O que se faz é procurar algum de seus sentidos e tentar reconstruí-lo, mas, em literatura, sempre há um sentido que escapa. Esse é um dos fatores que garante seu fascínio e a possibilidade de releitura, permitindo que possamos continuar lendo Hamlet e encontrando novos aspectos nele. Me oponho à ideia da existência de uma leitura platônica à qual alguém poderia aproximar-se, e aí voltamos à noção de uso do texto a que me referi: o sentido de uma narrativa está no uso que dela se faz, e não numa essência que se teria de descobrir, numa exegese que permitiria chegar ao âmago imutável do sentido.
Por outro lado, também não podemos converter a distorção em um modelo. Porque, sim, há leituras simplesmente equivocadas. Uma vez eu estava dando um curso sobre uma obra do uruguaio Juan Carlos Onetti e percebi que a leitura dos estudantes versava sobre o que eles imaginavam que Deleuze ou Barthes teriam dito sobre aquele texto. Interrompi o debate e pedi que me contassem o argumento do livro. Aí começaram a aparecer as mais diversas versões, as mais surpreendentes divergências. O texto implicava percursos distintos e cada leitor se enveredava por um, o que acabou deixando claras as possibilidades de desvio possíveis e impossíveis.
Deram um belo exemplo da frase de Ezra Pound de que “a leitura é a arte da réplica”, não?
Verdade, cada uma dessas leituras era uma réplica do original. A leitura sempre constrói um texto que funciona como duplo do anterior e, nesse sentido, a tradução pode ser entendida como uma das maiores formas de leitura. O tradutor é, quiçá, o que melhor lê um texto, pois lê para escrevê-lo, e redige uma versão que é a mesma e ao mesmo tempo é outra. É uma metáfora interessante de todo leitor. Se deixamos de lado a troca de idioma e enxergamos o fato de que o texto foi lido e em seguida recriado, chegamos ao procedimento central de toda leitura. Cada leitor está sempre traduzindo para si o texto, para uma língua mais pessoal e marcada pela época.
“A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”, escreveu Borges em uma frase que o senhor gosta de mencionar. Essa aflição é também sua?
Não, não tenho essa preocupação. Borges, a partir dessa sensação de que tudo estava escrito, construiu uma poética da releitura, do plágio, das atribuições errôneas. Uma poética que acrescenta a tudo isto um ponto interessante: apesar de estar ligado à biblioteca e à alta cultura, ele também estava atento ao funcionamento dos gêneros populares, como o policial ou os filmes de faroeste. Borges fez uso de seus procedimentos, fez uso do gosto pela repetição de fórmulas.
O senhor também chegou a adotar esses procedimentos, não?
Só escrevi um texto policial no sentido estrito do gênero, um conto breve que se chama “A louca e o relato do crime”, mas em outras obras de fato cheguei a empregar alguns de seus recursos. Respiração Artificial é um romance cheio de investigações e enigmas e Dinheiro Queimado também se poderia entender dentro de uma tradição do gênero que se preocupa basicamente com a consciência do criminoso. Há um momento na história do gênero policial em que o detetive deixa de estar no centro, passando este a ser ocupado pelo criminoso. É o que acontece na passagem entre o romance inglês e o norte-americano, quando deixa de haver necessariamente o personagem que encarna a lei e se alcança uma versão mais crítica da sociedade. O mundo das transgressões diz mais sobre a verdade da sociedade do que o mundo da lei estabelecida.
O senhor diz que há uma contradição entre literatura e ação política, uma “oposição implícita entre leitura e decisão”. É impossível uma literatura essencialmente política?
Sempre existiu esse conflito, mas muitas vezes ele foi bem resolvido. Seria possível fazer uma lista de textos bem-sucedidos nesse aspecto, talvez começando por Guerra e Paz, de Tolstoi, que faz uso de situações políticas reais para a construção de uma narrativa rica e transcendente. Os textos que têm uma eficácia maior e mais permanente são os que trabalham o que é político, e não a política. Sempre pedem a nós, escritores, que façamos um romance “que diga alguma coisa”, que retrate o que está acontecendo agora em tal ou qual lugar. Eu digo, brincando, que os jornalistas estão nos pedindo que façamos o trabalho deles. O que a literatura tem de fazer é captar certos mecanismos de funcionamento do político, certas relações de poder. Como fez o romancista policial Raymond Chandler: seu leitor não sabe quem é o governador da Califórnia durante a época em que acontecem as histórias, mas percebe como funciona a política no capitalismo e a maneira como se relacionam dinheiro e poder.
Tenho trabalhado bastante com a noção de complô como uma maneira recorrente que a literatura tem de se referir à política. O complô funciona como um tipo de percepção que o sujeito privado tem do funcionamento do real, vindo a substituir o que era o Destino para os gregos. O sujeito sente que há algo que o manipula, algo incompreensível, e supõe que haja pessoas comungadas para lhe impingir aquela realidade. É isso que eu entendo como literatura política: a que vai buscar os procedimentos de construção da realidade social, e não a que testemunha acontecimentos reais.
O início da década de 1980, quando se lançou Respiração Artificial e outros livros aparentemente engajados, foi um momento de recrudescimento político na criação literária argentina?
Naqueles anos de ditadura, a realidade era tão opressiva, tão extrema, que era muito difícil a literatura não carregar uma marca disso. No caso de Respiração Artificial, a política está sutilmente presente em uma série de registros e qualquer pessoa pode ler o romance como referido à época em que foi escrito. No entanto, por ser sutil, algo que tem a ver com a minha própria poética, alguns acabaram pensando que eu estava exercendo uma autocensura. Mas eu não escrevi o romance daquele jeito por temer qualquer coisa; esse foi o modo que encontrei para narrar aquelas experiências.
O senhor já definiu que o duelo entre civilização e barbárie, entre o que lê e o que não lê, está na base da literatura argentina. A oposição entre alta cultura e cultura de massas é a maneira como esse duelo se apresenta hoje?
Sim, sem dúvida, mas é importante ter em mente que a cultura de massas já estava presente em certos acontecimentos que começaram a se insinuar com clareza no século 19, como o surgimento do gênero policial. Quem inventou os contos policiais foi Edgar Allan Poe, um escritor muito sofisticado, e hoje vemos em filmes policiais, em séries de televisão, o quanto cresceu esse gênero. Conjugando os fatos, podemos pensar que também Poe estava em negociação com a cultura de massas e que o gênero é uma espécie de mediador entre ela e a alta cultura. Hoje, essa tensão está muito presente nos debates sobre o romance e nas poéticas da narração. Os escritores, em geral, respondem de uma maneira muito diversa a essa oposição. Eu tendo a unir os dois campos.
O senhor diria que a escolha de um tema como o de Dinheiro Queimado é uma estratégia para se aproximar de uma suposta massa?
É uma tentativa de trabalhar essa relação. As duas facetas estão presentes: por um lado, o romance traz uma experimentação com a linguagem; por outro, trabalha com um certo estereótipo do jornalismo e com certas tradições do gênero, partindo de uma notícia real. O que provoca uma drástica separação entre cultura de massas e alta cultura é a distinção entre informação e experiência. O campo da cultura de massas é basicamente o da informação, o da circulação de notícias. A noção de experiência vem a ser seu contraponto: pode-se estar informado sobre determinadas coisas e mesmo assim ter poucas experiências nelas. A literatura transmite experiências, não informação.
Como o senhor mesmo escreveu, o leitor busca na literatura a experiência que se perdeu…
Exatamente. Enquanto a informação nos deixa de fora, mantendo o olhar do espectador sempre distanciado, a literatura incorpora ao leitor a experiência de sua própria vida, da própria vida do leitor. Por isso não é necessário ler todos os livros, estar informado sobre a literatura. O importante é realizar a experiência que os textos pressupõem. Nunca vou me esquecer da minha experiência de leitura de Grande Sertão: Veredas, que ilusoriamente pensei que podia ler em português. Passei um ano batalhando com a obra e pensando que era assim que se falava no Brasil. Depois, claro, fui pedir socorro a algumas traduções, mas aquilo já havia sido inesquecível. Era a experiência de leitura por excelência, a necessidade de ir tateando às cegas, decifrando a custo a obra, numa relação muito pessoal, muito íntima.
Em vários livros, o senhor apresenta investigações históricas e levanta questões relativas ao passado e às tradições. Essa estratégia tem a intenção de reunir História e ficção, provocando uma hibridização entre elas?
Não deliberadamente. Alguns textos que escrevi de fato partem de acontecimentos históricos ou os elaboram. Respiração Artificial nasceu assim, com a ideia de escrever a história de um patriota exilado do século 19, mas a experiência do exílio me interessava porque era uma realidade muito presente na Argentina na época da ditadura e porque era uma maneira de refletir sobre a situação que eu próprio estava vivendo. De qualquer modo, partir de um fato ou de um personagem histórico não supõe escrever romances históricos. Não considero meus livros romances históricos, e sim textos que incorporam a História, assim como incorporam a filosofia e a crítica.
A crítica, a maneira como seus personagens produzem arrazoados a partir das pistas que encontram, é o princípio comum entre História e ficção?
É uma boa hipótese. Eu estudei História e ainda guardo muito da experiência do arquivo. No arquivo é que se pode observar a ação do historiador no papel a que você se refere: cercado de documentos múltiplos, cartas, textos econômicos, declarações dos juízes de paz, todas essas coisas que os historiadores leem para construir suas hipóteses. Naqueles textos tão áridos é que se encontram as pistas para construir o que foi a realidade tal qual a viveram os protagonistas. E os historiadores que vivem nos arquivos, que veem o arquivo como um conjunto de textos mudos, que se enterram neles para construir suas grandes hipóteses, esses são para mim o modelo maior de leitura sagaz, de leitor que investiga.
Isso é algo que intriga em sua história de vida: por que, já decidido a ser escritor, o senhor resolveu estudar História?
Esse modo de organizar os fatos da minha vida é um tanto irônico, mas, como todas as ironias, realmente tem um pouco de verdade. De fato, quando decidi estudar História, já tinha a pretensão de ser um escritor. Tinha duas explicações para a decisão: uma mais interessante, outra mais realista. A primeira partia de um texto lindíssimo que eu havia lido, do poeta inglês Auden, que descrevia como teria de ser uma universidade de poetas. Segundo ele, os escritores teriam de aprender uma série de técnicas retóricas, mas também frequentar a faculdade de engenharia, de medicina, de qualquer outra coisa. Achei que ele tinha razão e fui fazer História. A outra explicação é que não podia estudar literatura porque o curso se dedicava mais a dissuadir do que a estimular qualquer pessoa que tentasse um trabalho próprio. A retórica era: como alguém pode escrever depois do que já criou Góngora? Ficava anulada qualquer possibilidade de escrita para um jovem de dezoito anos, inseguro e perseguido por essas grandes figuras que era impossível repetir ou contrariar.
Sei que não se deve fazer este tipo de pergunta a um escritor, mas como entender a emblemática questão “Existe uma história?”, que abre Respiração Artificial?
Difícil de responder. Quando comecei a escrever o livro, não tinha nada muito definido, mas acho que aí estava inconscientemente implícito que o romance ia ser uma tensão entre História e literatura. Por outro lado, me interessava muito um narrador que não soubesse nada do que ia contar. Gosto desse tipo de narrador, como o de O Grande Gatsby, que não sabe tudo antes de começar, que vê se entende como é a história que quer narrar. Algo pouco comum na América Latina, onde os escritores tendem a ter tudo claro e acabam dando uma lição no leitor, adotando uma postura um tanto despótica. Prefiro os narradores fracos, inseguros sobre o que estão contando, ignorantes de seu possível significado. O de William Faulkner, por exemplo, que nunca entende o que conta seja por estar bêbado, seja por ter ouvido a história em diversas versões e desconhecer a mais precisa.
Uma das particularidades desse seu romance é o fato de os personagens serem meras vozes, sem presença ou características físicas. Atualmente, só se pode contar o que alguém contou, dizer o que alguém disse, e não diretamente o que aconteceu?
De fato, o romance se constrói a partir de uma série de relatos sociais que circulam e que são a condição da narração literária. Cada vez mais penso que, entre a literatura e a realidade tal qual ela é, há um tipo de universo intermédio feito de relatos sociais e versões dos fatos. Esse é o contexto maior da literatura, e não a realidade propriamente dita. As versões da realidade é que constituem o fazer literário.
A literatura está perdendo espaço para outras artes e linguagens?
Sem dúvida. Esta sociedade não teria inventado a literatura se não a tivesse encontrado feita. Ela é incapaz de compreender uma prática tão privada como essa, e cujos efeitos econômicos são tão pouco previsíveis. Como a literatura já estava inventada, seguiu-se adiante, mas o resultado foi esse lugar meio estranho que ela ocupa hoje, em que os escritores parecem mais interessantes do que os livros.
A diminuição do espaço da literatura em nossa sociedade se pode sentir mais no romance como gênero, porque alguns romancistas clássicos, como Dickens, tinham um público cativo e um grande apelo popular. Hoje ocorreu esse estreitamento de alcance e às vezes as pessoas culpam os próprios romancistas por isso, julgando que Joyce ou Faulkner seriam os culpados, por terem escrito romances tão difíceis e inacessíveis. Minha hipótese é quase inversa: creio que o romance já tinha perdido seu público e seu espaço na construção das narrações, deslocados para o cinema ou para outras formas de narrar que capturaram o imaginário social. Em contrapartida, passou a ser possível dotá-lo do grau de experimentação que esses escritores extraordinários empreenderam. Assim, fez-se da debilidade uma virtude.
Pensando naquela ideia sua de que ler é o ato máximo de afirmação da solidão, estaria nossa solidão ameaçada diante desse possível fim da literatura?
Justamente, esse possível fim da literatura está relacionado ao possível fim de um lugar mais pessoal, substituído por essa espécie de memória ou experiência coletiva a que estamos sujeitos na cultura de massas. Nada custa pensar que é essa a aspiração da publicidade e da televisão: que todos pensem o mesmo, digam o mesmo, sintam o mesmo, digam o que sentem com as mesmas palavras. Essa é a utopia do capitalismo: que todo mundo se pareça e, em consequência, que todo mundo saiba o que comprar.
Mas não podemos imaginar que a sociedade conseguirá impor esses critérios unânimes. As resistências a essa generalização são múltiplas. A noção de que cada um tem suas ideias e pode construir a representação de seu próprio universo, em que a literatura é obviamente elemento importantíssimo, existe também em outro tipo de experiências. Por exemplo, no vínculo com os amigos, em que os indivíduos constroem relações paralelas ao mundo social, elaborando linguagens, subentendidos, valores. E, no entanto, esse é outro elemento posto em questão no mundo atual, onde parece que não há tempo para estar com os amigos e tudo tem de girar em torno das relações profissionais. Seja como for, não sou tão pessimista, pelo menos nesta manhã. Creio que esse tipo de experiência vai persistir.
A publicidade e os meios massivos de comunicação, então, estariam ameaçando a nossa individualidade?
O fato é que estamos invadidos por uma mensagem de uniformidade. No limite, como descreveram Aldous Huxley e George Orwell, os indivíduos passariam a fazer parte de uma série e seriam acurralados por discursos que tendem a construir modelos únicos. Mas não creio que se deva levar tão a sério essa ameaça. Também se pode pensar que a televisão e a publicidade não são tão onipotentes e que as pessoas sabem decifrar as mensagens, não sendo apenas sonâmbulos que recebem orientações e agem de acordo. Cada indivíduo acaba por criar suas defesas e construir seus espaços. Até na difusão alucinante de informações pela internet, a tentativa de construir espaços pessoais, como os blogs, demonstra que podem aparecer novos usos e sentidos para esses sistemas generalizados.
A literatura argentina perdeu força desde os tempos de Borges e Cortázar ou encontrou maneiras de se renovar? Quais foram os escritores que melhor assumiram essa difícil tarefa?
Borges, Cortázar e outros marcaram um grau de excelência que desde então tem funcionado como parâmetro, dentro do que vínhamos dizendo sobre o papel da tradição na literatura. A criação literária persiste e a obra desses escritores extraordinários jamais seria um obstáculo, e sim um estimulante padrão a partir do qual se pode escrever. Nada impede pensar que, neste exato momento, haja alguém começando a escrever um texto que virá a ser ponto de referência tão significativo quanto esses outros. Um escritor que vale citar é Alan Pauls, de quem se pode esperar algo bastante bom.
E quanto à literatura brasileira, o senhor teria algo a destacar?
Não gostaria de ser demagógico, mas realmente admiro muito certos escritores brasileiros, começando por Guimarães Rosa e seguindo por Clarice Lispector, para não falar de Machado de Assis. Dos atuais, posso dizer que aprecio muito Silviano Santiago e Osman Lins.
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Julián Fuks é escritor e crítico literário. É autor de A resistência, livro vencedor do prêmio Jabuti de 2016 e segundo lugar no prêmio Oceanos, e de Procura do romance e Histórias de literatura e cegueira, finalistas dos mesmos prêmios. Em 2012, foi escolhido pela revista Granta como um dos vinte “melhores jovens escritores brasileiros”. E-mail: julianfuks@yahoo.com

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