LEDA TENÓRIO & ANTONIO CANDIDO
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Em sua opinião, a obra de Candido ombreia em importância com a de outros intérpretes do Brasil da mesma geração, como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado? Qual seria a contribuição singular de Candido nesse conjunto?
Sim, claro. Candido envolve a literatura nessas interpretações clássicas, vê-nos avançar literariamente junto com o país e, assim fazendo, torna-se um dos pensadores de nossa formação. Mas eu me arrisco a dizer que, bem por isso, temos aí um problema. Pois, à exceção de Sergio Buarque de Holanda, que, como se sabe, ostenta um belo passado de crítico literário, antes de se tornar um historiador, que, aliás, é um belo escritor, nenhum dos demais autores dessa relação tinha por objeto a linguagem, a arte da palavra, o mundo dos signos, a letra. Assim, acho que podemos pensar – e alguns pensam – que de Candido seria de se esperar que visse a janela mais que a paisagem, os meios mais que o meio, e que esse rol de que estamos falando não fosse o seu rol. É como se restasse a Valéry ter dado a ver a França e a Europa nos Regards sur le monde actuel. Críticos fazem existir autores, literaturas, movimentações estéticas, autorias de risco. Valéry não pode ser evocado sem que pensemos imediatamente em Mallarmé, Edmond Wilson, em Fitzgerald, Barthes, no nouveau roman francês. Mas inutilmente buscaremos saber que poeta Candido fez existir, mesmo que concordemos que ele recepcionou Clarice Lispector e Orides Fontela. Ao passo que, dada justamente a sua visão da situação brasileira, sabemos que poeta… ele não fez existir. A saber, este avulso do sistema: Gregório de Matos. Outra maneira de dizer isso é notar que houve muito mais referências à sociologia, quando de sua morte, que à crítica de literatura. Que, por ironia, evocar o nosso mais importante crítico literário é muito mais evocar o intérprete do Brasil que o intérprete de tal poeta.
Qual seria a seu ver a grande marca conceitual da obra crítica de Antonio Candido? O conceito de sistema literário? Ou a ideia de uma crítica integradora e dialética, que entende a obra literária como uma construção complexa, expressão pessoal em tensão com as condicionantes do processo histórico?
O que de melhor se atribui a Antonio Candido, certamente, não é o esquema dos “momentos decisivos” nem a série autor-obra-público. Mais adiante da Formação da Literatura Brasileira e de Literatura e Sociedade, é o apontamento de um nexo entre forma social e forma literária, em dois textos que se convencionou chamar “seminais”, os ensaios “Dialética da malandragem” e “De cortiço a cortiço”, recolhidos na coletânea O discurso e a cidade, organizada nos anos 1990, em que dedica a Manuel Antonio de Almeida e a Aluísio Azevedo um tratamento considerado exemplar. De fato, mesmo sabendo que esses romances são reescrituras de romances estrangeiros, o que deveria pô-los sob a suspeita de serem postiços em nossa cultura, Candido vem a campo mostrar que, escrevendo sob o “estímulo direto” da situação brasileira, ambos encontraram um jeito de plasmar uma configuração social, de corresponder estruturalmente a essa configuração, de alcançar o sentimento da realidade. Muito temos ouvido dizer que já não há mais aí simples declinação sociológica, que a literatura ganhou aí relevo, nessa correlação mais complicada, nessa leitura de síntese dialética, que elabora uma noção materialista da forma literária. Na verdade, foi a sociologia que se refinou, do que dá testemunho esta formulação elegante: “discurso da cidade”. Ela diz o que diz: o discurso é da cidade. Além disso, trata-se de elegância em tudo semelhante àquela que já se praticava na França, desde os anos 1950, numa obra formidável como Le dieu caché de Lucien Goldmann, que realiza o exato mesmo vaivém, articulando a tragédia de Racine e o tempo da centralização do poder real, no seiscentos francês, a cuja corte pertenceu o poeta. Goldmann foi, em seu tempo, um crítico-sociólogo tão inescapável que Julia Kristeva fez com ele o doutorado e Barthes o distinguiu da velha guarda em Crítica e verdade. Curiosamente, até onde eu chego, não falamos das relações de Candido com este modelo sociológico nobre, também de impacto sobre nós. Elas não desmerecem o Candido da melhor fase, assim como Zola não desmerece Aluísio Azevedo, nem Edgar Poe, Baudelaire. E bem por isso não tinham que ser ignoradas, tudo se passando como se a crítica dialética produzida in loco fosse algo assim como a revelação na estrada de Damasco.
A seu ver, o conceito de sistema literário ainda é fértil para pensar a literatura brasileira ou ficou circunscrito aos propósitos da análise desenvolvida na Formação da Literatura Brasileira?
Eu me arrisco a pensar que o conceito de sistema literário apresentado na Formação da Literatura Brasileira foi mais pedagógico do que fértil. Diria que se tornou lição incutida, a própria doxa escolar, positivando noções e oferecendo às graduações em Letras uma história da literatura brasileira certa de seus começos e fins. Como percebe Luís Augusto Fisher, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, voz isolada num dos dossiês preparados recentemente pelos segundos cadernos, quando da morte de Candido, com esse modelo, montou-se toda a história da literatura brasileira de modo a fazê-la desaguar no modernismo paulista, que seria a verdadeira culminância do processo evolutivo ali previsto, no momento em que, de fato, passamos a ter autores, obras e leitores encadeados, em corrente comunicativa. Não se trata só da Formação e sua história processual. De modo mais geral, acho que podemos pensar que a ideia de que a literatura é sua circunstância, de que conferir legibilidade a uma obra é pô-la em contexto, ideia central em Candido, perdeu força explicativa, junto com as prevenções gauchistas que por tanto tempo foram nosso habitus mental. Passamos a desconfiar seriamente, desde há pouco, graças aos aportes veementes de certas críticas voltadas aos anais, aos arquivos abertos, às ressurgências, que as artes violam determinações, não nascem nunca, mas recomeçam, a cada volta. Estas outras ideias nos vêm de excelentes críticos-escritores sincronistas, cada vez mais dispostos a sustentar anacronismos fascinantes, como foi, um dia, a evocação Noigandres. No mundo da crítica de artes, um desses críticos é o francês Didi-Huberman, não por acaso um cultor de Barthes. E antes que se fale em modismo – ressalve-se que sua obra é monumental demais para ser reduzida a uma voga.
Em comparação com a contribuição crítica do grupo de autores concretistas, ligados à revista Noigandres, a reflexão de Candido ainda peca, a seu ver, por uma visão excessivamente sociologizante do fenômeno literário? Como você afirma em seu livro Sobre a Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século, o termo ‘clima’, que deu nome à revista do grupo formado por Candido, Decio e Paulo Emilio, trai essa inclinação determinista? Ela perdura mesmo em estudos posteriores do crítico?
Toda essa minha pesquisa expandiu-se, recentemente, para outros estudos, devidamente subvencionados, em torno das relações entre as novas críticas de Haroldo de Campos e de Roland Barthes, relações sobre as quais tenho escrito livros e publicado artigos em periódicos estrangeiros como a Revista Portuguesa de História do Livro e a Revue Barthes. E, sim, quanto mais eu avanço, mais me inclino a pensar que, mesmo tendo sido refinada, na fase da crítica dialética, a sociologia está na orientação nacional e ideológica do paradigma candidiano. Para dizê-lo de outro modo, as obras de criação seguem sendo concebidas como representações de experiências locais. Tanto assim que o consabido melhor legado do melhor Candido são as “ideias fora do lugar”, conceito cuja referência social está dada no significante “lugar. Trata-se de um lugar empírico, da linguagem para fora. Eu digo no meu livro, ali onde retomo a arguição que foi feita ao poema “pós-tudo” de Augusto de Campos, em nome desse conceito, que são as “ideias fora do lugar” que permitem perguntar, tão singelamente quanto se pergunta, quando e onde é pós-tudo! E quero me valer aqui da menção a Barthes para pôr a questão nos termos em que o próprio Barthes a pôs, no momento de sua grande briga com os saberes historiográficos mandarinais da Sorbonne, origem da nouvelle critique. Diz Barthes que existem dois tipos de críticos, os críticos positivistas que entendem os autores em suas épocas e lugares e os críticos do sentido, que leem linguagem. Para ele, Maurice Blanchot está entre os segundos. Não é só isso que me anima a pensar que eu talvez esteja no bom caminho. Mas também ter encontrado recentemente em Folie Baudelaire de Roberto Calasso que a Sociologia é uma “triste ciência”, que impediu Sainte-Beuve de reconhecer Baudelaire, também ausente de seu sistema.
A seu ver, as revistas Clima e Noigandres lançariam as bases para duas correntes de pensamento, tendo Candido e Roberto Schwarz de um lado e Haroldo e Augusto de Campos de outro. Quais seriam, a seu ver, os continuadores da obra de Candido? Para além dos nomes mais reconhecidos e próximos de Candido, como Roberto Schwarz e Davi Arrigucci, quais outros pesquisadores ou críticos poderiam ser apontados como discípulos ou continuadores de suas reflexões? É possível ver, também do outro lado, continuadores da linha de reflexão?
Eu retomei agora mesmo essa partilha, na reapresentação de uma edição revista e aumentada do meu livro Sobre a crítica literária brasileira no último meio século, tomando o cuidado de lembrar que o que me interessa, desde sempre, são as lógicas metodológicas das duas correntes, seja pela envergadura das produções, seja porque são sustentadas acaloradamente e em contraponto, praticamente ao mesmo tempo, a partir de diferentes redutos, inclusive universitários, de onde se disseminam pelo país, através das Comunicações, Letras e Artes. Nessa reapresentação, voltei a sublinhar seu diferencial, anotando que uns trabalham com as razões do tempo e do lugar, outros, com perspectivas de entrecruzamento, de interpenetração horizontal dos textos. Essas notas terminam com referências a um novo quadro dos acontecimentos, no interior do qual podemos ver recuar o prestígio moral das teses socialmente empenhadas que, um dia, nos fizeram tomar os formalistas por sujeitos inócuos e o formalismo, por palavrão. Assim, por exemplo, com o passar do tempo, Mallarmé pôde tornar-se objeto pensável no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, de onde nos vinham, antes, alertas contra os perigos da poesia pura e o vão esteticismo. Eu mesma tenho resenhado na imprensa expertises de certa prosa mallarmeana imprescindível ao conhecimento da assim chamada poética da modernidade, que vêm dali. Há ali também hoje alguns destemidos amigos da intertextualidade e de Derrida. Outro exemplo: pode-se hoje cuidar da letra mesma do romance de Proust em laboratórios uspianos de crítica genética sediados em unidades em que, nos meus tempos de graduanda em literatura francesa, Proust e seu esnobismo não estavam no programa. Numa outra ordem de considerações, outra ponderação é que, neste novo quadro de acontecimentos, já não voga mais, como antes, a monumentalização do professor. Bem por isso, o pesquisador já não tem mais que ser o gestionário de uma herança. Nesse sentido, diria que não há mais seguidores como antigamente.
Por outro lado, quais seriam as alternativas a essa linhagem dominante na Universidade de São Paulo e quais seriam seus principais representantes? Em seu livro você refere alguns nomes, como Leyla Perrone Moyses, Silviano Santiago. Ainda é possível ver correntes ou afluentes dos pensamentos dominantes na geração de Candido ou vivemos um outro momento na crítica? A querela nacional versus universal, como você aponta em Sobre a Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século, continua sendo aquela que nos representa?
O que eu acabo de dizer vale para esta outra pergunta. Mas sempre é possível acrescentar, dado o tamanho de Borges, que uma das mais elevadas alternativas à dominância da tese da literatura e sociedade parece ser aquela que Borges nos oferece em seu ensaio “O escritor argentino e a tradição” do álbum Discussão. Aí, ele ironiza as literaturas tidas como representativas da cor local e escreve que não representam tanto o país quanto sua própria versão do país. O passo seguinte é defender o poeta Enrique Banchs, que fala de rouxinóis nos telhados de Buenos Aires, quando não há rouxinóis nas paragens portenhas, propondo que o rouxinol não é daqui ou dali, mas “um pássaro da literatura”. A notar que Sergio Buarque de Holanda referenda sutilmente esse Borges, em Visão do Paraíso, escrevendo, por sua vez, que não faltam descrições febris do rouxinol canoro pelos conquistadores, que o encantamento do contemplador apela à convenção literária e que isso acontece porque toda uma geografia fantástica vem afetar esses cantos, fazendo com que não apareçam absurdos.
Alguma outra consideração sobre Antonio Candido e sua obra?
Eu queria terminar repetindo o que venho dizendo desde 2002, quando saiu Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Se é certo que as diferenças entre as duas linhas críticas redundaram, no passado, e ainda podem redundar, no presente, em confrontos estéticos ruidosos, providenciando, como já se notou, uma gentil arte de fazer inimigos, é igualmente certo que a parte de confrontação que cabe, nessa história, a Antonio Candido, e é aquela que desponta no opúsculo de Haroldo de Campos intitulado O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, é cortês e sem alarde. De fato, trata-se de uma desconstrução linguística, à la Derrida, da nomenclatura do livro de Candido citado no título. Não se presta nenhuma atenção ao fato mas o fato é que, com compostura de scholar, Haroldo toma a palavra “sequestro” no sentido de “recalque” ou “apagamento, emprestando a palavra de Mario de Andrade, e justifica sua incursão dizendo que homenagear verdadeiramente a obra de Cândido é cessar de oferecer-lhe uma recepção“encomiástica” e dedicar-lhe uma discussão “que lhe corresponda à instigação”.
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Leda Tenório da Motta estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva. É Professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora do CNPq nível 1, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tradutora e crítica literária, com passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros. Traduziu, entre outros, O Spleen de Paris de Baudelaire e Métodos de Francis Ponge, o primeiro livro deste poeta a sair no Brasil. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso, que recebeu o Prêmio Jabuti, e Roland Barthes- Uma biografia intelectual (Iluminuras), finalista do Prêmio Jabuti. Lança em 2015, pela Iluminuras, Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam. E-mail: ltmotta@pucsp.br
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