O teólogo é um intérprete de sonhos


Escritor, filósofo, teólogo e psicanalista, pastor em outros tempos, Rubem Alves tem atualmente cem livros publicados – 35 infantis e 65 adultos – e faz um sucesso tremendo de público. Colaborou até recentemente na Folha de São Paulo e Correio Popular de Campinas, mas me disse por telefone que não quer mais escrever para jornal já que ele, o jornal, é muito cruel. Ou seja, não quer mais ter obrigação de escrever um artigo por dia, mas continua escrevendo sim, com calma. Mas quando o entrevistei em 1980 para o Jornal de Hoje (também de Campinas – há muito extinto) ele tinha poucos livros editados e falamos justamente dos que ele escreveu nos Estados Unidos onde morara e fizera seu mestrado e doutorado.

Mineiro naturalizado campineiro já que fora para esta cidade em 1953 e ficou até 1957 estudando no Seminário Presbiteriano de Campinas num primeiro momento. Em 1958 foi para Lavras (MG) onde exerceu as funções de pastor naquela comunidade até 1963 quando foi para os Estados Unidos fazer seu doutorado e de certa forma fugir das perseguições dos militares já que era considerado subversivo. Quando voltou para o Brasil foi lecionar em Rio Claro e em 1973 voltou para Campinas para lecionar na Faculdade de Educação da Unicamp e nesta universidade ficou até se aposentar. Na metade da década de 1980 tornou-se psicanalista pela Sociedade Paulista de Psicanálise. Em 1988, foi professor-visitante na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Posteriormente, a convite da Rockefeller Fundation fez “residência” no “Bellagio Study Center” na Itália.

Amante da literatura e da poesia foi nelas que “encontrou a alegria que o manteve vivo nas horas más por que passou”. Leitor e admirador de Adélia Prado, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Octávio Paz, Saramago, Nietzsche, T. S. Eliot, Camus, Santo Agostinho, Borges e Fernando Pessoa, entre outros, escreve sem parar. Quando se aposentou da Unicamp comprou um restaurante em Campinas ao lado da sua bela casa que conheci e que ficava no Jardim Guanabara perto do Seminário Presbiteriano onde atualmente funciona a Faculdade Mackenzie. Ali praticou seu amor pela culinária, pelos temperos, pelos sabores e cheiros das ervas que até cultivava na sua horta e sobre a qual o leitor pode se deliciar em muitos dos seus livros. No restaurante, Rubem promovia também cursos de cinema, pintura, literatura, cafés filosóficos -logo que isso virou moda-, além de manter um trio com música ao vivo com ‘canjas’ de alunos da Faculdade de Música da Unicamp. Rubem Alves é membro da Academia Campinense de Letras, professor-emérito da Unicamp e cidadão-honorário de Campinas, onde recebeu a medalha Carlos Gomes de contribuição à cultura.

Atualmente moramos no mesmo bairro em Campinas- Jardim Chapadão e já prometi uma visita e ele me prometeu uma terceira entrevista, já que fiz com ele outra sobre um único tema: Natal e a Renovação da Esperança e que fez parte de um caderno de vinte páginas publicado em 25 de dezembro de 1988 no Diário do Povo de Campinas. Entrevistei além dele o filósofo, teólogo e psicanalista Antonio Muniz de Rezende, Marcel Dantas à época secretário da PUCAMP, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a poeta, ficcionista e dramaturga Hilda Hilst, o compositor de musica erudita contemporânea José Antonio Almeida Prado, o artista plástico e escritor J. Toledo, entre outros intelectuais e religiosos da cidade.

A primeira entrevista

À época desta entrevista – que foi publicada no Jornal de Hoje no dia 23 de março de 1980 -, Rubem Alves lecionava Filosofia Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e na altura tinha publicados os livros: Theology of Human Hope; Cristianismo, Ópio ou Libertação; Tomorrow´s Child; O Enigma da Religião; Protestantismo e Repressão e era co-autor de A Construção Social da Enfermidade e Frontiers of Theology in Latin America. Aliás, sua tese de doutorado: A Theology of Human Hope foi um dos primeiros escritos sobre a Teologia da Libertação onde ele faz uma tentativa de explorar o significado político da religião cristã. “O discurso teológico bíblico é um discurso sobre uma série de encontros libertadores. O Deus bíblico é um símbolo para a libertação, é símbolo de um fruto onde os homens usarão espadas e lanças como arados.

Minhas primeiras perguntas inevitáveis foram: sente saudades de Minas? É mineiro ainda? Ele não sabia responder. Vivera muito no exterior, morou no Rio de Janeiro e dizia que se sentia bem em Campinas de onde não pretendia sair. Sentia saudades de muitas coisas mineiras, mas talvez fossem saudade de coisas da infância que propriamente mineiras. Saudades da velha casa de soalho de tabua, a família inteira lavando, da cadeira de vime na porta da calçada à noite, dos biscoitões de polvilho. Isso por que no fundo Rubem Alves se considerava mesmo um irreconciliado com a vida civilizada. Dizia que gosta de caipira, de gente simples. Mas reconhecia que de fato é mais fácil gostar de longe-não só dos lugares, mas de pessoas.

Para Rubem que não sabia se acreditava em Deus-ele esperava que Deus existisse- o teólogo é um intérprete de sonhos e Deus, o elevado símbolo utópico. O mundo, definido pelo discurso cientifico para ele era desencantado: acreditava que o universo seja muito mais rico do que estes limites e esperava sinceramente que a vida fizesse sentido. Pianista frustrado, Rubem Alves se dizia muito mais um ouvinte dos clássicos como Bach, Scarlatti, Vivaldi, Mozart, que um musicista. “Ouvir dá mais prazer que tocar, por que ali está a arte consumada enquanto tocando você está lidando com deficiências de um mecanismo que não consegue reproduzir.

Rubem Alves considera a musica aquela “presença” que enuncia aquela ausência a que se refere nesta entrevista na qual abordou entre outros temas: o imediatismo da mentalidade norte americana e do movimento da contra cultura que ingenuamente acreditava ser possível mudar o mundo a partir do pensamento; o impasse em que viviam as sociedades humanas condenadas a desaparecer vítimas do próprio gigantismo; o mito da integração nacional e planetária, vaca sagrada daqueles dias – para ele melhor seria viver num mundo maravilhosamente diverso; o gelo que levou da Igreja Protestante, para quem ele era considerado um pastor subversivo; a sua visão de Deus- um vazio e uma ausência. Interessante notar que a entrevista ainda que feita há décadas é incrivelmente atual já que ele trata de assuntos que estão na crista da onda e dos quais parece que profeticamente deduzia a sequência. E mais: lendo alguns dos seus livros posteriores vejo que continua absolutamente coerente no seu pensamento suas crenças e valores. Confiram.

Ana Lúcia Vasconcelos– Neste seu livro Tomorrow’Child publicado em 1972 nos Estados Unidos você afirma a necessidade de se começar de novo.Construir a civilização sobre novo fundamento, sobre alicerces novos. Postula que o homem deve abandonar a lógica dominante da atual ordem de coisas e tornar-se criador. Cita os exemplos de algumas comunidades constituídas em determinadas épocas da história humana como a comunidade de Israel, a comunidade cristã que pelos seus estilos de vida, seus valores, eram radicalmente opostos aos modelos culturais dominantes e, portanto contra cultura, underground e clandestinas. E foram perseguidas por serem absolutamente subversivas. Você por acaso sugere uma saída para este impasse em que vivemos alguma coisa do tipo destas comunidades que foram revolucionárias? Se for isso, você apesar de tudo não dá pista alguma de como realizar isso. E ainda: fala que o momento é de plantar apenas. Que esta “comunidade de fé” se encontra agora no seu momento de colisão. Chegará o momento da perseguição. Fala ainda que é preciso plantar, mesmo que quem plante não veja seus frutos.Gostaria que falasse um pouco desta sua visão de transformação do mundo, sua visão de um mundo novo, por que afinal você não dá receitas.

Rubem Alves- Bom eu não dou receitas por que as receitas são inúteis. O que a história faz com mais freqüência é desapontar todas as previsões que todos os profetas, sejam políticos, sociais, fazem. Eu queria dizer duas coisas para colocar meu livro no seu próprio lugar. A primeira é que eu estava escrevendo nos Estados Unidos e me dirigindo muito diretamente ao publico norte americano. E a experiência cultural norte-americana criou uma maneira muito peculiar de sentir o tempo por parte do povo americano. O americano é um sujeito muito prático, ele faz as coisas, ele constrói pontes, estradas, etc. e tudo muito rapidamente. Então na mentalidade americana existe um espaço curto entre o plantar e o colher. Houve uma época nos Estados Unidos marcada por uma série de livros eufóricos, muito inspirados no movimento de contracultura que já era o florescer de uma nova alternativa cultural para eles. Um livro conhecido foi de um sujeito chamado Reich chamado The Green of America. Todos achavam que a contracultura ia ser a salvação de todas as coisas. Então o pessoal dizia o seguinte: basta a gente mudar a maneira de pensar. Se antigamente se usava determinada roupa, agora eu mudo se antigamente se pensava de determinada forma agora eu penso de outra. E por causa disso o mundo se transforma. Para este pessoal com esta euforia da contracultura norte-americana eu estava dizendo o seguinte: gente é preciso ter paciência porque na história as coisas não acontecem desta forma. É preciso passar por Marx. Por que nos Estados Unidos eu sou tido como marxista, por que estou sempre dizendo para o pessoal da contracultura, dominado pela idéia que a história se faz através do pensamento. Eu digo que há coisas concretas, há fábricas, já dinheiro, há interesses…

ALV- Há o cotidiano.

R.A. – Há o cotidiano marcado por bancos, estradas de ferro, avião, há uma infraestrutura que você precisa levar em consideração. Pelo seu pensamento você não é capaz de exorcizar estas realidades. Houve um momento muito interessante nos Estados Unidos de oposição da contracultura á Guerra do Vietnã em que o pessoal se sentou em frente ao Pentágono para fazê-lo levitar. (Risos). Então é uma teoria muito mágica e sendo mágica, ingênua e condenada a ser derrotada por causa da ingenuidade. Então a beleza das intuições de contracultura, os insights, as percepções importantes se perdem pela pressa. Então eu quando falei aquele negócio de palmeira eu queria fazer a seguinte comparação. Por que os americanos só têm paciência para plantar abóbora, por que seis meses depois eles colhem abóbora e fazem uma torta muito famosa que é o Punpkin Pie . É o tempo curto, é o imediatismo. Se a coisa não aconteceu em seis meses você muda para outra coisa porque significa que não deu certo. Isso era o que eu estava dizendo para os meus interlocutores norte-americanos. Mas ao mesmo tempo eu estava dizendo outra coisa diferente para gente que tem uma visão muito clara de que há condições infraestruturais, há coisas, há armas, há dinheiro, há bancos e você não pode modificar a sociedade sem mudar estas coisas. Especialmente os marxistas são muito conscientes disso. Mas a tendência desta posição é cair num economicismo. E você praticamente reduz toda a dimensão da cultura às dimensões lúdicas de brinquedo, um brinquedo de idéias. Se você pegar o livro e tentar analisar no rigor de uma idéia atrás da outra, vai ver que não é isso. O livro é uma série de slides, de projeções que eu coloco na parede para mostrar a situação em que a gente está.

ALV- Você brinca, por exemplo, logo no começo com o dinossauro.

R. A.- O exemplo do dinossauro que eu dou logo no começo é uma imagem que me impressiona muito. Você vê o dinossauro porque ele é grande demais. Compare um dinossauro com uma lagartixa. A lagartixa para sobreviver precisa de duas moscas e o dinossauro precisa de quantas toneladas de capim? Chega um ponto que não tem mais capim.

ALV- É aquilo que você fala, que sobrevive na natureza quem se adapta à ela?

R. A.- Quem pede pouco à natureza. A lagartixa pede muito pouco. Por isso ela sobrevive. E ela pedindo pouco não destrói a natureza. Quantas moscas ela consome na vida inteira?Poucas. Depois ela vai morrer e por sua vez ela vai ser devolvida à natureza e se restabelece o equilíbrio. Mas a destruição que o dinossauro fazia era de tal sorte que chegava um ponto que não tinha mais o que comer. Agora você faz uma comparação com a cultura do nosso índio. Ele pesca, ele colhe seu fruto, ele tem sua lavoura. E compare isso com a civilização norte-americana ou europeia. É lagartixa comparada com o dinossauro. Comemos-consumimos uma quantidade enorme de matérias primas, energia, etc. Então chega um ponto que ficamos como o dinossauro tão grande que teremos de ter poder para fazer tudo o que quisermos. O que a União Soviética e os Estados Unidos têm que consumir de combustível para se manter poderoso é uma coisa incrível. Agora o trágico é quando o combustível chegar às gotinhas. A confrontação dos grandes dinossauros como é que vai ser? E quando eles caírem, que estiver debaixo, quem estiver por perto vai morrer.

ALV- Eu insisto em pedir sua opinião sobre a possível saída para este impasse que vivemos. Você acredita que seria possível uma volta as origens, comunidades pequenas, autossuficientes?

R. A.- Eu acho que somos estúpidos demais para seguir receitas. Veja só: todo mundo sabe que a natureza está sendo destruída, está sendo arrebentada e todo mundo tem a receita para isso parar. Eu tenho um colega na Unicamp que tem pregado na porta dele esta frase: “Havendo o Criador colocado limites à nossa inteligência, lamentável que ele não tenha igualmente colocado limites à nossa estupidez”. Por isso eu só acredito que as coisas acontecem quando a gente bate a cabeça na parede. A gente para de seguir um caminho quando aparece um buraco, um muro. Não gosto de acreditar nisso, mas é nisso que acredito. Eu acho que este gigantismo vai acabar quando acabar o capim. A diferença é que o dinossauro tinha que morrer e nós podemos nos reorganizar de forma diferente.

ALV- Você falou sobre o caráter totalitário da energia atômica e do caráter democrático da energia solar. Gostaria que refletisse sobre esta era pós-petróleo da qual estamos nos aproximando de maneira irreversível.

R.A. – É preciso entender o seguinte: os pressupostos sobre energia no Brasil tem se processado da seguinte maneira: temos uma sociedade movida a petróleo, precisa de combustível. Segundo ponto: o combustível está acabando. Terceiro: que alternativas nós vamos arranjar para que tudo continue do jeito que está? Então vamos para o álcool. Qual é o objetivo do álcool?Fazer com que as fábricas continuem fabricando automóveis e que tudo continue a funcionar. Quer dizer, o dinossauro está programando a sua permanência. Mas ninguém pensa ou pouquíssimas pessoas pensam que é possível ter uma sociedade que não seja baseada em petróleo. Você vê. É o combustível, o petróleo que permite uma fantástica integração nacional. Sem o petróleo não é possível isso. A integração nacional só é possível porque o exército tem avião para combater a guerrilha no Araguaia. E os comerciantes têm caminhões para comprar coisas em Goiás e vender no Rio de Janeiro. Comprar soja lá e vender não sei onde. Integração é uma palavra meio vaca sagrada. Todo mundo acha bom a integração. Acontece que integração exige por outro lado concentração de poder decisório. Para que o corpo seja integrado às decisões têm de ser tomadas numa só cabeça. Você tem que ter uma tecnocracia. Delfim Neto é absolutamente necessário.

ALV– Na era do petróleo?

R. A.-Não tenha duvida. Agora terceiro ponto: isso significa automaticamente atrelar todos os aspectos da vida nacional a um projeto. Então o sujeito do Mato Grosso do Sul não vai desenvolver sua cultura de Mato Grosso do Sul para viver de acordo com seu jeito de mato-grossense do sul ou o sergipano não vai viver de acordo com sua cultura. Todos têm de alguma forma se atrelar no projeto nacional. Não paga a pena plantar tomate nem abóbora, porque o Brasil agora tem que exportar soja muito embora brasileiro não coma soja. Mas a soja vai resolver o problema da divida nacional. Então esta centralização provoca inevitavelmente uma liquidação da cultura. Todo o país, todas estas diversas partes tem que estar integradas num determinado projeto.

ALV– Mas mesmo esta integração é muito estranha. Por que o corpo funciona dirigido pelo cérebro, mas cada membro, cada órgão tem uma função especifica. Isso não está ocorrendo no corpo social.

R. A.- Não está acontecendo. Eu vou dar um exemplo. Uma das grandes manifestações culturais do Brasil são os candomblés. Você pode integrar candomblé na cultura brasileira? É uma maneira de pensar, de viver, valores diferentes. A gente poderia dizer que no Brasil há lugar para o candomblé. É possível integrá-lo através do turismo, ele passa a ser um espetáculo que você consome um espetáculo ex-ótico. Eu gosto de, quando digo esta palavra de destacar este ex, tracinho ótico. É aquilo que sai da ótica normal, que sai da ótica. Então você integrou aquilo como mercadoria. Ela se compra. O turismo vende candomblé. Ela foi integrada como mercadoria e não como expressão cultural. E com esta “integração do país você tem a liquidação da cultura.

ALV– E como seria a integração verdadeira?Como seria se não fosse assim?

R. A.- Mas a pergunta que eu faria é: para que a integração?É preciso integrar o papagaio com o peixe, com o elefante? Você simplesmente não pode viver num mundo em que as coisas não são integradas, mas são lindamente diversas?São absurdamente diversas?E você tem uma orgia de cores, de diferenças? Então vamos respeitar as diversidades.

ALV– Mas esta tentativa de integrar coisas não é coisa nossa. O mundo inteiro está integrado no sentido de massificado.

R. A.- Você vê. Eu estava certa vez na Tailândia sem entender uma palavra, mas estava vendo as mesmas coisas, mesmas cenas que vejo ou vi na televisão daqui. Eu estava vendo lá um filme qualquer desses seriados norte-americanos. Você vai para a Ásia, ou África e vê as mesmas coisas. A mesma coca cola. E por que você precisa integrar? Pela simples razão de que o produtor precisa uniformizar seus produtos, racionalizar sua produção. E racionalizar a produção significa racionalizar o publico. E racionalizar o publico quer dizer-criar expectativas comuns, porque só então você pode planejar sua produção. Então o consumerismo não é só esta doença de todo o mundo querer consumir cada vez mais. O consumerismo é antes de tudo uma nivelação, uma imbecilização de todas as pessoas de modo que todas elas queiram as mesmas coisas.

ALV– Mas parece que a planificação da produção e a massificação do mercado não são apanágios do capitalismo. Nos regimes comunistas também é praticado.

R. A.- Há uma caminhada no sentido da integração especialmente nos países da União Soviética. Na medida em que você tem uma economia totalmente planificada você destrói as diferenças. Os sapatos têm que ser planificados. As indústrias têm que ser planificadas. Você não tem lugar para diferenças exatamente por que há necessidade de racionalização da produção e do consumo. Mas não vamos falar da situação que a gente conhece. As pessoas compram as coisas que acreditam dão bem estar, ficam mais felizes. Acontece que do ponto de vista do sistema se as pessoas ficarem mais felizes o que vai acontecer?Elas vão comprar mais. Então os produtos já estão planejados para dar felicidade no ato da compra e seis meses depois começar a dar infelicidade, criando um modelo novo diferente. Imediatamente o modelo velho perde o valor. A outra coisa tem um valor simbólico. Aliás, isso é muito importante e foi notado há muito tempo por um economista-Veblen. Ele dizia que as pessoas não consomem porque as coisas são uteis, mas por causa do valor simbólico das coisas. Você pode ter uma geladeira ótima. Minha mãe tem uma geladeira comprada em 1953 que nunca foi consertada. Está velha que é uma coisa medonha. Mas está excelente. Como minha mãe é velha e não liga para estas coisas elas está muito feliz com a geladeira dela. Mas para uma pessoa mais moderninha a geladeira é um escândalo. Agora compre uma geladeira nova. Abra e apalpe os plásticos da porta. Tudo vagabundo que vai acabar logo. Mas vai acabar logo não por que ela é mal feita. Exatamente por que ela é bem feita.

ALV– Bem feita para acabar.

R. A.- Exatamente, bem feita para acabar.

ALV– Você dizia que não acredita na existência de fatores econômicos em estado bruto. E que a sociedade humana não é mais rica ou mais pobre por ter mais ou menos bem estar, mas pela sua densidade poética e mágica.Gostaria que você falasse sobre isso, sobre o economicismo exacerbado do marxismo.

R. A.-O meu ponto de vista é o seguinte: todas as realidades que no marxismo seriam chamadas infraestruturas são sempre experimentadas através de símbolos. Nós vivemos um mundo simbólico e não ha realidades brutas à nossa frente. O mundo nosso é um mundo de nomes que nós damos as coisas. Dizia o famoso filósofo Wittgenstein: “os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”. Se você toma duas pessoas vivendo num mesmo estado de miséria, uma delas vai dizer- é a vontade de Deus. É o nome que ela deu. E ela vai viver aquela situação à luz desse símbolo que é a vontade de Deus. A outra pessoa na mesma situação vai dizer: é resultado da exploração a que sou submetido. Então esta situação vai ser experimentada, vivida e sofrida de uma forma completamente diferente. Eu acho que a gente pode aplicar isso para todas as situações da vida. Então isso quer dizer que o nosso mundo é um mundo cultural. Não é um mundo de fatos econômicos brutos. Eu pessoalmente considero que os fatores culturais são extremamente importantes para a felicidade das pessoas.

ALV– Os fatos culturais englobam os econômicos não é?

R. A.- E os econômicos são culturais. O meu ponto de vista é o seguinte: você não pode dizer como vai o Brasil? O Brasil vai bem. O produto nacional bruto é tanto. O que você quer dizer com isso? Está querendo dizer que a vida do país pode ser medida por um fator puramente quantitativo? Eu estou dizendo que não pode. Estou dizendo que você pode ser uma sociedade extremamente pobre, mas equilibrada. É preciso que as coisas façam sentido, que a morte faça sentido, que a vida faça sentido. Uma sociedade que a vida e a morte fazem sentido eu diria que é uma sociedade bonita. Pode não ser grande, mas é equilibrada. É uma obra de arte, uma cultura tem que ser parecida com uma sonata, com uma cançoneta, tem que ter principio, tem que ter meio e  tem que ter um fim .Agora você olha esta coisa que se chama Brasil.Me parece um dinossauro esquartejado.As coisas não se encaixam com coisa alguma.Então você pergunta que sentido fazem as coisas? Você pega um jornal você morre de rir, morre de chorar. Nada faz sentido. Eu diria que isso não é problema só do Brasil. É a grande doença que assola o mundo contemporâneo. É a chamada anomia – quer dizer os padrões significativos da harmonia foram dissolvidos. Anomia-ausência de nomia, nomos.

ALV- Mas a visão economicista se julga a mais correta por que se diz cientifica não?

R. A.- Certo. E o que significa a natureza do ponto de vista cientifico?Ela só pode ser pensada em termos matemáticos. Ora pensar em termos matemáticos significa deixar de lado todas as dimensões sensórias, gustativas, humanas da natureza. Então eu reduzo a natureza a uma matéria pensada matematicamente. E que matéria não é sagrada. Sagrado é para gente da Idade Média onde o corpo era sagrado e você não podia mexer com o corpo. Agora não é mais sagrado e você pode poluir rios, destruir montanhas, derrubar árvores. Agora do ponto de vista cientifico a ciência não tem nada a dizer. Vamos comparar então isso com a atitude do índio para com a natureza. Para ele a terra é mãe, a árvore é irmã, os animais ele caça só para comer sabendo que um dia a terra vai comê-lo. Amar o mar, por exemplo, não é comprar um lote na praia, ser capitalista na praia. Aliás, isso é lindíssimo em Marx. Marx tinha uma sensibilidade para isso incrível.

ALV– Qual dois?

R. A.- Este Marx a que estou me referindo é o jovem Marx que foi considerado o Marx imaturo, infantil, não cientifico. Ele dizia que o capitalismo nos torna tão estúpidos que só podemos apreciar uma coisa quando a temos.Então esta visão, esta apropriação estética da coisa nós perdemos.Não temos mais esta visão mística.Esta continuidade.Tudo é de todos.

ALV- Gostaria de saber como você se aproximou da Igreja Protestante. Foi uma vocação ou resultado de alguma convivência na infância?

R. A.- Já foi constatado que estas religiões novas como o protestantismo oferecem um grande apelo para estas pessoas em situação de marginalidade. Por exemplo, o camponês que sai da sua unidade no interior e vai para São Paulo, ele terá muita facilidade para se tornar um pentecostal por que ele está sozinho, precisa de uma comunidade amiga. Acontece que meu pai era um homem riquíssimo. Tinha uma quantidade enorme de propriedades, fábricas, fazendas, mexia com café.

ALV- Isso em Minas?

R. A.-Em Minas Gerais numa cidade chamada Boa Esperança que é perto da terra do Milton Nascimento que é Três Corações. Aliás, Boa Esperança é terra do Nelson Freire um dos quatro maiores pianistas do mundo. Pois então ele foi à falência na crise de 20. Ele perdeu tudo. Meu pai foi trabalhar na foice como operário braçal numa fazenda. Então nessas circunstancias a pessoa fica numa situação de marginalidade incrível. E apareceram alguns missionários protestantes para dar apoio entende? Ele precisava botar os filhos na escola. Nós ficamos então ligados com a comunidade protestante. Não foi nenhuma conversão. Mas então meu pai viu que trabalhar na roça não dava e virou mascate e começamos a viajar e acabamos indo para o Rio de Janeiro. No Rio a minha experiência foi de solidão, vindo do interior de Minas, falando com sotaque piracicabano. Então minha posição era mais ou menos milho no meio dos frangos não é? E novamente a comunidade protestante foi o meio onde me encontrei, foi o meio que me protegeu, me deu identidade. Nesta época meu grande ídolo era Albert Schweitzer que era musico e teólogo. E lógico eu queria estudar medicina. Mas quando comecei a estudar para o cursinho cheguei à conclusão de que não adiantava sair por ai curando um a um quando a confusão no país era tão grande. Naquela época, os problemas do Brasil eram de outra ordem e isso em 1952-havia muita gente fazendo a opção religiosa. Era a ligação da fé cristã com a responsabilidade social.

ALV- Por que você escolheu o Seminário Presbiteriano de Campinas?

R.A.- Porque era o melhor seminário, havia uma ebulição enorme, era realmente um centro de pensamento.

ALV- Você disse que era mais ativo que o Seminário Católico na época e que dali saíram lideranças para a União Estadual de Estudantes (UEE)?

R. A.- Muito mais ativo. E veio para Campinas um missionário que, aliás, não pode (não podia à época) voltar mais para o Brasil e que foi um grande líder ajudando o pessoal a relacionar a fé cristã com a questão social e política: Richard Schaull. Mas criou um conflito danado no Seminário porque ele representava uma maneira completamente diferente de encarar a fé cristã que tinha a ver para ele com ação social, responsabilidade política em oposição ao protestantismo clássico que lidava com problemas de salvação da alma. E ai criou um racha no Seminário e uma crise na Igreja. Havia um movimento de mocidade muito intenso e os que entraram por esta linha começaram a contestar. Em 1957 sete anos depois da Revolução (de 1964) a Igreja deu o primeiro golpe. Destituiu as lideranças. E em 1964 a Igreja se valeu da situação política para liquidar com os grupos dissidentes que foram acusados de hereges. O Schaull foi mandado embora e quando quis voltar para o Brasil agora em 1980 o Consulado Brasileiro não concedeu permissão. Aliás, é bom a gente falar sobre isso.

ALV- Ele queria voltar para dar aulas?

R.A. – Não ele só queria ver os amigos, ficar por ai umas três semanas andando por ai.

ALV- Quer dizer que a abertura não está funcionando?

R. A.-Abertura de que?

(Risos)

ALV-E quando saiu do Seminário foi para Minas? Foi para sua terra?

RA- Não, fui para Lavras a oeste de Minas. Fui viver uma vida de pastor e ajudar gente. O pastor é um despachante de cidade pequena. É gente que não tem emprego, é mulher que está doente, ou está brigando com o marido. Tudo quanto é desgraça que voce pode imaginar o pastor tem que resolver.

ALV- E era isso que você queria?

R.A.- Era isso.Eu queria ajudar gente.Trabalhar com os pobres, organizar os pobres em cooperativas, organizar aquela gente para criar condições melhores de vida.Nesta época aquela geração nova que havia sido formada entre 1953 e 1957 no Seminário começou a fazer um debate nacional com a Igreja e exigir que ela tomasse posições corajosas frente à pobreza, à miséria.Nesta ocasião a Igreja estava rachada.Ela tinha duas orientações, uma tradicional que achava basicamente que sua obrigação era a salvação das almas e basicamente anti católica.E havia esta geração nova muito preocupada com as dimensões humanas e sociais da fé cristã que tinha encontrado grandes aliados nos católicos que começaram o movimento ecumênico.Então este grupo era considerado a um tempo traidor porque era amigo de católico e católico também não podia ser boa gente e também traindo a fé, transformando a salvação da alma em salvação do mundo.

ALV– Dos dois lados havia atrito não é? Da ala conservadora do protestantismo e do catolicismo?

R. A.- Agora você vê o seguinte. Tradicionalmente você pensa que os conflitos são entre católicos e protestantes. Mas agora com esta situação começa a descobrir que os conflitos são entre católicos de um lado e católicos de outro e protestantes de um lado e protestantes de outro. E que católicos e protestantes de um lado se dão bem.

ALV– A ala progressista dos dois lados se encontrou e nasceu o movimento ecumênico? Você estava neste grupo?

R.A. – Eu participava deste grupo. Mas nesta época, em 1963 fui para os Estados Unidos a convite do Seminário de Teologia de Union (Union Theological Seminary) e lá fiquei um ano. Soube da Revolução de 1964 um dia no metrô quando li por cima do ombro de uma pessoa uma manchete: Revolution in Brazil. Envelheci dez anos num mês. Quando voltei a Igreja já se havia aproveitado da situação para liquidar com todos aqueles dissidentes, aqueles que tinham idéias novas.

ALV– E por falar Inquisição ainda que o assunto seja outro, gostaria de saber do que o Leonardo Boff esta sendo acusado pelo Vaticano? Por suas idéias sobre a Teologia da Libertação?

R.A. – Não, as acusações não têm nada a ver com isso. Aliás, eu não me sinto a vontade para falar sobre isso porque não estudei o assunto, não sei nada sobre, mas me parece que ele tem sido acusado mais por algumas afirmações do tipo: que a Santa Ceia e a Eucaristia teriam sido institucionalizadas não por Cristo, mas pela Igreja. Mas prefiro não falar sobre isso.

ALV– Você disse que havia acusações absurdas contra você e seu grupo e que levou o maior gelo da Igreja?Como foi este gelo na prática?E que denuncias eram estas?

R.A. – Isso foi em 1968. O gelo é o seguinte: Eles não fazem nada contra você. Mas também não fazem nada a favor. Simplesmente te ignoram. Você não existe. Não é convidado para dar aulas, cultos nada. Cheguei a ser convidado e depois a Igreja retirou o convite. Imagine um pastor herege como eu?Então no tive outro jeito senão me demitir da Igreja. As denuncias eram absurdas: do tipo desta: que nós pregávamos que Cristo tinha relações com a prostituta, que recebíamos dinheiro dos comunistas, que nossos filhos escreviam frases de ódio nas latas de leite em pó que vinham dos Estados Unidos. Imagine nossos filhos eram pequenos na época, eram analfabetos ainda.

ALV- E como é pedir demissão da Igreja?

R. A.-Simplesmente um dia, 15 de setembro de 1970 eu sentei na máquina e extremamente irritado eu disse as coisas que pensava. Disse que não compactuaria mais com aquela situação e que me considerassem desligado da Igreja. Nunca me responderam e ficou por isso mesmo.

ALV– Nesta altura você já havia escrito seu A Teology of Human Hope?Gostaria que falasse sobre isso. Você foi um dos primeiros a falar sobre a Teologia da Libertação, não é?

R.A. – Acontece o seguinte. Tradicionalmente os países subdesenvolvidos recebem teologia pronta dos Estados Unidos ou da Europa e isso vale tanto para os protestantes como para os católicos. O pressuposto ai é que quem pensa certo é o americano ou o europeu. E logicamente era uma teologia clássica toda informada pelas comunidades americanas ou européias que a gente ficava repetindo. É preciso dizer que os germes dessa teologia da libertação já estavam sendo lançados desde a década de 50 (do século XX) com o movimento da Juventude Universitária Católica (JUC) movimento de ACA. Quando a gente revê documentos daquela época, a gente já encontra as sementes da teologia da libertação. Eu então tentei pensar a fé cristã a partir de uma experiência cultural diferente dos países do Terceiro Mundo, dos países pobres, dos países que estão por baixo. Por que o Evangelho fica muito diferente na boca dos que tem poder e na boca dos oprimidos. Quando os ricos falam os pobres herdarão a terra, a ênfase é no futuro. Eles herdarão a terra, por enquanto a terra é nossa. Quando o pobre fala, fica sendo uma denuncia uma afirmação de posse, uma afirmação de que a terra está destinada a eles. A mesma expressão do Evangelho na boca dos fortes e dos fracos fica diferente. Então eu estava tentando na minha tese fazer esta jogada diferente. Como você faz uma leitura dos Evangelhos a partir da perspectiva daqueles que estão se sentindo oprimidos?E todos os testemunhos bíblicos são o testemunho dos oprimidos não é?A Bíblia é dos derrotados, gente que está no cativeiro. Jesus Cristo era um pobre. Então é preciso fazer a leitura da Bíblia a partir dos derrotados, dos pobres. O que aconteceu durante séculos e séculos é que a Bíblia foi tomada pelos poderosos e passou a ser o livro dos poderosos. Foi isso que eu tentei fazer.

ALV– Você diz no seu livro Tomorrow’s Child que é a negação que frustra as revoluções: sempre que uma ação é reação ela está condenada a ser reacionária. E então você diz que exatamente por falta de uma visão positiva do futuro para a humanidade as revoluções se frustram. Ao mesmo tempo você afirma adiante que só os oprimidos podem ser criadores porque somente eles tem a vontade decidida de abolir o poder que os oprime e os pressupostos de um poder que está na raiz da sua opressão. Como a gente entende isso? Cristo mandava dar a outra face. Lao Tzé no seu Tao te King fala que a ação do sábio deve ser a não ação. Afinal como se pode mudar o mundo em vista disso tudo?Como seriam as revoluções se elas sempre forem reação?

R. A.- Quando eu falo isso estou trabalhando uma idéia de Nietzsche que me fez repensar a idéia de dar a outra face que é o seguinte. Você tem duas opções. Uma opção é fazer a sua coisa, ou seja, você vai realizar a sua coisa. E para realizar a sua coisa você vai destruir tudo em volta. A outra opção é a seguinte: você não tem projeto algum, você tem raiva do opressor. Então o opressor te bate, você bate nele. Simplesmente isso se chama a ética do ressentimento. Ela não é criativa. O opressor tem a iniciativa e você não faz a sua coisa. Você responde à iniciativa do opressor. É extremamente fácil você denunciar o regime opressor. Fácil e necessário. Mas eu diria o seguinte: no momento em que você permanece apenas na atitude de denunciar você está simplesmente revidando. É preciso anunciar. É preciso dizer o que você pretende fazer. Qual é o teu projeto. Qual é a alternativa. Por que se você não fizer isso você não cria nada, você não semeia nada. Pode ser que eventualmente eu vá meter o braço no opressor não porque ele me bateu, mas porque eu tenho um projeto. É preciso que a iniciativa não fique com o opressor.

ALV- Você diz que para que a criação exista o sofrimento e a esperança devem vir unidos. Você acredita que a humanidade vai chegar a algum ponto, a algum lugar onde o sofrimento vá desaparecer?

R.A. – Eu acho que o sofrimento vai sempre existir. Simplesmente é o sofrimento que nos faz humanos sabe? A questão é a seguinte: há sofrimentos desnecessários causados pela opressão. Este precisa acabar. Porque ele não é natural. Porque o sofrimento natural eu fico velho, vou morrer,sofro, quebro uma perna sofro, morre meu filho sofro. Todos estes são sofrimentos naturais. Todo mundo está sujeito. Agora os sofrimentos dos milhões que morrem de fome, dos milhões que morrem por guerra, dos milhares que são torturados, dos índios que perdem suas terras, o sofrimento que é desnecessário, que é produzido pelo egoísmo, pela prepotência contra este sofrimento a gente tem que lutar, permanentemente. Então a gente podia definir o projeto da gente. A luta contra este sofrimento desnecessário.

ALV– Voce cita muito Nietzsche nos seus livros. E de uma maneira importante no final de Tomorrow’ s Child. Como você entende aquela famosa frase de Nietzsche que foi tão citada e que para quem não conhece pode dar uma idéia absolutamente oposta acerca do seu pensamento. Falo por experiência própria porque quando comecei a ler Nietzsche vi que ele era um iluminado, um homem profundamente religioso e não um homem que havia matado Deus. Enfim: aquela frase: Deus morreu, Deus está morto.

R.A. – Nietzsche é um homem profundamente religioso. Agora o ele quer dizer com a morte de Deus é que toda esta conversa que as pessoas tem a respeito de Deus é uma conversa em torno de um cadáver. Ele vai à igreja e vê que Deus está morto. Deus é um cadáver para as pessoas. Quem leva Deus a sério? Então Deus circula socialmente como um cadáver. Quando ele diz que Deus está morto ele não quer dizer que Deus morreu, está dizendo que é um fato social. O que funciona hoje na sociedade não é Deus não. O que funciona hoje é dinheiro, é poder, é cassetete é a arma.

ALV– Ou seja, ele constata o fato apenas.

R.A. – Ele constata exatamente. E em seguida ele começa a dizer que o universo ficou mais frio. Ficou um buraco, ficou um vazio.

ALV– E você o que pensa de Deus?

R. A.- Eu acho que Deus está naquelas coisas que a gente ama intensamente. E o que a gente ama absolutamente são valores. A gente vive em função de valores. Os meus deuses são os meus valores, e os deuses de todas as pessoas são os seus valores. Isso é uma coisa que a gente aprende com Feuerbach. O Deus do homem é o que ele espera, é a sua esperança. A gente fala isso: meu Deus é minha esperança, o meu horizonte. Deus é tudo o que eu desejo.

ALV– Como você se sente com a problemática de Deus? Não fica se perguntando dia e noite? Você se pergunta sobre o sentido da vida?

R.A. – Eu sinto uma saudade, uma nostalgia. Veja no começo do livro O Mito de Sísifo, Camus falando do sentido da vida, que é o único problema filosófico que se coloca, ele diz o seguinte: Galileu de posse de uma verdade importantíssima, quando sua vida foi colocada em jogo ele abjurou da sua verdade. E fez muito bem. Porque é absolutamente irrelevante se a Terra gira em torno do sol ou o sol gira em torno da Terra. Que diferença faz para minha vida?E ele continua: vejo milhares de pessoas morrendo e milhares de pessoas vivendo com ilusões e loucuras que dão sentido para morrer. O que quero dizer é o seguinte: nenhum fato dá sentido à vida. O que dá sentido à vida são valores e os valores necessariamente não são existentes. O que dá sentido à vida são esperanças, não ausências.

ALV– Você disse que foi levado à Igreja porque sentia a presença de Deus. E hoje sente sua ausência. O que mudou neste tempo?

R. A.-Mudou muito porque as pessoas que tem presença viram inquisidores. No instante em que você tem a presença, você tem as idéias corretas, você tem a inquisição. Seja inquisição da Igreja Protestante, da Igreja Católica, do partido comunista. O estalinismo virou uma religião também. Kolakowski, um filósofo polonês fala sobre a religião do estalinismo. No instante em que você tem presença, você tem dogmatismo, você tem inquisição. Quando você tem ausência, você tem uma humildade terrível. A única coisa que você dispõe é um vazio, uma nostalgia. E você com um vazio, uma nostalgia não pode ser inquisidor.

Para saber mais sobre Rubem Alves consultar seu site oficial que, no entanto, segundo ele mesmo não está atualizado: http://www.rubemalves.com.br/

Ana Lúcia Vasconcelos é atriz, jornalista, escritora e tradutora, licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp, e acaba de preparar um livro ainda inédito sobre Hilda Hilst. E-mail: analuvasconcelos@globo.com




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