O desassossego do tempo


………………Isabel Mendes Ferreira e o desassossego do tempo

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Penso, aqui, o tema do desassossego do Tempo nos enredamentos de uma interessante poetisa contemporânea portuguesa: Isabel Mendes Ferreira, natural de Montijo. Uma obra altamente dessubjetivante. Em sua poesia sonhadora e errante, Isabel dá-nos pistas das influências de sua tendência ao mascaramento, ao citar Pessoa, por exemplo:

(…) Pessoa pergunta: sonhei ou fui? E Pessoa responde: o que eu fui sonha____________ e eu sou o sonho. exilados então somos o túmulo e o diálogo. a culpa e a aprendizagem. a luz crescente e a honra dos mortos. o fogo e o repouso, o guerreiro e o anjo. o tempus fugit e a vita brevis.__________ ímpetos. ou revelações? será toda a linguagem final e o fim uma antevisão da saudade? (FERREIRA, I. M., 2014, p.148).

Isabel retoma um Pessoa que não criou poesias singulares que falavam de poesias. O seu Pessoa é o sonho plural, criou uma galeria de vozes que refletem este exílio de si distintamente. Isto seria uma “instauração de Discursividade” (Foucault)?[1] Nós somos o que já fomos, e nesta obsessão ontológica pelo que já passou, pelo ser que não se pode ser, pelo vácuo de qualquer subjetivação presente ou biográfica, Isabel Mendes Ferreira propõe a “reconstrução de alguma trama” já enovelada no apagamento da memória. Para a poetisa, o sujeito da agoridade é vazio, esquecemos o que já fomos, somos a face branca, o vazio, o esquecimento, “em lume apenas indício”:

já fomos rumos. rumores. roteiros de um beijo sem rótulo. já fomos reis de um dia só. de uma só maré. no dia em que o mar foi mesa à nossa roda. e te recontavas em palavras que tremiam esticadas pela faca do olhar sobre os dias que prometiam ser rubros. já fomos a noite roubada aos minutos e os minutos sangraram a distância rutilante e já fomos o silêncio quase rupestre onde nos desbravámos vigilantes e redondos.

hoje somos face branca do esquecimento. reconstrução de alguma trama que se cose ao brando. branco. em lume apenas indício. (FERREIRA, I. M. p.42)

O tempo é uma questão que nos põe em contato com o infinito, com as ondas do infinito. Rajadas de linguagem errante, assim Isabel interroga o tempo, porque, como diria Blanchot “(…) esta interrogação tem seus traços próprios. Ela é insistente e não podemos nem por um instante, prescindir de interrogar” (BLANCHOT, 2001, p.45). É o que Blanchot chamaria de “a questão mais profunda”. Mas não pense o leitor que sua poesia vai rendendo apenas intimismos e malabarismos de linguagem, pois o humano é, talvez, o tema maior de Isabel Mendes Ferreira. Ela mostra pistas de suas influências, volta ao passado, assiste à vida, borda a humanidade, motivo de decoração para ela, herdeira de Bernardo Soares. Lembremos, a propósito, de algumas palavras deste semi-heterônimo de Pessoa, no Livro do Desassossego:

Nem em torno dessas figuras, com cuja contemplação me entretenho, é meu costume tecer qualquer enredo da fantasia. Vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem vistas. Tudo mais, que lhes acrescentasse, diminuí-las-ia, porque diminuiria, por assim dizer, a sua “visibilidade”. Quanto eu fantasiasse delas, forçosamente, no próprio momento de fantasiar, eu o conheceria como falso; e, se o sonhado me agrada, o falso me repugna. O sonho puro encanta-me, o sonho que não tem relação com a realidade, nem ponto de contacto com ela. O sonho imperfeito, com ponto de partida na vida, desgosta-me, ou, antes, me desgostaria se eu me embrenhasse nele. Para mim a humanidade é um vasto motivo de decoração, que vive pelos olhos e pelos ouvidos, e, ainda, pela emoção psicológica. Nada mais quero da vida senão assistir a ela. Nada mais quero de mim senão o assistir à vida. Sou como um ser de outra existência que passa indefinidamente interessado através desta. Em tudo sou alheio a ela. Há entre mim e ela como um vidro. Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero sempre o vidro. Para todo o espírito cientificamente constituído, ver numa coisa mais que o que lá está é ver menos essa coisa. O que materialmente se acrescenta, espiritualmente a diminui. (SOARES, B. e PESSOA, F. 1999, p. 465)

Um poetar único que rendilhará, em alto nível imagístico, obstinadamente profana, inacessível, dissipante, iluminada, sua tarrafa de mágoas, enteando o grande monstro (o Tempo). A metafísica é capturada para a picada venenosa. Como produzir um texto devorador, desassossegado, um texto-alimento, quando se crê que nada é saciável, trigo incerto? Como dirá a Isabel:“ (…) em rigor nada do que escrevo interessa. é como terra sem forma onde me acamo e ajusto. nada de promessas enquanto o reverso toca o chão onde nada é saciante.” (FERREIRA, I. M. p. 48)

Em rigor, nada interessa, mas a poesia o tempo todo se interessa a si mesma. Segundo Manuel Fernando Alves:

A poesia de Isabel Mendes Ferreira é antes de tudo uma meta-poesia, uma reconstrução da própria casa do poetar, e como tal, habita um terreno poético só seu. A tarefa da poeta é simples e acontece-lhe aparentemente sem grande esforço: tornar o pensamento uma coisa bela. Todo exercício do pensar é uma busca do essencial. Esta poesia é uma constante nesse trabalho, nessa purificação do próprio pensamento. E fá-lo com uma mestria e uma beleza muito rara entre nós. (…) (ALVES, apud FERREIRA, 2014, p.13)

Em “o tempo é renda”, a poesia deflagra-se enquanto eutanásia pela escolha de uma beleza poética mortal (na qual a própria poeta já não acredita e, assim, não quer ser lida, porém cujo laço de dependência com o anjo-leitor que lhe guarda e guia é todavia inevitável). A poesia surge, portanto, como auto sacrifício, percebe-se, por mais que se desenrole sem esforço, de modo natural, orgânico como seda. O eu-lírico, a poeta, lanha e é lanhada com a espera deste sacrifício final que não chega, e o pão do desgaste a alimenta. Não nos fazemos e sim nos desfazemos, a cada dia. Não fazemos parte do tempo, nascemos em meio a um tempo bárbaro, já bordado antes de nós, uma rede de captura, logo a vida e a poesia manifestam-se na operação de desmonte da ilusão evolutiva do tempo. Ou como diria Bernardo Soares,

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro. (SOARES, B. e PESSOA, F. 1999, p. 321)

Neste não saber o que é o tempo e o que nos resta, Isabel, igualmente subversiva, por sua vez, traça uma possível autocrítica:

Dentro do obscuro bloco (Mallarmé) somos todos andarilhos entre a vida e a morte. A morte e o devastador selo da vingança. Heróis do contemporâneo com balas de medo às costas de um perfil subversivo. Longa vida à vida que resta. (FERREIRA, I. M. p.138)

Claro está, para mim, que a obsessão pelo tempo é uma característica de I.M.F., sobretudo um tempo perdido, branco, um tempo invisível para o leitor. Michel Butor nos recorda que existe um “branco” que fica entre os parágrafos que contam  tempos diferentes. Assim como na composição musical que é feita de sons e pausas, a poesia precisa de um silêncio, um branco: em Isabel, por vezes, representado pelo traço (________).  Este branco é o que marca uma região temporal que frequentemente é esquecida, é o tempo do leitor. Para Butor, como cada leitor tem um tempo para si, o tempo da narrativa é, assim, dada em uma relatividade com o tempo de se ler. No mais, ele destaca três tempos, na narrativa ou na ficção, que seriam: o tempo da aventura (o tempo interno em que a “coisa” ocorre); o tempo da escritura (este tempo vai refletir-se na aventura por intermédio de um narrador) e o tempo da leitura (o tempo que o leitor aciona ou presentifica a “coisa”, a história. Butor explica-nos que “O autor pode nos dar um resumo que lemos em dois minutos, exigiu duas horas para ser escrito e ocorreu, no plano da aventura, em dois dias.” Mas, noto que para Butor o tempo ainda é um elemento que precisa ser “aplicado” sobre um espaço. Para se estudar as anomalias do tempo é preciso observar o espaço. Aqui comparo Isabel com as reflexões de Butor, porque ela nos auxilia a pensar esta questão, ao produzir uma poesia prosaica que, colocado um traço no seu interior, possibilita vermos a necessidade desse tempo do leitor, esse “branco”, essa linha do tempo que está se desenrolando. Butor, por ver o tempo muito segmentadamente acaba não admitindo uma outra temporalidade possível que é a do autor, da autoria. Para ele, o autor quando nos conta algo no ´eu´ está sempre no interior do que conta. Este apagamento temporal-autoral poderia bem ser estudado em paralelo com Foucault, mas ocorre um contratempo que é o perigo de apagar toda e qualquer remissão ao tempo em prol do espaço, do lugar, da topografia que implica no labirinto do discurso como miragem.

Voltando a Isabel: na obra “As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar”, prefaciado por Domingos Duarte Lima, temos alguns simbolismos específicos que redundam, alguns, em outras obras. O acaso líquido da composição, uma escrita que escorrega com destreza feminina e delicadeza afiada, perigosa, aracnídea. A liquidez temporal. O destino como fluidez: “(…) e ainda é tempo… como punho.” (p.43); “(…) o tempo é sempre feito de memórias__________________.” (p.43); “(…) feridas indissolventes estacas como harpas tensas e átonas. estátuas. o tempo.” (p.63). Nessa liquidez, neste fluxo, o fingimento poético, a exterioridade negativa e dissimulada, a dissimulação feminina que tenta amenizar e, simultaneamente, viver, potencializar, a intensidade do destino, a loucura das palavras, o horror da morte e a sua beleza.

E como pedaços antigos de uma suave porcelana fingimos a noite no diálogo navegante que é tudo o que nos sobra por dizer nas palavras aparentes. Fechados anjos que duram o momento interrompido por exílios aliados do silêncio. Ao longe como deve ser a luz crua da síntese ficas farol. Que o tempo é atingido e solitário. E a água o nosso maior destino. (FERREIRA, I. M., 2010, p.398)

A escrita não adquirirá, então, um lugar sólido, fixo, e sim uma deriva, um fluxo, um estado de instabilidade. A água, a fluidez, a dissimulação, o fingir, o desenredar, as lágrimas, o sal, tudo isto, assume um papel protuberante nesta produção poética solitária. A água, como simbolismo, agrega-se ao fingimento/tingimento das palavras. Tudo é impostura e a persistente busca submergida pela impossível verdade desde a palavra permanece como uma luta perdida. A feminilidade da loucura, do desânimo, em uma arquitetura monumental, sentimental, mas de tal modo, um lugar de inalcançável transparência e transcendência pela palavra, um lugar de fuga, de deslizes, onde o leitor se submerge por completo. Uma poesia sem tempo, que se desintegra desde uma dimensão muito pessoal e desesperante. A saudade de uma memória impossível, de um futuro impossível também. Peregrinação aquém, para o esgotamento, onde nada se espera, desesperança.

o tempo é renda no ventre plano da saudade

não espero nada. sou assim como a desintegração . evento cardume película e animal de

infância______________________ (FERREIRA, I. M., p.107)

 

 

 

 


[1] Tomamos Pessoa, aqui, como exemplo mor deste ser em desassossego constante, tanto no ponto de vista poético, quanto psiquiátrico. Mais do que desdobramentos de nomes ou descrições heteronímicas, Pessoa desdobra personalidades reais ou irreais, pouco importa, que se contradizem umas às outras e não raro a si próprias. São dessubjetivações e não subjetivações. (Bernardo Soares muitas vezes se confunde com o Pessoa ele-mesmo ou Álvaro, Ricardo Reis – diz Richard Zenith). Uma parte da crítica, e freqüentemente a fabulosa pedagogia escolar que tem por missão “ensinar” Pessoa, entram sempre na amargura do labirinto porque recaem no biografismo dos heterônimos versus o de ele-mesmo. É cair na discussão comum, é cair na negação do hibridismo, coisa que também se aplicaria a um leitor desavisado de Isabel Mendes Ferreira. Já dizia Octavio Paz: “o poeta não tem biografia, sua obra é sua biografia”. Porém, em algumas poéticas, buscar quem é o autor desde sua poesia é cair na banalidade e fugir de qualquer lição que seja pessoana ou pessoal.  Porque será, quanto mais cresce em Portugal a poesia dramática, seja lá de qual contingenciada noção de drama advenha, mais e sempre aparecem nacionalistas da língua portuguesa para tentar “desdramatizar” os poetas, personalizá-los, quando, por exemplo, o próprio Pessoa dizia de sua “despersonalização do dramaturgo” (sua missão era conduzir poesia lírica à dramática). Pessoa não tem língua, assim como van Gogh não tem orelha. Isabel Mendes Ferreira é herdeira desta despersonalização e pós-impressionismo, loucura pela poesia, desta esquizofrenia escritural, da dessubjetivação pela potência estética, repotencializando confusões naquele leitor que ainda vise achar um autor definido no poema, coisa não raro ainda mal resolvida em termos críticos, sobretudo numa tradição em que ainda os autores são autores à medida em que são iluminados, claros, absorvíveis e não o contrário, apagados, obscuros, exilados subjetivos.

 

 

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Referências

AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e a Morte. Um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
BARROS, M. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BATAILLE, Georges. Teoría de la religion. Buenos Aires: Tauros, 1998.
BLANCHOT, M. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987;
_________ Une Voix Venue d’Ailleurs. Paris: Gallimard, 2002;
BUTOR, Michel, Repertório, São Paulo: Perspectiva, 1974
FERREIRA, Isabel Mendes. As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar, Lisboa: Babel, 2010.
__________. O tempo é renda. Lisboa: Labirinto de Letras, 2014.
PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos, seleção de Frederico Barbosa, São Paulo: Click Editora, 1998.
_________. Livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
ZINGANO, Érica. Este texto podia continuar assim: Derivas a partir de onde vais, drama-poesia?, de Maria Gabriela Llansol. Disponível em:<http://www.revistazunai.com/ensaios/erica_zingano_derivas.htm>. Acesso em: 3 mar 2015.

 

 

 

 

 

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Daniel de Oliveira Gomes é pesquisador no Programa de Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade na UEPG, Paraná. E-mail:setepratas@hotmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. José António Barreiros, Na qualidade de editor da “Labirinto de Letras”, que publicou o último livro de IMF, “o tempo é renda”, aqui fica o testemunho de muito apreço e gratidão por ter dado voz àquela escrita. Cumprimentos cordiais jab
    27 junho, 2015 as 16:57

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