Memórias à beça de um poeta do tempo


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Para meu pai Tabajara Acácio de Carvalho, que ficou “encantado” como o pai de Reynaldo Bessa.

Para Ivan Teixeira, mestre querido, que foi conhecer Augusto dos Anjos.

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saudade é uma palavra

da língua portuguesa

a cujo enxurro

sou sempre avesso

(…) saudade

o sol da idade

o sal das lágrimas

(Wali Salomão, “Armarinho das miudezas”)

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Estão a matar o antigamente… Gente sem história, gente que existe por imitação (…)

A verdade é que o tempo muda, esses velhos são uma geração do passado. Mas estes

velhos estão morrendo dentro de nós.

(Mia Couto, “A varanda do frangipani”)

Com mão paciente vamos compondo o puzzle de uma paisagem que é impossível completar

porque as peças que faltam deixam buracos nos céus, hiatos nas águas, rombos nos sorrisos,

furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que abrem no vácuo – como vitrais fraturados

(…) como aqueles recortes que suprimem os limites do real e do irreal nas telas oníricas de

Salvador Dalí.

(Pedro Nava, “Baú de ossos”)

 

 

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Estilo é o que permite reconhecer o autor de uma carta anônima, segundo a boa sacada aforismática de Manuel Bandeira (para não citar de novo a batida máxima de Buffon: “o estilo é o homem”). Isso significa que uma maneira característica de escrever é uma espécie de assinatura: é o estilo que faz um escritor se distinguir de outro, singularizando-o. Cada escritor, assim, por seu modo de dizer, adquire uma cara no universo do discurso literário. E uma boca, um nariz, uma voz – um corpo, enfim. Ah, a astúcia dos gregos: a retórica aristotélica explica que pelo modo recorrente de dizer o escritor (“orador”, no original) constrói um ethos, uma imagem de si, um corpo textual. Estilo, pois, é corpo, que se manifesta por meio de um tom de voz, um temperamento, uma gestualidade.

Um modo de dizer mais contido, equilibrado, que produz um efeito de sentido de objetividade, por exemplo, cria uma imagem de um escritor mais apolínio: um tom de voz mais baixo, um temperamento mais racional, uma gestualidade mais comedida. Um escritor bem emblemático desse perfil em nossas letras é Olavo Bilac. Por outro lado, um regime de escrita marcado pela emoção, com efeito de sentido de subjetividade, constrói a imagem de um escritor mais dionisíaco: um tom de voz mais intenso, um temperamento mais instável, uma gestualidade mais apaixonada. Um exemplo prototípico dessa persona em nossa literatura é Castro Alves. Curiosamente, inclusive, os corpos desses autores, em sentido físico, carnal, parecem perfeitamente traduzidos em seus corpos textuais: a obra do poeta parnasiano tem os cabelos alinhados do autor – é uma escrita bem penteada! A do poeta romântico tem seus cachos revoltos – é uma escrita descabelada!

A partir desses dois grandes estilos básicos, poderíamos dizer que escritores do primeiro tipo se inscrevem numa tradição que se denomina clássica; os do segundo time integram a chamada tradição romântica. De um lado, a poesia é construção; de outro, inspiração. Na literatura brasileira do século XX, dois nomes representam bem essas duas poéticas: João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Moraes. Os versos de Cabral são sóbrios e alinhados como suas roupas e cabelos – não à toa ele comparava o fazer do poeta ao do engenheiro (o “ourives”, para Bilac), sempre meticuloso ordenado, racional. Os de Vinícius (sobretudo na canção) vêm com o colarinho torto e a camisa desabotoada – não à toa João Cabral dizia que o poetinha parecia ter um único órgão, o coração (como se seu corpo fosse um enorme coração!).

Para se depreender dos textos o ethos de um escritor, é preciso examinar as recorrências de seu modo de dizer: quais são seus temas, quais as figuras que usa para representá-los, qual é sua seleção lexical, como trabalha as categorias “tempo” e “espaço”, etc. Os usos reiterados de recursos linguísticos e literários é que dá à luz o estilo, fazendo nascer o autor. Picasso pinta Picasso, Rodin esculpe Rodin, Rimbaud escreve Rimbaud: a repetição faz o artista, permitindo reconhecer seu ethos, identificar seu estilo. Voltando a Bandeira, mesmo sem vermos a assinatura de um quadro, sabemos se é de Van Gogh ou de Miró. Grandes artistas jamais conseguiriam escrever uma carta anônima: como disfarçar o trompete de Miles Davis, a voz de Louis Armstrong, o pescoço de Modigliani, os neologismos de Joyce?

 

O ethos de Bessa: um corpo-textual feito de letras & sangue

 

Tudo isso para começar a falar de Reynaldo Bessa, que pelo seu modo de enunciar, por sua maneira de escrever, por seu estilo, cria seu predecessores (como formula Borges num ensaio sobre Kafka), filia-se a uma tradição. É que, considerando que não há um “grau zero da escritura”, que o dito sempre se ancora num já-dito, toda obra pertence a uma genealogia, inscreve-se numa “filiação de dizeres”. Todo autor, assim, pertence a uma dada família, tem uma origem. Aliás, ainda que essas categorias valham para todo discurso, no caso de Bessa, poeta da memória, é sintomático falar em filiação, família, genealogia: trata-se de uma temática recorrente em seus trabalhos, como veremos.

Bessa tem parentesco estético com Castro Alves, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira (para falar só desses autores que citamos até aqui). Tem até um ar, fisicamente falando, de Castro Alves, com seus cachos soltos ao vento, além da carnalidade do poeta dos escravos para falar da mulher. Tem de Vinícius a paixão, os versos de alta voltagem emocional, o gosto pelos bares e pela noite, a música lado a lado com a poesia. De Bandeira traz o tom saudosista, a reflexão existencial, a presença constante do tempo. Bessa integra o time dos escritores dionisíacos da tradição romântica: esta é sua família literária.

Examinando seus textos, vamos observando certas repetições que o caracterizam esteticamente, permitindo dizer que Bessa escreve Bessa. Mesmo escrevendo à beça (o trocadilho aqui é funcional!), em gêneros diversos, como um autor polígrafo que é, é sempre Bessa, seja incorporando o contista, o poeta ou o cancionista. Mas que recorrências são essas que lhe conferem um estilo? Em linhas gerais, para iluminar o percurso de análise a que procederemos, notamos um modo de dizer característico, que se faz presente na tematização da saudade do passado, da dor das perdas, da consciência de existir, das heranças familiares; no emprego de figuras que remetem à memória de suas vivências, como o carro do pai, o cigarro da amada, a lua da solidão, o corpo sentindo as mordidas do tempo; na escolha de palavras como saudade, pai, perda, irmão, passado, tempo…

Para apreender o corpo textual de um autor, sua obra não precisa tratar explicitamente do corpo: o corpo feito de letras não se confunde com o corpo feito de carne. Mas no caso de Bessa, o corpo físico é figura constante em seus escritos, portanto também caracteriza seu corpo-texto: está presente metonimicamente já nos títulos de algumas obras, como os livros de poesia Outros barulhos (de 2008, indiciando a presença dos ouvidos) e Cisco no olho da memória (de 2013, em que se vê a presença dos olhos), como os discos O som da cabeça do elefante (de 2005, convocando novamente a audição) e Com os dentes (de 2010, em que marca presença a boca – sugerindo oswaldianamente a devoração antropofágica de autores que musicou e que também integram a constelação de suas influências, como o simbolista Alphonsus de Guimaraens, o modernista Drummond e o maldito Bukowski). Nos seus contos e poemas, há sempre cheiros, gostos, imagens, sons, apreendidos pelos órgãos sensoriais e sempre marcados no corpo-texto. Pela experiência do corpo, manifesta-se o espírito, usando como canal de mediação os sentidos (como diria Blake em seus Provérbios do Inferno): nessa perspectiva é que a poesia, como manifestação espiritual, traduz a consciência da passagem do tempo gravada na matéria. Em síntese, em seu corpo-texto está presente o corpo-matéria, que também responde pelo nome “tempo”: o corpo, pois, é como um relógio de carne.

 

O poeta da memória & o relógio de carne

 

Com base nisso, entendemos que Reynaldo Bessa é um poeta da memória, um escritor da existência, submerso nos mares inquietos do espírito, a navegar nas águas tempestuosas da emoção, embalado pelos ventos fortes da paixão, cujo ethos se desenha, portanto, com os contornos difusos da subjetividade: seu “eu” literário se constrói em relação mais forte com o tempo (sua matéria-prima), sempre matizado psicologicamente. Claro que há, como já dissemos, espaço em seus poemas, contos e canções, inclusive com densidade figurativa: há, por exemplo, árvores de se ver e tocar, como as algarobas que dão nome ao seu livro de contos Algarobas urbanas (2011). Há a casa da família, a cama da musa, o aeroporto, a rua, o bar… Mas toda marcação espacial vem perfumada de passionalidade, cheirando a saudade, impregnada de sensação de perda e angústia da falta – olhar o passado e trazê-lo à tona pela alquimia enunciativa, pela mágica poética, é uma viagem no tempo. O espaço, em outros termos, parece então temporalizado: é nesse espaço-tempo que Bessa se desloca, como se a dizer que o deserto mais árido é o que há dentro de nós.

Nesse sentido, a figura concreta das algarobas, árvores típicas do nordeste, funciona mais como pretexto para materializar o tema da secura que arde na alma, como se depreende das palavras de Mariana Collares esclarecendo o título: “nascem nas regiões estéreis e desenvolvem-se com quantidade mínima de água. Por necessitarem de pouco para sua subsistência e pela comprovada capacidade de medrar em solos praticamente inférteis, são conhecidas como ‘a planta mágica’ ou ‘o camelo vegetal’. Servem também de pasto para os animais e oferecem uma fonte de descanso nas pausas da lida. As algarobas vicejam na desilusão da seca, na desistência da sombra e até mesmo em meio ao concreto das grandes cidades”.

A citação aqui se justifica como método: para ler Bessa, perseguimos também as pegadas dos que já passearam por suas florestas de sinais, por suas selvas textuais. Na linha do ensaísta Michel Butor, reivindicamos em nossa análise a ideia de “obra maior”, partindo da crença de que a obra de um autor, em sentido mais amplo, é também formada pelos textos escritos sobre sua produção. Por isso, além de Mariana Collares, evocamos a leitura do poeta Edson Cruz, no prefácio que introduz o leitor pelos caminhos tortos e sinuosos dos contos, como uma espécie de síntese lapidar deste percurso de investigação que adotamos: “Reynaldo Bessa oferece-nos contos belos e pungentes, exorcizando a memória dolorosa da infância e da juventude, e dialogando com a figura dura e marcante de seu pai. Seu narrador, quase sempre em primeira pessoa, nos conduz pela mão em um passeio intermitente entre o tempo passado, rememorado, e o tempo presente cristalizado e esburacado pelas vivências não cicatrizadas”. Por isso, Bessa nos parece predominantemente um escritor do tempo, com uma obra plena de efeitos de subjetividade: tudo se submete à experiência temporal, ao resgate da memória, a um acerto de contas com sua história (como em Proust, por exemplo: o tempo de Bessa é menos Balzac!).

Notamos nos textos de Bessa uma espécie de persistência do passado: o vento das “vivências não cicatrizadas”! Aliás, como no quadro Persistência da memória, de Dalí, os relógios das peças literárias de Bessa parecem derretidos: não é o passado anotado em diário, com data, hora marcada, recriado como ilusão de objetividade, para apaziguar um pouco a dor de sua irreversibilidade, dando ao “eu” a impressão de ter o que perdeu. O passado de Bessa vem mais rosianamente neblinoso: lembranças envoltas nas brumas da memória, coleção de cheiros, de gostos, de imagens de sua história.

 

O velho baú de memórias & o tesouro das recordações

 

Corrigimo-nos: em vez de usar “lembranças”, talvez fosse mais apropriado aqui empregar “recordações” (como aconselharia Barthes, que adorava essas distinções de pares, sempre atento às sutilezas semânticas), já que os sinônimos, sempre imperfeitos, oscilam sempre no pêndulo semântico entre reflexos e refrações de sentido! O verbo “recordar” parece refletir melhor a ideia que queremos traduzir: tem um traço de sentido fundamental que o distingue de “lembrar”, ligado à memória “subjetiva”. Quem dá a dica é o filósofo Kierkegaard, em seu Banquete, fazendo-nos perceber a sutileza que faz toda a diferença: “recordar” significa “trazer ao cordis”, nada menos que “coração”. Trata-se, pois, da memória dos afetos, que resgata a infância, que revive o pai morto: “a memória que do sepulcro os homens desenterra”, na feliz formulação camoniana!

A memória de Bessa não é documental, traduzida em números, organizada lógica e linearmente para forjar uma imagem estável de unidade e coerência, sem furos, buracos, na nostalgia da plenitude (como ensina Barthes, a linearidade é uma ilusão do ocidente!). Por isso não é ativada pela chave do verbo “lembrar”: lembrar é solar, memória que resgata o passado com efeito de evidência. No conto “Branco, Branquinho”, pegamos de empréstimo uma feliz expressão do escritor para essa espécie de memória: “memória de espelho”. Não é dessa natureza a memória de Bessa, que é movida pela recordação, envolta nas brumas do sentir, nas névoas da paixão, sem a obviedade do espelho e do sol, com os furos e buracos da lua: “recordar” é lunar, impregnando o passado de opacidades, revelando a incompletude constitutiva do ser, em sua eterna e insolúvel busca da metade faltante. Não à toa deixa isso registrado em seu livro de poesia Outros barulhos (publicado em 2008, foi agraciado com o prêmio Jabuti de literatura de 2009), por exemplo, nestes versos: “se pudesse me ver/ nada veria/ tenho o espírito turvo”. Se algo é evidente é que a existência não é transparente: sempre sob as subdivisões prismáticas de mil refrações, a vida não é nada evidente!

A memória que Bessa constrói nos contos, poesias e canções é da mesma matéria, por exemplo, de que é feito o poema Profundamente, de Manuel Bandeira: “Quando eu tinha seis anos/ não pude ver o fim da festa de São João/ porque adormeci/ hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ minha avó/ meu avô/ Totônio Rodrigues/ Tomásia/ Rosa/ Onde estão todos eles?/ Estão todos dormindo/ Estão todos deitados/ dormindo/ profundamente”. Bandeira resgata pela recordação uma noite de São João, perdida no passado de seus seis anos, com a alegria, os barulhos das bombas, as vozes, as cantigas, os risos ao pé das fogueiras acesas… Hoje todos estão mortos, como está morto o menino que o poeta foi: ou melhor, estava dormindo no passado longínquo, mergulhado no rio do esquecimento, até ser resgatado pela rede do “recordar”.

Por falar nesse poema, acabamos de lembrar (nesse caso, não é recordar!) que foi usado como epígrafe pelo mestre da literatura memorialista do Brasil, o escritor Pedro Nava, no primeiro volume da sua obra, Baú de Ossos. Numa imagem interessante, Nava explica a memória mostrando que normalmente nos lembramos dos fatos épicos de nossa narrativa existencial, mas nos esquecemos dos acontecimentos “menores”. Os fatos grandiosos que ficam registrados são como ilhas: em geral não conseguimos ligá-los, normalmente parecem não ter conexão alguma. Nas profundezas, na verdade, as ilhas se ligam, porque brotaram da mesma fúria magmática, chegaram à superfície pela mesma explosão, mas pertencem à mesma matriz rochosa.

Vejamos como o memorialista desenvolve esse raciocínio de maneira prodigiosa: “É impossível colocar em série exata os fatos da infância porque há aqueles que já acontecem permanentes, que vêm para ficar, que nunca mais são esquecidos, que são sempre trazidos tempo afora, como se fossem dagora. É a carga. Há os outros, miúdos fatos, incolores e quase sem som – que mal se deram, a memória os atira nos abismos do esquecimento. Mesmo próximos eles viram logo passado remoto. Surgem às vezes, na lembrança, como se fossem uma incongruência. Só aparentemente sem razão porque não há associação de idéias que seja ilógica. O que assim parece, em verdade, liga-se e harmoniza-se no subconsciente pelas raízes subterrâneas – raízes lógicas! – de que emergem os pequenos caules isolados – aparentemente ilógicos! Só aparentemente! – às vezes chegados à memória, vindos do esquecimento que é outra função ativa dessa mesma memória. Sobem como pés de tiririca, emergem como Açores e Madeira, ilhas perdidas na superfície oceânica, entretanto pertencentes a uma mesmo sistema entrosado de montanhas subatlânticas”.

O verbo “lembrar”, a partir dessa leitura iluminada e iluminadora, permitiria pensar na impossível possibilidade de reconstituir a unidade (como Nava fala explicitamente na epígrafe que destacamos), de restituir a completude, na ilusão de voltar ao grau zero da fusão originária, na utopia de regressar ao instante anterior à cisão constitutiva, fonte de todas as faltas. O que vem à superfície, conforme lemos já expandindo Nava, são ilhas, nem sempre épicas, nem sempre plenamente visíveis, mas fragmentos rochosos vindos à tona pelos movimentos tectônicos da recordação. Sim, o que provoca a explosão furiosa e o mar de magma e lágrimas é o “recordar”, não o “lembrar”. São esses abalos sísmicos que sentimos nas ondas das páginas tremulantes de Bessa.

Em Outros barulhos, por exemplo, todo esse passado está muito presente: os barulhos do ontem de que falava Bandeira marulham na memória. Sem medo de dar bandeira (com o perdão do trocadilho), nosso autor parece reescrever Profundamente nestes versos: “quanta saudade/ saudade de tudo/ como se eu fosse muitos/ minha mãe várias/ meu pai todos./ meus irmãos milhares/ meus amigos centenas/ lembro de casas, cheiros,/ dias, tardes, noites, sons,/ cachorros latindo,/ meninos chorando,/ gente sorrindo,/gatos roubando,/ ausências, paisagens, gritos,/ varais/ lembro lembro lembro/ saudade de tudo/ até do dia em que cortei o dedo”.

Aliás, em Cisco no olho da memória, há um trecho que evoca novamente o poema de Bandeira: “eu olhava prum lado e via meu irmão dormindo,/ olhava pro outro e via meu pai dormindo./ agora eu tapo os ouvidos e não olho para os lados”. O pai e o irmão, que estavam dormindo em algum lugar da infância do poeta, são resgatados pela memória num presente de que não mais participam: ambos estão mortos. Como os avós de Bandeira naquela Noite de São João, hoje todos dormem profundamente! Curiosamente, neste poema Bessa faz uma ponte entre os dois livros: ao tapar os ouvidos, para não ouvir os ecos do passado, retoma a atmosfera de Outros Barulhos; ao não olhar para os lados, tenta não ver os espectros de tempos idos, apontando para Cisco no olho da memória. Em outros termos, nota-se aqui uma ponte entre ouvidos e olhos, por onde transitam as sombras de outrora – o ontem penetrando por todos os poros do presente!

Ah, quem dera então que fosse possível banir do dicionário, da onomástica, do epistolário, da carta geográfica, do mapa da canção, da praia do poema a palavra “saudade”, para banir com ela a dor da perda, como poetiza Wali Salomão: quem sabe sumindo a palavra desaparecesse também o sentimento a ela associado – em termos rosianos, se não existe a palavra, não existe a coisa! (Nosso Reynaldo-Riobaldo poderia ter dito isso – tem a sua cara!) Os fatos do passado, diz Wali em bela imagem, são como o aluvião que se deposita no fundo da ribeira: qualquer movimento que perturbe sua imobilidade silenciosa traz o cascalho à tona, turvando a água – a transparência, então, vira opacidade.

 

Os cinco sentidos & o resgate da memória perdida

 

Mas que movimento traria à superfície o que estava em repouso no fundo? A memória afetiva é ativada por diferentes instrumentos sensoriais, que variam de pessoa para pessoa, de relação para relação: as pessoas são diferentes, como são diferentes as relações entre as pessoas. A recordação pode ser evocada pelo paladar, pelo olfato, pela visão, pela audição, pelo tato: o passado pode ser comido, cheirado, olhado, ouvido, tocado. Pode ser ativado por distintas memórias de distintos sentidos – invade o presente pela boca, penetra pelo nariz, enche os olhos, entra pelos ouvidos, é apalpado pelas mãos. Claude Lévi-Strauss, por exemplo, na apresentação de seu livro de fotos Saudades de São Paulo, comenta curiosamente que não foram as antigas imagens de sua estada no Brasil na missão francesa de 1935 que lhe evocaram a memória emocional dos tempos idos há mais de meio século. Foi, na verdade, o cheiro da mochila que usava na época que o transportou no tempo. A recordação, para o antropólogo, chegou pelas narinas: é a memória olfativa que turva a água, confundindo o que estava no fundo e o que estava na superfície, o passado e o presente.

Já para Fernando Pessoa, o ontem invade o hoje pelos ouvidos, sensação estranha de uma outra temporalidade que tenta traduzir nos versos: “ah, velha música/ fui-o feliz outrora agora”. O choque aparentemente paradoxal entre os marcadores temporais “agora” e “outrora” é provocado pela audição de uma canção que marcou seu passado, e que traz de novo a sensação confortável de felicidade experimentada. Há um poema de Cisco no olho da memória em que este estranhamento entre o ontem e o hoje aparece magistralmente traduzido: “pai:/ palavra doendo/ no sapato/ novo/ do passado”. Se nos versos de Pessoa a relação antitética se dá entre o par “agora” e “outrora”, na pílula poética de Bessa, verifica-se na relação entre “novo” e “do passado”. A diferença é que o ontem não entra pelos ouvidos: penetra pelo tato. Quase como colocar os pés nas pegadas do pai (na bela formulação de Mia Couto, no romance A varanda do frangipani – a propósito, uma árvore, como as algarobas dos contos de Bessa: “Para os mortos, o tempo está pisando nas pegadas da véspera. Para eles nunca há surpresa”; “um vivo pisa o chão, um morto é pisado pelo chão”).

A recordação desponta de onde menos se espera: não é da ordem da previsibilidade, não é programática.  Poderíamos dizer que “recordar” está mais para o sentir, e “lembrar”, mais para o pensar. Como ver com os olhos do coração e ver com os olhos do cérebro, escutar com os ouvidos da alma ou da razão. O ato de recordar não é conceitual, no sentido de um objeto de que se possa falar com maior distanciamento do sujeito: recordar é operatório, na perspectiva de que age em nós sem que possamos nos dar conta – objeto integrado ao sujeito, como na experiência da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (que integrava sujeito e objeto na categoria “corpo”).

Se em Pessoa a memória é auditiva, e para Lévi-Strauss ela é olfativa, para Proust e sua odisseia em busca do tempo perdido, a memória é gustativa: o passado retorna pela boca (novamente com o perdão do trocadilho, o peixe renasce pela boca!). Ao comer uma madeleine, suas papilas gustativas reativam o sabor do passado, os gostos e desgostos de sua infância e juventude. Já para o semiólogo Roland Barthes, na “autobiografia” nada convencional Roland Barthes por Roland Barthes, o resgate do passado se dá por meio de antigas fotografias em família, por meio das quais recorda poeticamente sua meninice: aqui, pois, a memória é visual.

Em Bessa, a memória o atravessa por todos os sentidos, o passado sai por todos os buracos, o poeta transpira ontens e anteontens por todos os poros – presença da ausência que penetra pelos sete buracos da sua cabeça. Nas suas prosas-algarobas, por exemplo, a memória visual, sempre marcada pela opacidade, aparece em trechos como “nem todo mar é verde e nem todo céu é azul, assim como nem todo branco é branco”, “sonhos ou desilusões na cor branca” – seria o passado furta-cor? (na boa formulação de Sartre, trata-se daquilo “que é opaco aos significados e transparente às coisas”). No conto sugestivamente intitulado “Ainda algumas lembranças I” (ah, o “ainda” denunciando a persistência da memória!), a memória é gustativa e olfativa, passado presente no cheiro e no gosto do cigarro da musa de outrora: “era como se tragasse o tempo: passado, presente e futuro brotando dos lábios de Aniah”. O final da história é sintomaticamente revelador da força sensorial da evocação do que passou: “Agarrei-me em seu cheiro. Era só o que eu tinha e a coisa veio mesmo”.

Mas a memória táctil (combinada à auditiva e à visual) também faz presente o passado, como se pode observar no conto “Os domingos e o carro de Apolo”, por meio da comovente imagem do abraço no carro que pertenceu ao pai falecido, uma Kombi transportando fragmentos de nostálgicas sensações perdidas em algum lugar do tempo: “Abracei o veículo como se abraçasse o meu pai. (…) Ao ouvir o som do motor não pude mais me conter. Chorei. Dentro de um olhar triste e embaçado vi a Kombi, em suas pernas bambas, desaparecer na minha frente. Era como se levasse todos os meus domingos com ela. Fiquei mais um pouco lá sob as fumaças do passado. Não queria me mexer para não correr o risco de estilhaçar esse momento”. (Isso lembra a fala de um personagem de Mia Couto, que poderia ter saído da boca de Bessa, tentando hipnotizar o tempo, procurando ludibriá-lo para ele não passar: “faço na palavra o esconderijo do tempo”).

Em Outros barulhos, já no título notamos (como já comentamos rapidamente) a força da memória auditiva. Logo no início do livro, um poema faz ecoar de novo a voz de Bandeira em seu Profundamente, trazendo de volta as vozes do passado: “só se ouvia a voz do patriarca emoldurada pela noite incrédula (…) eu tentava sufocar a voz de meu avô (…) tapava os ouvidos”. Em outro texto, engrossa “profundamente” o coro de vozes: “hoje escutaria um milhão de noites ao seu lado/ ouviria aqueles incansáveis grilos,/ os tambores dos terreiros indo e vindo no vento/ o ronco do meu pai: som da mistura do cansaço e das ameaças do dia/ seguinte./ a tímida respiração da minha mãe (…)/ ouviria de novo os passos leves daquela paz (…)/ tudo dormia/ (…) gostaria de ouvir tudo isso novamente”.  Mas também no livro há um poema aforismático que remete à visão: “seus olhos/ são meu livro de cabeceira” (o olho que aparecerá no título de Cisco no olho da memória)

Os fatos de sua história vão brotando aqui e ali, reativados pelos órgãos sensoriais, como ilhas de recordação. Poeta do tempo, ciente de que “o tempo não posa para fotos”, Bessa trata, em outro poema, de sua eterna viagem na máquina do tempo: “estou sempre aonde não vou e/ nunca estou onde estou/ o passado é uma grande mala sem alça/ que teimo em carregá-la e/ o futuro é alguém que sempre parte/ quando acabo de chegar”. Interessante como Bessa define o passado por meio de uma metáfora que cria efeito negativo, olhando o tempo que já foi numa perspectiva semelhante à de Ferreira Gullar: o passado é sempre um peso, porque se foi bom, traz o impossível desejo de revivê-lo, e se foi ruim, a vontade impotente de esquecê-lo. Como diz o narrador do conto “Branca, Branquinha”: “desejou que todas as suas lembranças tivessem ficado lá dentro também, todas elas, no silencioso escuro da loja, como todos aqueles vestidos”. Ah, passado, mala sem alça que carregamos na estrada da vida, cujo peso está também no conto em que viaja ao passado na Kombi do pai: “escorrem minhas lembranças (…) e eu já sabia que não ia conseguir suportar o peso daquelas lembranças todas”.

Mas, voltando ao poema, nele se percebe bem, e isso merece destaque, porque dissemos que Bessa é um poeta do tempo: o “onde” e o verbo “estar”, indicadores de uma relação espacial, vêm marcados por traços temporais: viagem no tempo, nas estradas e bifurcações do passado, do presente e do futuro (lembra-se de Aniah tragando o tempo?). A esse respeito vale lembrar também o prefácio de Wilmar Santos para Outros barulhos, que, sintomaticamente intitulado “Outras Rochas”, pega a mesma onda nesse mar textual: “Ninguém consegue apagar a sua origem. A viagem é física ao passado (…) Ler Reynaldo Bessa como passagem de encontro à sua própria vida em busca do mundo e do eu”.

Curioso o mágico mistério que parece tudo ligar numa profunda e tenebrosa identidade: os barulhos de Bandeira, os outros barulhos de Bessa, o baú de Nava guardando os ossos do passado… E agora escuto de novo (não me lembrava!) a orelha do poeta Fabrício Carpinejar, levando-me nesta espiral de vozes a Nava e a Bandeira a partir de Bessa: “Outros barulhos é um baú que transbordou: quando os mortos e vivos se embaralham na linguagem, lembranças são confundidas com premonições; vozes, com cheiros (…). É uma fatura da vida, um armazém de fiados, armário de brinquedos extintos”. Volta o bumerangue arremessado…

Relendo esse seu “baú de ossos barulhentos”, ouvindo o marulho de seu mar de memórias, suas ondas revoltas levam-nos de mar em mar à água-viva de Clarice Lispector: sentimos a angústia deste “eu” navegando no passado e tentando desesperadamente, como a escritora, reter os “átomos do tempo”, o “instante-já” fugidio para sempre, o presente que sempre vira passado. Aventura trágica, porque consciente de que viver de fato é acumular perdas, colecionar cicatrizes: a saudade é um pouco de velhice, diria o jagunço letrado de Rosa (Reynaldo-Riobaldo: ah, coincidências à beça nestas veredas!) entre lembranças e recordações do grande sertão de sua vida (a saudade vem por decurso de tempo, para arder no peito: por isso Wali diz que é “o sol da idade” fazendo brotar o “sal das lágrimas”). Aliás, conforme a formulação de Clarice, difícil não é existir: é ter consciência de existir.

Por isso é que Schoppenhauer defendia que o verdadeiro tormento são os pensamentos: melhor, então, conforme o filósofo, seria não pensar, ou ao menos poder pensar sem palavras! É o que diz Aniah num conto a que já recorremos aqui: “não podia parar, porque se parasse, acabaria pensando, e tudo que não queria era pensar”. Por isso é que Bessa, em Outros barulhos, faz eco ao filósofo de “As dores do mundo”, constatando poeticamente a dolorosa consciência do seu modo de presença no mundo: “se enfim, pudesse me ouvir/ nada também ouviria/ minha mente faz barulho demais” (todo esse barulho não seria o Som da cabeça do elefante, título de um disco seu? Seria outra maneira de dizer a mesma idéia/ O que, aliás, tem tudo a ver com memória, como ensina a expressão popular “memória de elefante”: muita memória faz muito barulho – um concerto na cabeça da gente!).

 

Os barulhos do cisco no olho da memória

 

O tempo faz barulho. As vozes simultâneas de tempos distintos faz barulho. O choque do passado com o presente e o futuro faz barulho. O barulho da passagem do tempo faz barulho o tempo todo. E por falar em memória, a nossa é que agora faz barulho e traz à baila a voz de Freud, numa sacada poética para explicar a estrutura da nossa turva mente em seu O mal-estar da civilização: o pai da psicanálise a compara à estrutura da cidade de Roma, cidade em que convivem muitas Romas ao mesmo tempo – a Roma antiga, a medieval, a moderna e a contemporânea. Bessa, incorporando essas muitas Romas, mostra que o adulto é habitado pela criança, pelo adolescente e pelo jovem que foi, e – por que não? – pelo velho que um dia será: “meu pai nasceu morto e/ esse ano faço mais um aniversário/ nada de novo/ mais um ano menos um dente/ sou o mesmo menino dentro de um corpo mais velho/ meu pai me levou quase tudo:/ minha infância, minha adolescência e/ agora aos poucos, sem esforço algum/ vai levando o meu corpo”. Durma-se com um barulho desses!

Do mesmo modo que o barulho impede a percepção da nitidez do som, confundindo-se com o ruído, tradução acústica da opacidade da memória, Bessa indica neste belo Cisco no olho da memória a figura do cisco no olho como ruído visual que turva o espelho d’água da recordação. Seja nos ouvidos, seja nos olhos, há sempre um cisco perturbando a transparência, neblinando o passado, ofuscando sons-imagens de outrora. A memória afetiva, assim, é sempre refração, entortando a luz e eclipsando os fatos: ou aproxima demais o foco e distorce os objetos; ou o distancia demais, distorcendo-os também.

É disso que fala Marguerite Yourcenar, num ensaio sobre a obra do escritor Yukio Mishima, publicado no livro Mishima – o la visión del vacío, ao lembrar a passagem final da tetralogia El mar de la fertilidade, em que o protagonista Honda vai procurar seu amor de juventude, Kioyaki, num monastério. Pergunta dela a uma abadessa, que se parece com o antigo amor, e ouve dela a seguinte resposta: “Y puede assegurar que nosotros ya nos habíamos visto antes? (…) La memoria es um espejo de fantasmas. Muestra a veces unos objetos demasiado lejanos para ser vistos, y otras veces los hace aparecer demasiado próximos”.

Como dissemos, tentando distinguir os verbos “lembrar” e “recordar”, este é o mais apropriado para tratar da memória afetiva, porque traz o passado envolto em névoas: por isso formulamos que a recordação é lunar. Que surpresa mais uma vez nos vem com a leitura de Bessa e a reativação de outras leituras antigas, adormecidas, quase esquecidas que a poesia dele nos faz rememorar. A lembrança do texto de Yourcenar, por exemplo, aponta para mais uma feliz coincidência no cruzamento dessas vozes literárias todas que despertamos do silêncio (as coincidências, quando se repetem, deixam de ser coincidências, como diria Nelson Rodrigues!). Explicando o título da obra de Mishima, a escritora diz o seguinte: “El título está tomado de la antigua selenografía de los astrólogos-astrónomos de la época de Kepler y Tycho Brahe. El mar de la fertilidade fue el nombre dado a la vasta llanura visible em el centro del globo lunar, y de la que hoy sabemos que es, como todo nuestro satélite, um desierto sin vida, sin água y sin aire” (será que as algarobas, que “vicejam na desilusão da seca, na desistência da sombra e até mesmo em meio ao concreto das grandes cidades”, vingariam aí?). Isso parece de fato endossar nossa ideia de que a recordação é uma memória lunar!

Neste seu Cisco no olho da memória, Bessa prossegue na sua viagem pessoal e literária, aprofundando seu mergulho existencial e estético. Os contornos de seu ethos ficam mais nítidos, seu corpo-textual ganha mais corpo: parece que todos os estilhaços deste eu fragmentado, disseminados em tantos contos, poemas e canções, vão se juntando e nos ajudando a montar o quebra-cabeça desta cabeça quebrada (perdoe-nos mais um trocadilho ainda, mas é irresistível não pensar em quebra-caBessa para juntar as peças de suas peças literárias!). Se a memória, por exemplo, sempre esteve presente em suas obras, agora está explícita no título, como se a nos mostrar que o autor conscientemente quer se mostrar como poeta da memória, inscrevendo-se no rol de nossos grandes memorialistas, ao lado de nomes nobres como Pedro Nava.

A epígrafe de Emily Dickinson também é emblemática: “até o mais efêmero dos instantes possui um ilustre passado”. E emblemática por três razões fundamentais: primeiro, porque abre o livro com a referência explícita ao “passado”, uma das palavras mais recorrentes em Bessa; segundo, porque estabelece relação coesiva com o título, amarrada à palavra “memória”, como integrantes do mesmo campo semântico; terceiro, porque remete à noção de “filiação de dizeres”, de genealogia estética, explicitando a consciência de que Bessa cria em sua enunciação seus predecessores, homenageando por meio dela suas influências de “ilustre passado”.

Na sequência, vem um poema do próprio Bessa, mas ainda como epígrafe, e não como parte dos outros poemas que integram o livro propriamente dito. E isso também é bastante revelador por três motivos essenciais: primeiro, porque está de acordo com a noção de genealogia de que falamos, como se o autor estivesse consciente de que o bastão agora está nas suas mãos, entregue por seus predecessores (ele está na epígrafe, depois de Dylan Thomas e Emily Dickinson, como se a dizer que, depois de falarem as vozes do passado, agora é a sua vez de falar); segundo, porque o texto fala em “criar os filhos” de seu irmão, explicitando sua temática familiar recorrente (e de novo sugerindo a passagem do bastão, agora em suas mãos: se antes falamos disso para tratar das relações literárias, agora falamos em “filiação” para pôr em foco as relações familiares); terceiro, porque o irmão, como o pai, está morto, e o poema é dedicado a Ronade “in memoriam”, colocando em cena novamente a “memória”, como mais um fio desta costura.

Ah, há ainda um quarto motivo, cujo esquecimento, sintomático, denuncia-nos, levando-nos ao divã (Freud explica!). O belo e tocante poema – e belo e tocante não só por aquilo que diz, mas pelo modo como diz – revela muito dos buracos da lua de Bessa, das obscuras questões que o angustiam (difícil separar autor e homem, vida e obra, em poéticas confessionais como a sua, mas é importante esclarecer que depreendemos este “Bessa” dos seus textos, como persona de papel, ainda que sujo de sangue!). Na verdade, parece-nos que o texto joga luz no seu “dark side of the moon”: se está certo Lacan quando entende que o inconsciente é estruturado como linguagem!

Aliás, partindo da linguagem, o poema é escrito com obediência a uma estrutura rigorosa, é meticuloso em seu paralelismo sintático e semântico: cada verso é construído com um verbo transitivo direto seguido de um complemento. Por exemplo, estes três versos iniciais: “regarei seu jardim/ sonharei seus sonhos/ semearei suas sementes”. O adjunto adnominal que acompanha os objetos diretos é sempre um pronome possessivo. E é exatamente este termo caracterizador que faz toda a diferença, sendo, portanto, uma chave fundamental de leitura pelo paradoxo que produz: apesar de dizer “eu”, aparentemente instituindo-se na enunciação como sujeito do fazer, não se constitui de fato como sujeito que se apropria de si, uma vez que nada do que faz é seu: o “seu”, no poema, é o “dele”, e o “dele” é o do irmão. Os núcleos dos objetos, sejam substantivos concretos (como “jardim”), sejam abstratos (como “sonhos”), pertencem sempre ao “outro”. Há um cordão umbilical a ligar Bessa à família (metonimicamente representada pelo irmão), ata-os uma “tira de carne viva” (no expressionismo existencialista da imagem do também poeta e músico Boris Vian). Como o cordão umbilical que liga os verbos em primeira pessoa aos objetos que pertencem ao outro. Ilustração da melhor literatura, há aqui o que a semiótica chama de “isomorfismo”, para conceituar a relação de compatibilidade entre os planos do conteúdo (aquilo que é dito) e o plano da expressão (o modo de representar o que é dito, de dar “forma” ao dizer). Vale notar também que os sujeitos estão ocultos: o “eu” não aparece! Nos versos finais, a questão se adensa: “serei alguém/ serei você”: o sujeito segue oculto e o predicativo do sujeito é o pronome “você”. Isso quer dizer que a caracterização do sujeito é dada pelo “outro” novamente: o “eu” é o “outro” – logo não é!

Seu primeiro poema traz tragicamente para o palco seu velho duelo hamletiano com o fantasma do pai (Lacan também procura chaves para as portas do psiquismo em Shakespeare, e num feliz trocadilho, ensina que o processo de romper a casca para nascer é doloroso, afinal, “não se faz um Hamlet sem quebrar os ovos!), do irmão: o “eu” como um casarão assombrado pelas correntes arrastadas pelos espectros do passado, num sinistro conto à la Poe! Mas Bessa sabe que é preciso nomear os fantasmas para enfrentá-los: por isso neste livro começa dando nome aos bois, chamando “Ronade” como quem profere uma palavra enfeitiçada, para operar a mágica da libertação. E ironicamente, liberta-se, mesmo que ainda não saiba: ele, como sujeito de carne e osso e letras, é seu próprio pai, parindo-se sujeito da enunciação, fazendo nascer um eu literário, alimentando o corpo de seu ethos. Como Freud exortava, “faça do nome do seu pai o seu próprio nome”. E Bessa fez: seu nome virou o sobrenome. Devorou o pai: Reynaldo virou rei…

 

Cano curto & cano longo: as armas do faroeste da vida

 

Prosseguindo na análise do livro, depois do poema-dedicatória ao irmão, que serve de abre-alas a este Cisco, tem início o primeiro dos dois blocos em que ele se divide: Cano curto. O segundo, coerentemente, é intitulado Cano longo. Pela referência às armas, é inevitável a associação com a idéia de combate, luta, guerra: seja no domínio da vida, seja no da poesia. No faroeste da existência, há que se escolher bem a arma adequada a cada batalha, ter boa mira, destreza na pontaria: atirar para matar a dor, a angústia, o tempo… Enfim, atirar para matar a morte. Um dos poemas, a propósito, confessa exemplarmente esse desejo: “um tiro/ na têmpora da/ memória”. Curiosamente, apesar de dizer um, no plano do conteúdo, Bessa de novo, em inversão irônica (talvez por saber que jamais vai acertar o alvo), dá dois tiros, em dois “t” (consoante oclusiva, surda, que sugere o estampido da bala, o barulho do tiro). O alvo, novamente, é o tempo, já sugerido na palavra “têmpora”, e a “memória”, que é a presença do tempo na têmpora (o passado vive na cabeça). Um, dois tiros: e a memória segue viva, como bandido a infernizar eternamente o mocinho no filme da sua vida…

Mas a metáfora do combate, com armas de cano curto e longo, não se presta só ao domínio da vida. A escolha das armas serve de percurso metafórico também para os embates estéticos. E, nesse caso, a oposição “curto” X “longo” remete à categoria da extensão do texto, isto é, ao seu tamanho. E o problema não é o tamanho: “curto” e “longo”, em si, não dizem nada, são meras categorias taxionômicas, ou seja, classificatórias, sem juízo de valor. O problema não é ser curto, mas o curto significar insuficiência; nem ser longo, se o longo não for outro nome para redundância.  O valor está no efeito que se consegue por meio da extensão: em outros termos, há textos cujo recado pode ser dado sem mais delongas; há outros, em contrapartida, que exigem mais palavras para produzir efeito. É a diferença, por exemplo, entre um haicai e um poema épico: neste, a extensão está a serviço de uma narrativa demorada, cheia de feitos e fatos; naquele, o tamanho é a medida da tradução rápida, instantânea, de uma impressão contemplativa (uma iluminação diante da observação das coisas simples, elementares, da natureza). Em português claro: um precisa de mais palavras, de muitos versos para dizer o que pretende; o outro, de apenas três versos ligeiros.

Aliás, tudo isso lembra aquela conhecida metáfora de luta usada por Júlio Cortázar para distinguir dois gêneros literários: o conto e o romance. Nesse caso, são outros gêneros, o combate é o boxe e o tiro é o soco, mas está em pauta na ilustração do escritor argentino o mesmo problema da extensão: a vitória no conto é por nocaute; no romance, ganha-se a luta por pontos. No caso dos gêneros poéticos, no haicai a vitória é por nocaute; na epopéia, por pontos. Do mesmo modo, daria para opor a poesia concreta e a poesia beat, só para ficarmos com outros dois exemplos: enquanto esta é caudalosa, aquela é econômica; para uma, “menos é mais”; para outra “menos é menos”.

Sobre essa questão da duração, uma referência é particularmente lapidar para explicá-la. No ensaio A filosofia da composição, Edgar Allan Poe reflete sobre isso usando sua obra-prima O Corvo como exemplo. No texto, mostra os “andaimes da construção” (“para deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores”), revelando as escolhas que fez na construção do poema (e desarmando quem crê que poesia seja só fruto de inspiração!). Para esclarecer o porquê dos cento e oito versos que estruturam o texto, diz: “a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito”.

Estas palavras parecem uma espécie de colírio: ajudam a tirar os ciscos dos olhos para podermos enxergar melhor a beleza sutil deste livro de Bessa. O capítulo Cano curto abriga textos breves, poemas sintéticos. Já em Cano longo, encontram-se poesias mais extensas, estruturadas em mais versos. Tudo bem calculado, na duração exata para produzir a emoção, a elevação, o “efeito poético” necessário. Como bom combatente das trincheiras estéticas, Bessa sabe escolher a arma conforme a batalha: na organização do livro, é como se dissesse implicitamente (sempre com sua elegante ironia) que uma zarabatana é pouco para derrotar um exército, mas uma bazuca é demais para caçar um pato.

 

Tiros de cano curto com balas de haicai

 

Cano curto é uma sequência de nocautes, como exemplifica o seguinte haicai: “tarde quente/ vento nenhum/ árvores sem assunto”. Nesta pílula poética, lição de síntese, exercício de contenção, o poeta-samurai Bashô baixou em Bessa: três linhas apenas, três versos ariscos, três tiros precisos. Cada um acertando um alvo: o primeiro verso, fiel à estrutura desta sintética forma poemática, trata do elemento permanente, isto é, a “tarde”. O segundo retrata o elemento transitório, ou seja, o “vento”. O terceiro, espécie de pororoca, funde as duas águas, na síntese mágica da percepção: “árvores sem assunto”. É o que o mestre zen chama de “satori”, nomeando o transe estético, a “iluminação” (que Joyce chamaria de “epifania”). Sem o vento a balançar as folhas, sem o encontro deles na tarde, a árvore fica só: não há conversa sem o outro – a tarde arde vazia! Comunicação é ação comum: exercício de alteridade. Sem o outro não há vento, não há diálogo: monólogo silencioso de árvores solitárias.

Aliás, curioso falar em “outro”, em solidão, em conversa, falando de haicai. Porque nesse gênero não há normalmente “eu” nem “outro”, não há em geral marcas de subjetividade: fala a natureza, fala o instante, fala o que não tem fala. Desaparece o sujeito para aparecer o objeto. De certa forma, é o que sugere José Miguel Wisnik no prefácio do livro de haicais de Alice Ruiz, sugestivamente intitulado desorientais: o “eu” desorienta, desestabiliza a rigidez da ortodoxia oriental. Olga Savary, na apresentação de Bashô para O livro dos hai-kais, autoriza essas inferências, por meio da seguinte reflexão: “Bashô sabia que nos seres inanimados, na natureza, iria encontrar fórmulas de intensa piedade poética. E preferiu associar-se a tudo que era sensível ou inanimado que passava ao seu lado para integrá-lo imediatamente à sua poesia. Ao lê-lo, através dos caracteres japoneses, afirma-se, voltam a viver os lugares e as coisas (…). Bashô começou a variar o estilo do hai-kai, elevando sensivelmente sua qualidade até transformá-la numa criação que agrupava os conceitos de sobriedade, humanidade e sutileza. Aos poucos sua escola conseguiu reputação e fama, e o ‘estilo novo’ adquiriu o princípio emocional produzido por ‘simples descrição’, à maneira de uma leitura visual”.

O ocidente, nessa perspectiva, se denuncia ao olhar o sol nascente, impregnando-o de uma subjetividade alheia ao fazer poético tradicional dos japoneses: mostra assim que não tem os olhos puxados. Assim, mesmo sem dizer “eu”, Bessa não deixa de dizê-lo: por exemplo, ao marcar os objetos com sua solidão, ao impregná-los com o desejo da conjunção, do encontro, da fusão. É que talvez seja menos doloroso dizer “árvore” e “vento”, para não ter que encarar explicitamente a distância entre o “eu” e o “outro”: como se não nomeando o hiato entre o dedo de Adão e o de Deus pudesse deixar de vê-lo, enganando a solidão…

Relendo Bashô para ler Bessa, e por falar em solidão e saudade, deparamo-nos com uma sequência de relações curiosas ligando um poema do samurai a dois textos de Bessa, publicados em livros diferentes. Primeiro, o haicai do mestre zen: “estendidos ao sol/ os quimonos: a manga/do menino morto”. Agora, o haicai de Outros barulhos: “tarde quente/ sonhos esfarrapados no varal/ úmidas lembranças”. Por fim, o haicai de Cisco no olho da memória: “o sol cochilando/ velhas roupas no varal/ sonhos entardecendo”. A figura do sol está presente nos três textos: no primeiro e no terceiro, explicitamente; no segundo, implícito na “tarde quente”. Outra recorrência que irmana os poemas é a figura das roupas: no texto do japonês, são os quimonos; nos de Bessa, a referência é genérica, apenas “roupas” (implícita no primeiro haicai, na imagem metonímica dos “sonhos esfarrapados no varal”; explícita no segundo, em “velhas roupas no varal”). Mas há um varal também ligando os textos: as roupas, dado comum, poderiam aparecer em percursos distintos, em situações diferentes, mas nos três casos, estão estendidas…

Apesar das semelhanças, o que os olhos orientais captam não é o mesmo que os olhos ocidentais capturam. No prefácio para O livro dos hai-kais, Octávio paz joga mais luz nessa questão: “As possibilidades de se chegar a compreender totalmente a essência de um hai-kai são tão utópicas que a tarefa de tentar sua explicação deve equilibrar-se com as desculpas que essa pretensão supõe, uma vez que o abismo que existe entre um ocidental e um oriental em sua maneira de apreender e explicar o mundo e as coisas é suficiente para admitir um ponto de partida completamente diferente. Um hai-kai é poesia pura, alheia às engrenagens meramente intelectuais que estruturam um poema”. Portanto, nessas relações entre os dois B – Bashô e Bessa – mais uma vez, o olhar ocidental se denuncia: o texto de Bashô é mais seco, direto, “objetivo”, sem marcas passionais; os de Bessa revelam o sujeito observando os objetos, impregnando-os de sentimento, gravando-os com marcas de emoção, como indiciam as referências às “úmidas lembranças” (as roupas molhadas, os olhos molhados), a presença nostálgica dos “sonhos”.

Outra diferença interessante no cotejo dos textos é que os haicais de Bessa parecem duas versões do mesmo poema, o que está em desacordo com o princípio zen de que “a primeira idéia é a melhor idéia”: o instante, uma vez capturado no poema, não pode se repetir; a primeira percepção é a que fica, não podendo ser reescrita. É a poesia pura de que fala Paz: uma segunda versão do mesmo poema, assim, seria como submetê-lo às engrenagens da razão, intelectualizando a iluminação. Por isso, conta-se que Bashô, depois de escrever seu último poema, no leito de morte, pensou em corrigi-lo, arrependendo-se depois: “Não o modificarei. Isto seria ainda vaidade e apego ao mundo, apesar do muito que amei a vida e a arte”. Mas é importante ressalvar que a reescrita não diminui o mérito dos belos satoris de Bessa: apenas é uma nota distintiva entre os dois olhos, entre as duas formas de perceber o mundo (quanto à questão da vaidade implicada no gesto de reescrita, Mário de Andrade oferece um antídoto ao zen: “se se mostra [um poema] é por vaidade; se não se mostra, é por vaidade também”).

Enfim, esses insights poéticos de Cano curto, essas luzes ligeiras que vagam iluminando as páginas do primeiro bloco do livro, são flashes de êxtase luzindo ao longo da seção. Qualquer semelhança com Bashô – apesar das diferenças que assinalamos – não é mera coincidência: em certa medida, há que se ter mesmo olhos puxados para ver, por exemplo, numa caneta bic a cor-dor líquida “azul-infância”. Olhos anômalos de poeta para ver na tevê preto e branco a “infância colorida”. Olhos de Ícaro para mastigar raios sol e ficar com raios entre os dentes. Olhos de Argos nas pontas dos dedos para encontrar resquícios do astro-rei no fundo dos bolsos da roupa no varal recolhida pela mãe num fim de tarde. Olhos de Bessa escolhendo palavras num brechó, olhos de poeta mascando clichês, olhos de Midas transformando-os em ouro-arte! Olhos lupi/cínicos que aliciam até o olho mágico da porta, testemunha da porta na cara numa sem cerimônia de adeus! E quantos olhos há que se ter para olhar nesses olhos! Muito mais dos que cabem na cauda do pavão! E eu que só tenho dois… Onde estão os óculos de Miguilim? É fogo olhar nos olhos de Prometeu!

 

Tiros de cano longo com versos de maior calibre

 

Virando os olhos e as páginas, me virando para captar tantas luzes, entre reflexos e refrações, tento agora tirar ciscos maiores da vista e ajustar a mira deste Cano longo, para ver o trajeto destes projéteis poéticos de maior calibre. O caminho das balas aos alvos agora é mais longo: outros espaços e tempos. Outro andamento: palavra, aliás, que parece operar a fusão das duas categorias – “andar” remete a espaço; “andamento”, a tempo, duração (que vem bem a calhar para falar de Bessa porque também é termo empregado na linguagem musical). Em síntese, os textos desta segunda parte do livro são maiores, com andamento mais lento, duração mais longa: e não só porque os poemas são estruturados com mais versos, mas também porque os versos são mais extensos, as linhas caminham mais na página, ocupam maior espaço no papel e nos olhos.

Se os textos da primeira parte não contam propriamente uma história, são breves iluminações poéticas como raios rasgando as páginas, com um caráter no mais das vezes dominantemente descritivo, os poemas deste bloco são mais narrativos (ressalvando que a narratividade, segundo a semiótica, é componente estrutural de todo texto). Nestes textos, percebe-se mais um personagem se deslocando num espaço e num tempo mais delimitados, nota-se melhor uma progressão, um percurso, enfim, uma história. Se na primeira parte se destaca mais a descrição como tipo textual (vale lembrar, guardadas as devidas proporções, o que disse Olga Savary sobre o haicai, que, por seu caráter descritivo, é como se propusesse uma leitura visual a partir do código verbal), aqui aparece mais a narração. Em outros termos, se Cano curto é mais fotografia, Cano longo é mais cinema. E mesmo quando ambos são cinema (em Cano curto há micronarrativas, espécies de pequenos mini continhos minimais, com ares de Dalton Trevisan), ainda assim se distinguem: um é curta; outro, longa-metragem…

Sobre esse caráter predominantemente narrativo (porque há descrições também nos textos, caracterizando pessoas, objetos, lugares), esse pendor para a história, essa atmosfera cinematográfica que justifica o adjetivo “longo” caracterizando o substantivo “cano”, vale conferir o segundo poema desta segunda parte: “um soco saiu de uma/ sexta-feira veloz e/ atingiu-me no flanco./ quando despertei,/ a solidão fazia a sua contagem./ gritava o número 8./ vi o sorriso da minha filha, num canto,/ brincando com as bonecas de porcelana de minha mãe./ procurei sufocar o odor de tantas derrotas mofadas/ com o brilho de longínquas tardes recendendo a chicletes/ Adams./ a solidão gritava o número 9./ recolhi todas as forças e me reergui./ suada, a vida levantou-se do outro canto e veio com tudo./ engalfinhamo-nos novamente…”.

Que maravilhosa e misteriosa coincidência: o poema parece ter sido escrito para ilustrar a metáfora de luta de Cortázar; ou este dá a impressão de tê-la concebido sob medida para os versos de Bessa – circularidades… Como numa luta de boxe, o primeiro verso tem início já com “um soco” atingindo o eu-lírico “no flanco”, que cai desacordado. Outras referências ratificam a comparação: a “contagem”, o “número 8” e o “número 9” caracterizam um léxico típico do ringue. Se tudo terminasse mal começando, a vitória no combate seria por nocaute: os números indicam uma luta ferrenha até o último round. Quando o público acha que o poeta está derrotado, ele se ergue e se atraca de novo com seu adversário – a vida! (a propósito, vem bem a calhar o que ensina Hemingway em seu O velho e o mar, através do velho pescador Santiago: “o homem pode ser destruído, mas não derrotado”. Por falar no personagem, ele é citado na canção “Esfinge”, do disco O som da cabeça do elefante; “me sinto tão sozinho/ muito mais sozinho/ que o velho Santiago”). As reticências assinalam que o duelo não chegou ao fim: em todo o caso, a vitória será por pontos…

Na linha de abordagem adotada neste ensaio, os poemas mais extensos são, pois, como uma luta que só chega ao fim no último round. Este poema é exemplar porque adota inclusive, de modo explícito, a metáfora do combate entre as cordas. Percebe-se com evidência a noção de progressão narrativa, ou seja, de desenvolvimento dos fatos no espaço e no tempo. A referência numérica, por meio da contagem, é como uma ampulheta marcando a duração da história, o andamento mais lento do relato. Os verbos de ação delimitam as cenas desse filme: “saiu”, “atingiu-me”, “despertei”, “fazia”, “gritava”, “vi”, “brincando”, “procurei sufocar”, “recolhi”, “me reergui”, “levantou-se”, “veio” e “engalfinhamo-nos”. Essas formas verbais aparecem na mesma ordem em que constam no poema, deixando bem claro um percurso narrativo. Se fosse um único e certeiro soco, seria um haicai – um tiro de cano curto… Aí seria outra história – ou não seria uma história; ou seria uma micro história!

O seguinte trecho de outro poema deste bloco também ilustra de modo exemplar essas impressões: “seu perfume me leva para campos de trigos,/ manhãs de domingos, sóis, azuis./ vejo ninfetas dormindo sob lençóis muito brancos/ em castelos longínquos”. O estímulo sensorial olfativo leva o poeta para tempos e espaços míticos, para uma pasárgada de sonhos. Nessa atmosfera onírica, os sentidos se articulam sinestesicamente, como se o perfume exalasse uma fragrância azul, eliminando a distância entre o olfato e os olhos: o poeta sente o perfume para ver a ninfeta entre azuis e brancos. Multiplicam-se os espaços: campos de trigo, castelos longínquos, camas e lençóis… Multiplicam-se os tempos: manhãs de domingos, dias, semanas, eternidades…

E a duração é maior não só porque há mais o que contar – mais detalhes, mais história. De novo, as sutilezas de Bessa: o andamento mais demorado, aqui, revela no modo de dizer o desejo de que o idílio dure mais, que o paraíso se sustente por mais tempo. A extensão, no caso, é como um pedido de tempo ao tempo. Como Noel Rosa negociando com o tempo para que o sol não venha e espante as morenas, que ao raiar do dia “vão logo embora”. Como Chico Buarque pedindo cheio de “olê, olá” para o dia não chegar antes de terminar o samba pra sua musa. Mas no caso de Bessa, essa negociação é curiosa, uma vez que no poema a mulher era uma passante baudelariana, uma desconhecida que apareceu diante dos seus olhos e hipnotizou-o: uma musa platônica que o põe a “imaginar, imaginar, imaginar”… Uma deusa idealizada, inatingível, que passa e vai embora com outro (“ela joga o cigarro como se atirasse o meu olhar na sarjeta/ levanta-se. seu namorado a envolve como um laço num/ presente. ela vai e desliga a noite.”).  Uma mulher que só pode ser tocada com os olhos, porta de entrada da imaginação ­– por falar em porta, como diz Jim Morrison (da banda The Doors): “podes gozar à distância; só aos olhos é dado acariciar a mãe”.

Para entender a questão do andamento em sua sugestiva polissemia, remetendo a “caminhar” e “durar certo tempo”, talvez seja melhor pensar em Garota de Ipanema: Vinícius e Tom, com olhos desejantes, vêm uma bela jovem desfilar pela calçada do bairro carioca. O andamento musical mais rápido no início da canção sugere o desejo de conjunção: dedos nas pontas dos olhos quase tocam a menina… Quando ela passa, contudo, o andamento fica mais lento, assinalando o lamento pela perda do objeto desejado e a vontade de fazer o instante durar mais, como se retardando a passagem desse andar cheio de graça, como se alongando os braços dos olhos para poder alcançá-la… Uma garota como a musa de Bessa, que “vai e desliga a noite”…

Logo após este poema, começa o próximo sintomaticamente com o verso “eu e você”: “eu” é ele; “você” é outra musa – mas o desejo de atar-se ao outro é o mesmo. No mágico frenesi das alquímicas sensações, novamente se misturam os sentidos, como âmbares, azuis e oboés se correspondendo numa floresta de símbolos à Baudelaire: “cheiro de café, perfumes, olhares”. Mais uma vez elimina-se a distância entre os instrumentos de percepção: ligação direta entre olfato e visão. De novo, o olhar voyeur gozando à distância: “seu corpo dançava dentro de uma calça jeans/ eu o media de longe”. Mais uma vez, o outro vai andando e se dissipa como fumaça, deixando o vazio da falta. Mais uma promessa irrealizada, mais uma possibilidade não concretizada: o lamento do que poderia ter sido e que não foi dando Bandeira! Como atestam os versos finais: “eu nem sabia que um dia/ eu seria apenas uma árvore/ num desenho tosco do filho que não teríamos”.

 

Os barulhos do olho entrando pelos canos do tempo mítico

 

Nesta floresta de correspondências, a árvore deste poema de Cano longo nos leva num tiro às árvores do haicai de Cano curto. Se antes era atrás dessas que se escondia o “eu”, camuflando sua solidão entre as folhas sem vento, agora este “eu” se identifica explicitamente com a árvore, tão só sem o vento do outro: as folhas sem vento são o “eu” sem o “você” – do mesmo modo, sem assunto… Isso para dizer que, atando as pontas destas duas partes do livro pelos galhos dessas árvores, notamos que o assunto é o mesmo, mas não o modo de dizê-los: a abordagem poética é outra; são outras estruturas. E uma das diferenças está justamente no problema do andamento, da duração – como já foi dito, a nota distintiva entre os títulos e poemas dos dois blocos em que se divide Cisco.

Nessa direção, as formas verbais usadas em “eu e você” são sintomaticamente reveladoras: “seu corpo dançava (…)”, “eu o media (…)”. Os verbos “dançar” e “medir” estão flexionados no pretérito imperfeito. E o recurso a esse tempo faz todo o sentido: além de indicar ações não concluídas, traduzindo as imperfeições e incompletudes do amor, também significa duração maior da ação no passado, em contraposição com o pretérito perfeito, em que a ação é concluída e tem duração pontual. Barthes traduz magistralmente essa questão em seus Fragmentos de um discurso amoroso, formulando que o imperfeito é o tempo mítico por excelência: as ações parecem nunca ter fim, repetindo-se, durando ad infinitum.

Vejamos como o semiólogo desenvolve esse entendimento: “O imperfeito é o tempo do fascínio: tudo parece estar vivo e entretanto nada se move: presença imperfeita, morte imperfeita; nem esquecimento, nem ressurreição; simplesmente o engano cansativo da memória. Desde o início, ávidas para representar um papel, várias cenas se põem em posição de lembrança: muitas vezes, sinto-o, prevejo-o, no momento mesmo em que se formam. – Esse teatro do tempo é exatamente o contrário da busca do tempo perdido; pois eu me lembro pateticamente, e não filosoficamente, discursivamente: lembro-me para ser infeliz/feliz – não para entender. Não escrevo, não me enclausuro para escrever o enorme romance do tempo reencontrado”

Disso tudo se depreende que as narrativas míticas se processam dentro de um círculo mágico: o passado amoroso épico, da mesma forma, ganha essa dimensão mítica, estabiliza-se, congela-se, como se não caminhasse para um fim (o paradoxo de estar vivo e não se mover: morte imperfeita!) – como quer Bessa, aliás, usando a forma verbal em “eu estava orgulhoso como Hemingway/ naquela foto ao lado de um peixe enorme” (olha Hemingway aqui de novo!). Nesse trecho não é um verbo de ação, como “dançar” e “medir”, mas um verbo de estado, “estar”, que está no imperfeito: é como se Bessa quisesse conservar este estado de êxtase, ficar para sempre neste retrato com sua musa-peixe ao lado (a linguagem, como quer Lacan, cheia de mistérios e revelações: “amor” vem de “amus”, que significa gancho – pescaria!).

O emprego do pretérito perfeito, por exemplo, colocaria um ponto final na história. Os instantes estariam dispersos, soltos, não integrados – eventos pontuais isolados. Sobre isso, é esclarecedor pensar no uso do passado no romance O estrangeiro, de Albert Camus. No ensaio Albert Camus: a libertinagem do sol, Horacio González aborda a questão da descontinuidade temporal segundo os objetivos da narrativa do escritor “existencialista”: “A realidade está feita de instantes incomunicáveis. O tempo, assim, é descontínuo (…). Há um tempo verbal adequado para transpor essa ruptura do tempo em elementos autônomos. É o passado composto, que serve como uma luva a essa descontinuidade temporal. Ela cria os compartimentos isolados de vida num mundo inerte”. E Bessa escreve porque não suporta conviver com a incomunicabilidade dos instantes, porque deseja unir os elementos autônomos, porque não quer o tempo descontínuo – quer que os bons momentos durem, que a história, para que não tenha fim…

Num poema tocante de Cano curto, Bessa expressa esse desejo de que os momentos felizes não morram, que as pessoas queridas não desapareçam, que tudo continue girando eternamente como o carrossel da infância: “quando um pai morre e/ deixa seus filhos,/ um carrossel em algum lugar do infinito/ continua girando (…)”. Interessante observar o que está marcado no discurso: a palavra “infinito” expressa a noção de uma continuidade sem parada, de um movimento sem interrupção – o que se relaciona perfeitamente com a passagem “continua girando”. A imagem do carrossel é uma figurativização do círculo, ou seja, uma maneira de concretizar a categoria “circular”, também traduzida pelo verbo “girar”.

Retomando a partir disso a questão da escolha do tempo verbal, se considerarmos que a reta é a forma geométrica que assinala início e fim, um traço semântico do pretérito imperfeito, pois, é a circularidade. Curiosamente, no ensaio-prefácio para a História do olho, de Georges Bataille, Barthes aponta o traço sêmico da circularidade para explicar a figura do “olho”: “não há outro recurso senão contemplar na História do olho uma metáfora perfeitamente esférica” (Um parêntese exclamativo: o que agora me espanta é que também estou escrevendo um prefácio, falando de olho, pretérito imperfeito, dando voltas, querendo que minha viagem nestas páginas não acabe, que o ensaísta continue viajando à bessa – ah, circularidades!).

Tudo isso que estamos falando sobre olho e circularidade é no plano do conteúdo: a palavra “olho” tem, portanto, como um dos traços semânticos característicos a categoria da “circularidade”. Isso vale para o lexema “olho”, independentemente do significante que o expresse: eye, em inglês; oeil, em francês; ojo, em espanhol… Mas em português e em espanhol, a circularidade salta aos olhos (com o perdão de mais um trocadilho!) por evocar, também no plano da expressão, o traço da circularidade visto no plano do conteúdo. O isomorfismo, no caso, advém de uma feliz coincidência, que não seria possível em outras línguas: tanto “ojo” quanto “olho” são palavras que começam e terminam com a vogal “O”, cuja imagem acústica (nos termos de Saussure) remete à circularidade: tanto a palavra escrita, quanto falada – a boca fica arredondada para pronunciá-la.

Nos dois casos, encarando as duas palavras, parece que vemos dois olhos nos olhando em cada extremidade. Em espanhol, parece-nos ainda mais interessante a questão, uma vez que “ojo” é um palíndromo: a mesma palavra, lida da esquerda para a direita e vice-versa. Nessa perspectiva, estaria de acordo com o poema concreto-visual REVER, de Augusto de Campos: no original, o segundo “E” e o segundo “R” aparecem invertidos, como se o “V” (em qualquer ordem, é escrito igual) fosse uma espécie de espelho. E rever tem tudo a ver com o “olho da memória”: o que foi visto um dia é revisto no resgate do olhar da recordação!

Do círculo, então, brotam as lágrimas: como diria Wali – saudade/ o sol da idade/ o sal das lágrimas. Nesse trecho do poema que usamos como epígrafe, é interessante notar como o “olho da memória” marca presença ainda que não apareça explicitamente no corpo do texto: o sol é uma imagem que expande a metáfora da circularidade do olho; o sal é o saldo da saudade – as recordações surgem com a força do tempo (o “sol da idade”) e provocam o choro diante da consciência da efemeridade dos fatos (o “sal das lágrimas”). De Wali Salomão, então, voltamos ao semiólogo, para ampliar um pouco mais nosso olhar sobre o olho…

 

O olho & o sol; o mar & a lágrima – da circularidade à umidade

 

Barthes, como ele mesmo dizia, sofria “da doença de ver a linguagem”: o olho que vê demais! E na sua vidência de ensaísta-poeta, teve outras sacadas brilhantes que se ajustam como uma luva (de boxe?) a este olho da memória de Bessa. A figura do “olho” não tem apenas o traço da circularidade (“metáfora esférica”), mas também o traço da “umidade”. Em suas palavras: “Essa é a metáfora primeira do poema. Mas não é a única, dela deriva toda uma cadeia secundária, constituída por todos os avatares do líquido, cuja imagem é igualmente ligada ao olho (…), e não é apenas o licor que varia (lágrimas, leite no prato, olho do gato, gema crua do ovo, esperma ou urina), mas, por assim dizer, o modo de aparição do úmido; aqui a metáfora é bem mais rica que com o globular; do molhado ao escoamento, todas as variedades do inundar vêm completar a metáfora original do globo; objetos aparentemente longínquos vêem-se aprisionados na cadeia metafórica”. Como tudo se liga magicamente: para falar do olho e dos objetos ligados a ele, Barthes usa o verbo “ver”: é como se tudo se olhasse no mundo, não só sujeitos, mas também objetos, num contínuo e ininterrupto olho no olho…

Apesar de o trecho ter sido escrito para tratar do livro de Bataille, referindo-se a uma cadeia de imagens específica que aparecem ao longo de sua obra, a lente serve perfeitamente como estratégia de aproximação e leitura da obra de Bessa. Seu Cisco no olho também constrói uma cadeia de figuras que expandem o globo ocular a partir dos mesmos traços de traços de circularidade e umidade. Em diversos poemas essas categorias se manifestam, como se pode ver nesses trechos, por exemplo: “nossos olhos-guarda-chuva” (a chuva que cai dos olhos é lágrima: do círculo brota a água…); “meus olhos regam/ meu rosto cheio de cidades./ nasce um mar/ em minha boca” (o mar vertendo dos olhos, água salgada como lágrima).

Nesses exemplos, estrategicamente colhidos, verifica-se o olho e a lágrima: as figuras são explícitas, uma vez que aparece o olho, com sua circularidade, e a lágrima, diretamente ligada a ele, evocando o traço da umidade. Mas a presença do “mar” (mais uma vez, tudo incrivelmente se liga: pescaria, Hemingway…) já vem como expansão semântica da “aquosidade” lacrimal, justificando a noção de “cadeia metafórica” (Pessoa já dava a mensagem: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!”). Em outra passagem de outro texto, isso se confirma: “o mar/ deve estar lá/ embaixo”: seriam as lágrimas correndo dos olhos para a boca, como no exemplo anterior? Por falar em olhos, boca, lágrimas, corpos, amores, e lembrando que Barthes traça também “uma equivalência do ocular e do genital” nesses “campos associativos”, merece destaque o seguinte poema, transcrito na íntegra: “ela/ sobre o meu desespero duro e pulsante./ o barulho líquido/ o sugar voraz que me leva e/ me traz,/ como ondas/ roucas de apelos…/ loucos”. Bela sinestesia: “barulho líquido” (seria uma ponte entre os livros Outros barulhos e Cisco no olho da memória)! Como as ondas rebentando no rochedo “duro”, fazendo-o pulsar. Ondas de amor num leva-e-traz: movimentos de corpos no embalo dos ventos eróticos…

Todavia, além desse ensaio sobre o texto de Bataille, Barthes fala especificamente sobre as lágrimas no capítulo “Elogio das Lágrimas”, de seus Fragmentos de um discurso amoroso, como uma das tópicas que caracterizam a narrativa dos amantes: “Entregar-se às lágrimas poderia ser uma disposição do sujeito amoroso? Submetido ao Imaginário, ele pouco se importa com a censura que atualmente mantém o adulto afastado das lágrimas e pela qual o home pretende protestar sua virilidade (…). Liberando suas lágrimas sem nenhuma repressão, o amante segue as ordens do corpo amoroso, que é um corpo banhado, em expansão líquida. (…) São Luís, no dizer de Michelet, sofria por não ter recebido o dom das lágrimas; numa ocasião em que sentiu as lágrimas deslizarem-lhe suavemente pelo rosto, ‘elas pareceram tão saborosas e suaves, não apenas para o coração, mas também para a boca’.”. Expansão líquida, barulho líquido, mar escorrendo pela face até a boca – numa espécie de tradução intergêneros, o que Barthes fala no ensaio, Bessa diz na poesia…

Mas, além do mar, cuja água salgada remete à lágrima, nota-se “a migração do olho rumo a outros objetos”, como neste poema lapidar: “chorando em preto e branco/ como chorava a TV Colorado RQ/ da minha infância colorida”. O choro é transferido do olho para outro objeto, que passa a integrar a cadeia: a TV. Interessante que o aparelho televisor, que se relaciona metonimicamente ao olho, passa a se associar a ele também metaforicamente: toque de mestre! Mas se choro é lágrima, lágrima é sal, e sal é mar, além dele há também a figura do “rio” como expansão da “umidade”, como nesse trecho: “quando minha mãe/ recolhia as roupas,/ como alguém pulando num rio”. Nesse caso, lembrança feliz é água doce: rio é riso, não choro (se existe “mar de lágrimas”, por que não “rio de risos”?).

Do mesmo modo que se verifica um deslizamento do traço da “umidade”, que se derrama do olho para outros objetos, isso também se dá com o traço da circularidade. Essa transferência ocorre, por exemplo, em algumas figuras, como o sol e a lua (aliás, figuras arquetípicas que remetem à oposição “masculino” X “feminino”). Esta aparece na noite de um poema que cita Harvest moon, canção de Neil Young. O astro-rei, por sua vez, brilha em diversas passagens do livro, como num haicai (sintomaticamente, forma poética da terra do “sol nascente”!): “sol cochilando/ velhas roupas no varal/ sonhos entardecendo”. Há outras presenças luminosas em outros trechos, como os “raios de sol/ tilitando lá no fundo” dos bolsos das roupas no varal, “um pôr-do-sol na boca” que ainda traz “raios/ entre os dentes”…

E o sol, vale dizer, também é uma figura que carrega o traço de sentido do erotismo, como ensina ainda Barthes. Mas erotismo não com o significado imediato reconhecido pelo senso comum, como equivalente de sexo. Claro que é também isso, mas em sentido estrito. Em acepção mais ampla, como mostra Freud, está associado a criação, pulsão de vida. Não à toa, Camus afirmava: “o sol ensinou-me que a história não é tudo”. O sol liga-nos profundamente à natureza, lembra-nos de que embaixo de toda a indumentária civilizatória há um bicho que sente calor, sede, tesão! É uma espécie de sucedâneo do conforto do útero, do calor do colo materno, do abrigo primeiro: por isso carrega também a memória nostálgica da unidade perdida, da cisão que nos expulsa para o mundo. Por isso Nelson Cavaquinho cantava: “o sol há de brilhar mais uma vez/ o amor há de voltar aos corações”. Por isso Bessa não quer deixar uma das muitas cidades que o acolheu sob diferentes sóis, abrigado no colo de diferentes amores: “Marseille/ antes de partir/ o sol cobria a tarde”.

Bom, este texto não pode durar mais! O sol tem de se pôr. Os olhos tem de fechar. Mas, depois de todo esse jogo de olho no olho, enfim, e aí? O que vi, o que vemos? O que li, o que lemos? Como dizia Leminski, ler se lê nos dedos, não nos olhos, “que os olhos são mais dados a segredos”. Wali, na mesma linha de visão, esbravejava que é um engodo essa história de olhar nos olhos para ver a verdade: o olhar não é transparente; os olhos são espelhos opacos. Olhar é risco: no olho sempre resta um cisco! Ainda assim, de olhos bem abertos, para ver com olhos livres, eu arrisco!

Permitam-nos um último parágrafo mais para saudar o poeta e nos despedir da viagem:

Ainda bem que Bessa escreve! Ainda bem que não pode parar de escrever! E só escreve porque há falta e a angústia de fixar as vertigens. E só não pode parar de escrever porque é insuportável lidar com o caos de sentido. Então escreve para tentar nomear o inominável, para tentar aproximar-se dos mistérios pelas palavras. Para tentar tocar o impalpável das perdas irreversíveis e dos desejos impossíveis. Para tentar colar os cacos dos choques da vida, dos embates existenciais, que fragmentam o sujeito, estilhaçam o “eu” no impacto de seus confrontos com o “outro”. Escreve porque é “viciado no movimento das incertezas”. Não pode parar de escrever, como Clarice, para não morrer. Por isso escreve como se a dizer que a escrita é uma espécie de vitória contra a morte. Por isso, quando escreve, olha nos olhos do tempo, hipnotizando-o! Por isso, ainda bem, sua poesia é sempre viva! Por isso, em tempo, saudamos sua obra – e viva Bessa!

 

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[O livro é o quinto volume do Selo Musa Rara – a ser lançado em Junho. O texto acima é uma versão estendida do prefácio que apresentará o livro.]

 

 

 

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Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Libertárias, Livro Aberto, entre outras. Foi consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos.  Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010 lançou o livro de poesia Toque de Letra e, em 2012, Letra na clave é sol (ambos pela editora Nhambiquara). É vocalista e letrista da banda Os Babilaques. E-mail: carvalho70@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Reynaldo Bessa, Lágrimas. Obrigado. Abçs
    3 abril, 2013 as 13:42

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