Escola de Mulheres


Escola de Mulheres, de Molière (ou: a obsessiva busca por manter a fronte livre de adornos…)


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Pode um homem, por astucioso ou estúpido que seja, escapar ao destino de ter sua cabeça enfeitada por esse mimo feminil inestimável: dois salientes chifres? O liberal Crisaldo e o zeloso Arnolfo ao menos nesse ponto concordam: evitar o mimo fatal é tarefa árdua; e Molière, o dramaturgo francês criador de ambos na comédia Escola de Mulheres, o provará, deixando ao Destino, este sátiro por excelência, a mise-en-scène de sua trama.

A comédia, dividida em cinco atos, inicia com um filosófico diálogo entre os amigos Crisaldo e Arnolfo, diálogo no qual a pauta é a fidelidade feminina. Arnolfo, estudioso do assunto e zombador contumaz dos “maridos condescendentes”, está convicto de que o mal reside na grande instrução e sagacidade de uma esposa, ou pretendida. Motivo este que o fez passar da teoria à prática: recolhera uma jovem de origem humilde para sua tutela e empenhou seus recursos de homem abastado em sua não-educação, enclausurando-a primeiramente em um convento (onde a tornam, sob rígidas instruções do tutor, o mais simplória possível), para logo em seguida enclausurá-la numa outra propriedade sua, alienando-a de todo o convívio social.

A visita de Horácio, filho de um seu amigo, mudará drasticamente os rumos da peça, ensinando a Arnolfo que em seu douto volume de peripécias das mulheres infiéis cabe ainda espaço para novos registros e notas…

Escrita em 1662, a peça reflete as relações de posse e submissão entre homem e mulher, num regime patriarcal em que aquele não é somente marido desta, mas também seu tutor e até mesmo pai; patriarcalismo que, diga-se, não é novidade para os séculos anteriores ao da peça (menos ainda para o nosso), mas que ganha novos tons a partir da ascensão burguesa em curso no século XVII. De fato, numa época em que o cabedal econômico passa a fazer sombra à linhagem aristocrática, a imagem da mulher enquanto esposa passa a equivaler à posse de um bem cujas prerrogativas cabem tão somente ao esposo/proprietário usufruir. O dote e a obediência aí inclusos. E quando o dote inexiste, a gratidão ao menos é digna substituta: “Vou casar com você, Inês; cem vezes por dia você deverá agradecer esta honra bendita (…) ao mesmo tempo que admira minha bondade, que a eleva dessa vil condição de camponesa pobre à dignidade burguesa”, são palavras de Arnolfo.

Certamente a questão da posse está bem presente na obra. A insistência de Arnolfo, no diálogo inicial, para que seu amigo o trate por Sr. De Vendaval, nome formulado a partir da aquisição de uma propriedade, é recurso de um escritor hábil porque não apenas um recurso dramático sobre o qual se apoiará todas as peripécias da peça, mas também um indicativo eficaz da obsessão pela posse, característica marcante do personagem.

Não apenas essa peça contribui para a imagem de um Molière descrente das relações conjugais. Em Tartufo e O Burguês Fidalgo vemos a ambiguidade das relações homem/mulher, ora nas suscetibilidades de amantes jovens e caprichosos, ora na apatia e frieza entre esposo e esposa, num verdadeiro contraste de extremos, mas ainda sim igualmente negativos. O autor, ele mesmo um amante traído, parece identificar-se com Crisaldo em sua fleuma frente à infidelidade feminina.
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As transgressões moral e estética da obra

Contudo, a meu ver, a problemática das relações amorosas em Escola de Mulheres alcança um patamar estético distinto das demais peças, e isso se dá por dois recursos que Molière utiliza magistralmente, favorecendo tanto a comicidade quanto a reflexão.

O primeiro deles é a inocência e singeleza de Inês, frutos do esforço deliberado de Arnolfo para manter fiel a sua amada, mas que ironicamente é o motivo principal para a falha da empreitada. Harold Bloom em seu livro Gênio sustenta que Molière não permite a seus personagens se desenvolverem, mas percebe-se que isso não ocorre com Inês, sua inocência manifestando inicialmente em seus atos simplórios e imprudentes, evoluindo depois para argumentos desconcertantes em sua singeleza, que desmontam de tal maneira o discurso hipócrita e materialista de Arnolfo (e corrente na sociedade em que vive) que não seria exagero considerá-los “transgressores” da “moral” então vigente:

 

“ARNOLFO

Mas por que não me ama, dona leviandade?

INÊS

Deus do céu! A culpa não é minha. Por que não se fez amado, como ele? Por acaso eu o impedi? Creio que não.

ARNOLFO

Fiz tudo ao meu alcance, mas o esforço foi em vão e o tempo, perdido.

INÊS

Pois então é que ele entende mais do assunto: pra se fazer amar não fez esforço algum (…)”.

 

É interessante o sentido que o termo “esforço” assume nesse diálogo, todo ele impregnado de um materialismo que se contrapõe frontalmente ao assunto mesmo do diálogo. Muito da comicidade da peça se deve a esse cacoete que se opõe, tão inocente, ao discurso socialmente aceito, tal como outrora o método socrático desmontando as falácias do pensamento grego antigo.

Outro recurso estético expressivo que vem a ser o fundamento principal da hilaridade de Escola de Mulheres é o uso parodístico que Molière faz da predestinação trágica, tão presente nas tragédias e mitologia gregas. Arnolfo, também alcunhado de Sr. De Vendaval segundo sua própria vontade, sem que seu rival disso tenha conhecimento, passa a ser adversário e confidente ao mesmo tempo, ficando previamente ciente das tramoias conspiradas contra sua honra e fronte. Pode assim frustrar os planos do rival, mas o destino é terceiro conspirador, assegurando através de pequenas falhas dos planos de Arnolfo o encontro dos amantes, e ao pobre homem, tão decidido a pegar o touro pelos chifres, resta apenas imprecar contra os céus:

 

“ARNOLFO:

O quê?! Os astros que se obstinam em me destruir não me dão tempo nem de respirar? Essa combinação que existe entre eles conseguirá destruir toda a minha prudência e ultrapassar a minha vigilância?(…)”

 

É genial como Molière transpõe para sua comédia, acentuando seu humor, um elemento antes destinado a realçar a majestade de um rei Édipo em sua queda, a expressar a vontade soberana dos deuses do Olimpo e do Fado ante os esforços vãos dos pobres mortais. O recurso é de uma ousadia cujo perigo inerente poderia resultar no fracasso cênico completo, sem falar no risível, mas que assim utilizado consagra a maestria de um grande artífice do gênero dramático.

Somando-se uns pontos e outros, haveria o perigo do pensamento crítico a posteriori enxergar em Molière um feminismo avant-la-lettre, o que não condiz com a peça, em especial pela inevitabilidade da traição feminina e, quando menos não fosse, por um escrutínio detido nos demais casais do universo molieriano, pelos motivos já anteriormente mencionados. No universo do dramaturgo francês onde a presunção, a recalcitrância, o pedantismo, a hipocrisia e a leviandade são mordazmente atacados, poucos (ou mesmo nenhum) dos seus personagens escapam da chacota, bem como nós, personagens da vida real, tão versados nessas práticas…

Resta então à Inês, transcendendo sua hilária mediocridade, alcançar a Liberdade; a Horácio, transcendendo os obstáculos que se lhe opõem , alcançar seu amor; e a Arnolfo, sem transcender sua obstinada obsessão, conformar-se com seus cornos.

 

 

 

 

 

 

 

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Clayton de Souza nasceu em São Paulo, em 9 de abril de 1983. Autor de Contos Juvenistas, Editora Patuá. Colabora com o Jornal Rascunho (http://rascunho.gazetadopovo.com.br/autor/clayton-de-souza/). Reside em São Paulo. Facebook: https://www.facebook.com/contos.juvenistas?hc_location=stream

 




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