El alma oblicua
…..Aproximação à obra El alma oblicua de Vicente Cervera Salinas
Quando o tradutor da obra El alma oblicua, Rodrigo da Rosa, me convidou para participar da mesa de seu lançamento, o desafio era apresentar uma explanação sobre a lírica espanhola contemporânea e a inserção de Vicente Cervera Salinas na tradição literária peninsular. Para respeitar o tempo que me coube, me ative a alguns comentários sobre a literatura espanhola do final do século XX, época em que aparece a primeira publicação de Cervera Salinas, o livro de poesia De Aurigas Inmortales de 1993.
Vários são os posicionamentos poéticos que circularam e circulam a partir das últimas décadas do século passado. Embora haja grupos que se constituem com base em afinidades geográficas, culturais, políticas ou até certo ponto estilísticas – como é o caso dos membros do grupo conhecido como “Poesía de la Experiencia”, que reivindicam a necessidade de uma poesia conectada com o cotidiano e com as emoções -, há aqueles poetas que não se alinham e seguem explorando as possibilidades artísticas da linguagem. Penso que Cervera Salinas faz parte deste último grupo.
Em El alma oblicua, o autor é anunciadamente consciente de que funda seu mundo poético na escritura e compartilha seus caminhos e opções com o leitor ao informar a vinculação de fidelidade aos seus propósitos e alcances já pela epígrafe de Rubén Darío:
Ama tu ritmo y ritma tus acciones
Bajo su ley, así como tus versos.
Eres un universo de universos
Y tu alma una fuente de canciones.
Ainda sobre a poesia espanhola da segunda metade do século XX, vale a pena lembrar que Andrew P. Debicki (1988, p. 166 e p. 168) a vincula à pós-modernidade e comenta que as inovações estão mais relacionadas com “el enfoque del poema, el juego de perspectivas y ciertos rasgos metapoéticos que con su temática”. Também afirma que as atitudes poéticas requerem a participação do leitor porque “sobreponen a la visión tradicional y ‘moderna’ de una obra permanente e inmutable, el concepto de un texto abierto, importante no como depósito de significados sino más bien como estímulo a continuos descubrimientos, lecturas y relecturas”. Ainda segundo Debicki, tais mudanças estéticas permitiriam considerar a poesia espanhola vinculada a correntes importantes da cultura ocidental.
Embora não tenha como meta apresentar a obra de Cervera Salinas dentro do marco do pós-modernismo, me interessa resgatar as características que a cruzam com os valores que são da cultura ocidental e, claro, da nossa (dos brasileiros), cuja sensibilidade está mais preparada para o paradoxal e enigmático e afinada com o dinamismo construído pelas metáforas, como diz José Paulo Paes (1997, p. 17) em Os perigos da poesia e outros ensaios. E é precisamente a descobrir pela leitura e reflexão a metáfora do mundo criado pela poética de Cervera Salinas que El alma oblicua nos convida.
Diversos caminhos podem nos levar a uma feliz aproximação ao seu livro[1]. O que escolhi pretende apenas destacar alguns aspectos da experimentação linguística que promove o autor para dar forma à sua revelação do mundo a partir do cotidiano. Entendo experimentação como sendo (TELES, 1986, p. 1):
parte do processo de enunciação, de produção do texto poético, é sempre um estado de espírito de rebeldia em face da língua e da tradição literária: situa-se não exactamente dentro dos sistemas linguístico e retórico, mas à margem deles, para, ao mesmo tempo, repeti-los e transformá-los. A experimentação é portanto uma vasta figura de retórica agindo positivamente em todos os níveis do discurso, em todos os sentidos da criação literária.
A primeira rebeldia que chama a atenção no caso de El alma oblicua surge sob a forma da releitura de signos mais ou menos rotineiros e destacados do cotidiano. Comecemos pela divisão do livro em decálogos. Não apenas de um decálogo, aquele que poderia trazer os mandamentos de sua poética, senão de quatro, unidos pelo título do núcleo temático – compositivo. São eles: “Oblicua”, “Gramática”, “Cativa” e “Panóptica”. A referência ao decálogo nos remete ao mais famoso deles na tradição judaica-cristã: “Os dez mandamentos” escritos em tábuas de pedra. Colaboram para a associação entre poética e religião, os elementos que aparecem distribuídos entre diferentes poemas, como em La cinética amoral ou Tierra prometida. É em La cinética amoral que conhecemos (ou reconhecemos) a seleção e construção de sequências linguísticas, atualizando o saber cultural com a descrição de um e outro Cristo. Os primeiros e últimos versos dizem:
En sus hombros no hay
la carga de la cruz.
Ningún Gólgota lo espera,
ni se hicieron las tinieblas.
Un versículo sin números
en el evangelio de los sueños
lo descubre a lomos de un blanco
alazán. (…)
Hay un texto sin palabras donde
elijo la cinética amoral
de este Jesús del movimiento,
a quien nadie glorificará
con palmas ni con espinas.
Não se trata de uma predileção do poeta deter-se no campo semântico da religião. Longe disso. Se aparece como elemento da obra, é porque faz parte do mundo observado e vivenciado pelo eu lírico, assim como também fazem parte uma escada (Escaleras abajo), os sapatos amarelos (Los zapatos amarillos) ou os caminhos que se conectam com o trem (e a vida) em uma estação de metrô (Bajada al metro). Pode-se dizer que inexiste a gradação de objetos ou situações que merece protagonismo na escritura, ainda que haja repetição de motivos, porque voltar ao objeto ou às situações serve para revelar novo ângulo de aproximação através de outra abordagem.
A experimentação pode vir da retomada de estruturas do idioma que guardam conhecimento antropológico e atual. No poema Antes de nada, se amplia a frase atribuída a Terencio para enfatizar o humano constituído pela razão sem desmerecer os sentimentos:
(…) Nada humano, dice
sentencioso el sabio adagio,
se hace extraño a mi razón
ni le es ajeno al sentimiento.
Mas o verdadeiro orientador para a aproximação à poética de El alma oblicua pode ser encontrado no poema que abre e dá título ao livro. Na constituição da voz poética que se adona da riqueza de estímulos sensoriais e temáticos da realidade para recriá-los por meio do jogo com a linguagem, está, por um lado, o reconhecimento da dificuldade da meta. Por outro lado, está o alerta para o leitor sobre a pauta que rege esta realidade esteticamente construída, funcionando como um convite para acompanhar o eu-lírico em suas descobertas ou em sua mirada. Cabe ao leitor a atualização da leitura, uma vez que não se trata de uma mensagem de singularidade semântica e sim de pluridade. Os seguintes versos dão pistas de como pode ser o encontro:
(…) Soy la ruta esquiva y sinuosa
en el plano inmaculado. La sesgada
dirección de toda línea. Alma
oblicua que ama, al fin, la rectitud.
Ao tom afirmativo, como os dos versos desse poema, se alternam os questionamentos diretos ou indiretos que o eu lírico lança em outros poemas para construir ou compartilhar o conhecimento. Em La metamorfosis, se lê:
¿Cómo un jamás en un siempre
se transforma? Escucha con
el alma presta al encuentro,
y los sentidos afinados te habrán
de dibujar otros caminos,
que tu mente, endurecida por
la angustia, ensombrecía. (…)
Já Tiempo de treguas começa assim:
Sí. Siempre soy yo el que pregunta.
Tienes razón. Y tú siempre el preguntado.
Porque así trato de evitar el vacío
y la espera. Treguas. Tiempo de treguas.
.
Os poemas citados ilustram também a última observação que gostaria de fazer. Em El alma oblicua, se destaca o diálogo entre o eu e o outro. O yo e o tú em sua forma singular ou plural – porque podem se atualizar em nosotros y vosotros – . No entanto, esse tú guarda diferentes configurações. Pode ser o próprio leitor, pode ser uma desdobramento do yo que é convocado para ampliar o jogo de perspectivas e pode ser também um tú interlocutor do yo criado na matéria poética. Seja como for, parece ser que o eu se configura como tal na presença do outro/outros com quem cria, dialoga e compartilha.
[1] É esclarecedora a leitura que Miguel Ángel Rubio Sánchez apresenta, em El arte poética de “oblicua” (primer nucleo temático-compositivo de “El alma oblicua”, de Vicente Cervera Salinas) relacionando poesia e filosofia.
Bibliografia
AUB, Max. Poesía desterrada y poesía soterrada. Sala de Espera, n. 5, v. 1, pp. 1 – 16.
CELA, Camilo José. Correspondencia con el exilio. Prólogo de Eduardo Chamorro e
notas da edição de Jordi Amat. Barcelona: Destino, 2009.
DEBICKI, Andrew. Poesía española de la postmodernidad. In: Anales de literatura española, 6 (1988), pp. 165-180.
FIORIN, José Luiz. In principio erat uerbum. In: As astúcias da enunciação. As
categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ed. Ática, 2002. pp. 9 – 25.
GARCÍA MONTERO, Luis. La otra sentimentalidad. In:
http://elpais.com/diario/1983/01/08/opinion/410828412_850215.html, último acesso 28/07/2012
GRACIA, Jordi. A la intemperie. Exilio y cultura en España. Barcelona: Editorial
Anagrama, 2010.
LLORENS, Vicente. Estudios y ensayos sobre el exilio republicano español de 1939.
Sevilla: Renacimiento, 2006.
MUNIZ, Ana Lucia Gomes. Entre monarquía e república, ditadura e democracia. O
fim dofranquismo e as causas da transição política espanhola. Dissertação de mestrado. Departamento de História. FFLCH/USP, São Paulo, 1998.
PAES, José Paulo. Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks,
1997.
PRIGOL, Valdir. Mire. Veja: a solicitação do olhar nos poemas de Carlito Azevedo. In:
PEDROSA, Celia; CAMARGO, Maria Lucia de Barros (Orgs.). Poética do olhar e outras leituras de poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. pp. 41 – 50.
PRIETO DE PAULA, Ángel L. “El resurgir poético tras la Guerra Civil”, en:
http://bib.cervantesvirtual.com/portal/pec/ptercernivel.jsp?nomportal=pec&conten=historia&pagina=historia1.jsp&tit3=El+resurgir+po%E9tico+tras+la+Guerra+Civil, último acesso em 27/07/2012.
TELES, Gilberto Mendonça. A experimentação poética de Manuel Bandeira.
http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/revistas/revistaicalp/manuelbandeira.pdf,
último acesso em 04/08/2012.
VIDAL EGEA, Ana. La reivindicación política en España a través de la poesía. In:
http://pt.scribd.com/doc/70444621/La-reivindicacion-politica-en-Espana-a-traves-de-la-poesia-por-Ana-Vidal-Egea, último acesso em 01/08/2012.
.
[Fala apresentada por Solange Munhoz em 18/08/2012 no Instituto Cervantes]
.
Solange Munhoz é doutoranda em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo. E-mail: solangemunhoz@yahoo.com.br
Comente o texto