Chuva em Cubatão


…………………………..Um poema inédito

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‘La tendresse é uma ilusão’ ou Bela Tarr caminha em silêncio na chuva em Cubatão acompanhado pelo Arcanjo Gabriel do qual ouvimos a voz sem sabermos realmente de onde ela vem,seguida da exposição de um problema dentro do poema.
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(Primeiro Movimento)

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medo infinito da água

até  ver

nela a sombra transparente

presente,

quando a chuva  cessa

sorri

em  ti

o que

só triunfa

quando o corpo

seca

antes

em vida

nele explode

um Sol

que em nosso peito

arde

mas quando sua luz

nos alcança

nada mais

pode ser feito

é  tarde

desaparecem

sem alarde

depois de comer

do fruto

da árvore,

seu  gosto de

cinza

 

antes

ignorado

gosto do  silêncio

agora conhecido

luz que foi como  vidro

para o inseto que em ti

dorme

projetamos neles o mendigo

no lugar da Ária-Cristo

apenas um eco do ego latindo

um foda-se não é comigo

ainda assim o  coração brilha

e se parte

em bilhões de pedaços

basta um

para  nos  incendiar

nesse instante

em que  como o líquem,  o orvalho e  o flamingo

seremos parte

da luz da estrela

no mesmo instante

em que nascemos

apenas para vê-la
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(Segundo movimento)
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Os Mortos são as Estrelas dos vivos
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Um morto são todos os mortos

mas um vivo está só

no meio das imagens

e cada dia é outro mundo

outra dimensão

seguindo a Estrela

que os mortos são

 

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(Terceiro movimento)

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apenas com o corpo

como casa

o raio que em silêncio cai  na água

apenas com o corpo como casa

homem e  mulher

caminhando novamente

pela estrada com a cabeça baixa

desta vez ,lamentando a perda

de sofás,cama, fogão e televisão

‘ luta de uma vida’

dizem com a voz sequestrada

onde está  escrito

morte sem crédito

não apenas a luta do ser contra o haver

da raiz da árvore contra

a energia indiferente da gravidade,

árvore arrancada, ali deitada

esperando para sempre por um Buda da miséria

e também a luta do existir apenas

como antisonho

e a  falsa inclusão

que inclui para excluir melhor depois

tratado como bois, cabeça baixa

a tempestade é  só uma metáfora

da devoção fingida,omissão

e falta de consciência dos poderosos

mas quando o povo em geral despertar

o povo em particular terá força

para poder mudar

 

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(Quarto movimento)

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Mudar é um mito ,

a materialidade é onírica

O capitalismo invencível

porque simula

os modos da natureza,

mas nós imitamos

quando criamos

os modos do cosmo,

a natureza ainda mais além

não é possível ver a mudança

de uma galáxia que some

nem assistir o crescimento de uma planta,

tampouco a consciência

se movendo como a seiva

dentro da árvore seca do Sacrifício

dela não vemos indício,

mas podemos sentir

a invasão das fagulhas

de novas sinapses,

novas configurações da mente

nas crianças,nos loucos, nos índios

e nos chamados poetas, seus símiles

novas sinapses invadindo

como   estes desabrigados

invadem os prédios,

mas as sinapses não dependem, nem esperam

apenas invadem

como os sem-terra, os sem-teto

o espaço delimitado

pela impessoalidade do verbo ‘Haver’

em oposição com o verbo ‘ Existir’

e do mesmo modo que o bardo

chamou de impostores a vitória e o fracasso

assim chamo de irreal tudo o que tenta diminuir

a intensidade do que existe

até converter o próprio Ser num fantasma

 

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(Quinto movimento)

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Sim, a geladeira foi convertida em barco

ninguém falou nada dos cães e gatos afogados

aquele menino no abrigo tem o olhar de um cavalo

um homem procurava na lama por um envelope com todo o seu dinheiro, como um garimpeiro
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( Sexto Movimento)

 

A natureza tem seus momentos de La tendresse

A morte do orvalho, a da abelha no copo de cerveja

o arco-íris albino,  o flor do mato crescendo no meu quintal,  a chuva fina desenhando um Seurat abstrato

no Rio Cubatão, a suíte de Mozart foi sampleada dos pardais na copa das árvores, como o líquem na rocha assim foi construída a casa na encosta

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(Sétimo Movimento)

 

A unidade de tragédia unifica

a nadificação da essência separa

seu poema é difícil

você fala rápido demais

repito o que me dizem constantemente

para a Natureza, Deus de todo capital

fogo derretendo o ouro

ratos desesperados morrendo afogados no esgoto

o governador, a prefeita, a presidente

crianças-líquens na escola até mais tarde

esperando os pais para o fracasso do nanoéden

a multiplicação de Canudos sem nenhuma revolta

cordeiros bebendo cachaça e  focas fumando maconha

em cima de uma  pilha de móveis na calçada

O museu de arte contemporânea do lixão

incluirá todas as cidades

 

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(Movimento Final )

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Tudo lembrando uma cena de Beasts of the Southern Wild. Na outra cidade-símile a Serra manda lembranças para o mar, um aleijado em uma rua alagada

canta sorrindo com as muletas dentro da água:

Onda, olha a Onda\ Onda, olha a onda…’

em volta dele, centenas de cadáveres vivos no supermercado, um poema termina sem ênfase e sem emoção, porque não pode se ler através de você, do mesmo modo a morte não pode morrer, se você não viver.

 

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De ‘ Tudo o que existe veio do sonho, segundo diário ontológico’

a identidade é um mito perigoso como o mito das fronteiras, no fundo, somos o Outro e não existem fronteiras entre essa ilusão que chamamos de ‘ eu’ e tudo o que nos cerca, mas a morte que não é um mito, nos ensina isso sem que seja necessária sua chegada definitiva, desde que uma desilusão que ilumina não seja contornada por nossa parvoice e egoísmo (………) Percebo  o vazio sem silêncio que é a aura das paisagens, sinal sutil da ausência de espírito, palavra que talvez não signifique praticamente nada, no tempo da velocidade dos assassinatos invisíveis, a verdadeira vocação das grandes cidades, é a vocação para o assassinato invisível, São Paulo, por outro lado, é o lugar ideal para a preparação das minhas aulas para um curso de silêncio,  a ética do evento, para mim é apenas uma forma de contornar o vazio para tentar os silêncios difíceis, tão difíceis que ganham o ‘ status’ de pequenas ressurreições do espírito, a carne, apesar da alegria, não ressuscita e isto está mais do que comprovado, mas o espírito, o espírito não é tão fácil assim de matar, sobrevive com elegância aos massacres do amor e da guerra, o espírito é a orquídea do vazio.

Marcelo Ariel de ‘Tudo o que existe veio do sonho, segundo diário ontológico’

 

 

 

 

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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010), O Céu no fundo do mart (Dulcinéia Catadora, 2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011), entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Gilvan Ferraz Ribeiro, Muito bem elaborado Ariel! Com certeza catastrófica a um “Tratado dos Anjos Afogados” confrontante à burguesia fétida usurpante do Estado, à negligência generalizada, omissa quanto às consequências do capitalismo desumano, à desindustrialização e a terceirização, automatização do emprego e descartabilidade do ser humano, em detrimento do processo de enriquecimento de multinacionais e Estatais produtoras de poluentes, excluídos e indigentes obrigados a não se submeter à especulação imobiliária causada pela demanda super-reprimida de moradias às classes menos favorecidas. Abraço!
    21 março, 2013 as 19:01

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