As histórias de Vera do Val
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Vencedor do Prêmio Literário da Prefeitura Municipal de Manaus, na categoria conto, em 2006, o livro Histórias do Rio Negro, de Vera do Val, surpreende pela tessitura narrativa, graças ao vigor da prosa e a soluções bastante singulares que apresenta.
Publicado em 2007 pelas Edições Muiraquitã, do Conselho de Cultura, e, quase simultaneamente, pela Martins Fontes, de São Paulo, os contos de Vera do Val assumem posição de vanguarda na literatura feita no Amazonas.
A primeira surpresa que a leitura nos revela é a percepção de que vários personagens transitam entre os contos. Dessa forma, a título de exemplo, mencionamos o Velho Nabor, que aparece em “Rosalva”, a primeira narrativa do livro, é mencionado em “Rodamundo”, reaparece na história que leva seu nome e conclui sua trajetória em “Irerê”.
Outro personagem que transita entre vários contos é Seu Jeru, cuja participação se verifica em “A Cunhã que amava Brad Pitt”, “Josué”, “O Jogo” e “A Praça” (neste último, ocorre maior ênfase em sua atuação).
E assim outras figuras: Alzerinda, Giselle, Dorvalice, Marlene, Dona Dora, Antenor da Silva.
O efeito surpreendente obtido pela autora com essa técnica é a de ter transformado os 26 contos do livro em um romance. Romance fragmentado, é verdade, mas em perfeita consonância com a multiplicidade de aspectos da vida. Ivan Ângelo, em A Festa, usa estratégia semelhante. Após os contos serem narrados à maneira tradicional, ou seja, cada um apresentando personagens e acontecimentos próprios, o autor reúne os protagonistas em uma festa, transformando a série de contos em um romance.
Na obra de Vera do Val, o local onde se misturam os personagens é o rio Negro. Ele é o espaço onde esse “romance estilhaçado” acontece, apresentando uma humanidade expressiva da cultura tradicional e também da cidade grande, certamente Manaus.
Confirmando essa estrutura de “contos disfarçados”, predispondo-se para a arquitetura de um romance, com inúmeros conflitos, observamos que o enredo de um conto, que parecia encerrado no ponto final, prossegue em outro conto, que pode estar logo na narrativa imediata ou mais adiante.
Nesse sentido, observamos uma sequência nas seguintes histórias: “Giselle”, “Vida de santo” e “Dorvalice”. Na primeira, Janete, uma moça vinda do interior, consegue se tornar amante de Raimundo, um dentista bastante infeliz no casamento. Na segunda, de teor fantástico, Dorvalice, mulher de Raimundo, “mal passada dos quarenta”, entra na igreja para se lamentar a um santo e pedir a ele que o marido volte para casa. Em seguida, entra Janete, que adotara o nome de Giselle, para agradecer ao santo o fato de Raimundo ter ido viver com ela. Além de fantástico, pois o foco narrativo é conduzido, muitas vezes, a partir da perspectiva do santo, essa narrativa possui bastante humor, pois o santo se sente atraído e perturbado pelas formas físicas de Giselle. Finalmente, no conto (ou capítulo) que encerra essa série, ocorre a morte de Dorvalice.
Também em sequência estão os contos “Águas” e “Rodamundo”. O primeiro é a história de um velho que mora sozinho e espera a morte. Sua mulher, Maria do Socorro, já morrera; dos seus quatro filhos, três o rio Negro matara e um fora embora, cumprindo a sina do nome: Rodamundo. Na narrativa segunda, o protagonista se lembra de quando, na loja do velho Nabor, na cidade grande, ficara maravilhado com uma bússola. Aos quinze anos, conseguiu comprá-la, depois de fazer serviços diversos no porto. Depois de adquirir o objeto, é que pensa em ir embora de casa. É significativo observar que ambos os títulos dessa série expressam o correr da vida, pois as águas correm para o mar e a onomástica de Rodamundo expressa perfeitamente sua inquietação. Nesse sentido, a bússola adquirida é uma antítese ao nome do personagem e metaforiza, quem sabe, um desejo de achar um rumo, de se fixar em um espaço próprio.
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A série mais significativa de contos encadeados é formada por “Curuminha”, “Velho Nabor” e “Irerê”. Na primeira história, uma “curuminha” passeia às margens do rio Negro. Das águas, sai um boto, “nu e moreno”, para possuí-la. Duas narrativas depois, a “curuminha”, que se chama Irerê, deixou-se possuir pelo velho Nabor, que resolveu trazê-la para a cidade. Aí, ela aprendeu a ler e a fazer contas. Um dia, Samir, irmão de Nabor, a viu à noite, vindo nua do igarapé dos fundos da casa, onde tinha ido tomar banho. Samir não teve mais sossego. Um dia, Nabor o flagrou espreitando Irerê. Samir se assustou e Nabor entendeu tudo. Levou então o irmão para o leito de Curuminha e os dois passaram a dividir a mulher. Dois anos depois, nasceu um menino: Ozair.
Na continuação, Irerê “evolui” e passa a gerenciar a loja, a qual modernizou. Posteriormente, mudou-se com os maridos e o filho para um moderno edifício na curva do rio (ou seja, na Ponta Negra, habitat da elite manauara). Completamente desambientados no edifício de luxo, os irmãos sofrem e falecem.
Essa sequência narrativa é uma alegoria da própria região amazônica através de seu percurso histórico. Inicialmente, Irerê faz parte da natureza, inserindo-se no ambiente típico da cultura folclórica regional, pois foi possuída pelo rio-boto. Depois, aceita imigrantes, representados, no caso, pelos dois irmãos de origem estrangeira. Esses imigrantes vão modificar sua formação e dar-lhe outro status cultural e social. Finalmente, vem a ascensão a uma classe média completamente desvinculada dos valores tradicionais e alienada em função de um desenfreado consumo.
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Já dissemos que o rio Negro é o local dos acontecimentos, mas ele é também personagem. Tanto que, no conto da “curuminha”, ele se insinua, dizendo, antes de libertar o boto que traz em si:
– Vem, curuminha, se perder às minhas margens. Vou lamber teu cio, levante a saia e abre as pernas, espoje na areia fina, espume entre as coxas e uive de gozo.
A faceta de conquistador do rio aparece logo no primeiro conto, intitulado “Rosalva”. Quando a moça casou e foi embora para o mato, fugindo de suas margens, o Negro, enciumado, “turvou, torvelinhou e rugiu o dia todo, a peixarada sumiu assustada e até pescador muito macho se recolheu precavido”. Mais tarde, Rosalva voltou para o Negro. Atraída, ela se deixou levar, “o rio rindo com ela, a malinando toda, até que, de olhos fechados e um sorriso na boca, ela desapareceu no escuro das funduras e da noite que vinha chegando”.
Sendo o amante enfeitiçado, é também antagonista perigoso. Afinal, é ele quem, no conto “Águas”, mata os três irmãos de Rodamundo. Tal como os indivíduos, o Negro possui personalidade complexa e contraditória.
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O erotismo é marca constante nas Histórias do Rio Negro. Sob esse aspecto, é importante registrar o trabalho linguístico e literário que se observa em “Caipora”. Narrado em trechos ritmados, como se fosse um poema, é semelhante a uma cantiga de amigo, gênero do Trovadorismo português. Nessa forma poética, a moça lamenta a partida de seu namorado, o “amigo” que foi lutar ao lado do rei. No conto de Vera do Val, a “amiga” conta para a mãe não o momento da partida, mas o do encontro. Embora, em termos gráficos, esteja posto na forma de prosa, percebe-se no conto o ritmo das redondilhas:
Ai mãe que vi caipora, que tinha língua de fogo, de fogo que arde a carne, a carne que abre as pernas, me espinha toda e jorra de gozo.
As marcas trovadorescas estão presentes também em “Cantilena”. Como em “Caipora”, esse conto, representação de um encontro amoroso, é narrado de modo ritmado, com versos dispostos em forma de prosa. Primeiro fala o homem, dizendo de seu desejo pela mulher, chamada Marinalva. Depois, é a vez de a mulher falar para Dorivaldo, se entregando a ele. É uma cantiga de amor aliada a uma cantiga de amigo, mas sem os clichês proibitivos da tradição medieval. Marinalva e Dorivaldo são nomes com bastantes semelhanças fonéticas, o que é significativo; além disso, cada um dos amantes se declara ao outro em quatro parágrafos. A autora criou, com tais recursos, uma simetria onomástica e visual para o amor.
Amor, desejo – são esses os sentimentos que, quase sempre, movem os personagens que vivem às margens do rio Negro recriado em ficção por Vera do Val. Tão intenso pode ser o amor, que é capaz de transformar os indivíduos, como em “Piabeiros”, história que se passa na região da Cabeça do Cachorro, onde o rio Negro nasce. Esse conto nos mostra homens que vão coletar peixes para vendê-los para o exterior. Vicentão é o líder do grupo e é apresentado como um facínora. Do outro lado, está o velho índio Karaó e suas duas esposas: a velha Xipó e a quase menina Araí (definida como toda “mel e delicadeza”). Vicentão quer conquistar Araí e consegue, porque a moça sonha em sair da aldeia e conhecer o mundo. Mas, surpreendentemente, Vicentão se apaixona e amolece o coração, ele que era tão brabo. Na festa da despedida, uma bala perdida, atirada a esmo por um homem que se envolvera em briga, mata Araí.
O amor também pode causar desvarios, como aconteceu com Luzilene, a protagonista do conto “A Cunhã que amava Brad Pitt”. Nesse caso, podemos fazer também uma leitura alegórica, considerando Luzilene como metonímia da região em seu fascínio pelos valores advindos do estrangeiro. Tal fascínio expressa a mentalidade que foi inculcada em grande número de pessoas, desde os tempos em que éramos Colônia. A morte de Luzilene amplia a alegoria, como se a perda dos valores autóctones significasse a morte cultural.
Porém, em “A Cunhã que amava Brad Pitt”, vale destacar passagem de extrema habilidade artística. Em sua precária habitação no Tarumã, afluente do Negro, a protagonista olha um pôster com a imagem de sua paixão: o louro Brad Pitt. Cai a chuva torrencial e o flutuante oscila, antes de ser levado pela torrente. Mas Luzilene nada percebe, pois está no auge do “amor solitário”:
Quando o flutuante num tranco mais forte soltou-se da poita e danou a galopar rio abaixo, ela viu, com olhos esgazeados, o moço, sem pressa nenhuma, desprender-se da parede e ir tomando chegada. Veio de manso, sorrateiro, o azul do céu se esparramando, fugindo dos olhos dele. No ar tremeluzindo, se era homem, se era Boto, ela não se perguntava. O que queria eram aqueles dedos de leite lhe tocando o corpo e a boca vermelha lhe bafejando a nuca.
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Esse momento de lirismo não é único no livro e pode ser frequentemente percebido em diversas figuras de linguagem, cujo uso torna a linguagem nada convencional. Vejamos alguns exemplos:
- Em “Das Dores”, temos: “Nessa hora o sol parou e derramou vermelho no mundo”.
- Em “Alzerinda”, observa-se o paradoxo “O silêncio esgoelava”.
- Em “Tocaia”, Teresa “foi juntando moedas de sangue” e “tirou o amor sem fim da gaveta”.
- No conto “Joca”, o protagonista “virava deus alado; lancinante, subia aos céus e descia embalado, pairava no ar, cuspia estrelas”.
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As Histórias do Rio Negro, de Vera do Val, superam o regionalismo rasteiro e “turístico” que, muitas vezes, tem assolado nossa literatura. Na multiplicidade de pessoas e interesses que apresentam – dos quais ressaltamos apenas alguns exemplos –, ascendem ao universal, o que é bastante para que sua leitura se torne imprescindível.
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Marcos Frederico Kruger é professor aposentado da Universidade Federal do Amazonas, onde lecionou Teoria da Literatura e Literatura Brasileira . Possui o doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa, título obtido na PUC-RJ em 1997, quando defendeu tese sobre as narrativas mitológicas dos índios dessanas, etnia do noroeste do Amazonas. Possui publicados, dentre outros, os seguintes livros: “Amazônia: mito e literatura” (sua tese de doutorado) e “A Sensibilidade dos Punhais” (ensaio literário sobre a poesia no Amazonas). Com Tenorio Telles publicou: “Poesia e poetas do Amazonas”, “Antologia do conto do Amazonas” e “Poesia e poetas do Parnasianismo, Simbolismo e Pré-Modernismo”. Com o professor Allison Leão, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), acaba de publicar, na condição de organizador, o livro “O Mostrador da Derrota”, coletânea de estudos sobre o teatro e a ficção de Márcio Souza.
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