À sombra do medo e da insanidade


À sombra do medo e da insanidade — considerações sobre O estranho no corredor de Chico Lopes

 

Nos dias de hoje a felicidade e suas receitas estão por todos os lados. Sermos felizes é a palavra de ordem. Comerciais de creme dental, de cervejas, companhias turísticas, um simples perfume ou sabonete, tudo é alegria, sorrisos e luz. Mas imagine o contrário de tudo isso. Imagine sombras. Esqueça todos os delírios de felicidade comercial inominável e visualize um quadro de meios-sorrisos, de olhos suspeitos, de palhaços tristes com suas bocas de cantos derrotados, envergados, invertidos para o chão como uma ferradura de ponta cabeça. Pronto, está diante dos infelizes de O estranho no corredor, o mais recente livro de Chico Lopes, lançado em 2011, que o colocou entre os dez finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura 2012, na categoria autor estreante, e terceiro lugar no prestigiado prêmio Jabuti, também de 2012.

A novela O estranho no corredor é pouco afeita aos modelos de Best Sellers que se propagam pelo front das prateleiras de exibição nas livrarias de hoje. Não apresenta ensinamentos para melhor viver e não se pretende manual de sobrevivência ou sucesso. Seu texto é duro e nos leva a conhecer um mundo degradante e feio que assistimos através dos olhos e da mente do narrador e do protagonista. Seus personagens assemelham-se aos heróis dos romances do século XIX, descritos por Ference Fehér no seu ensaio O romance está morrendo?, quando este afirma que, em oposição aos romances do idealismo abstrato, de antes, como Dom Quixote, estes personagens

não partem para a ativa correção do mundo, limitam-se a sofrer em decorrência do fato de que a alma deles é mais ampla do que os destinos que o mundo pode lhes oferecer. Perde-se, então toda e qualquer simbolização épica, a forma se dissolve em uma sucessão nebulosa de estados d’alma, a fábula cede lugar à análise psicológica (1997, p. 12-13).

Sabendo disso, posso dizer que temos um livro sombrio a nossa frente. Poucas luzes, caras soturnas, ambiente viciado pelo decrépito das personalidades vacilantes ou indecorosamente sofridas, perdidas e falidas dos homens e mulheres que se movem pelo livro como vagantes perscrutadores e infelizes.

Sua narrativa possui um andamento lento, moroso e que pode ser comparada a uma passagem do texto descrita pelo protagonista, quando este relata o movimento de um ônibus que toma após uma noite de sexo insosso. O ônibus era “deslizante, comprido, silencioso, como um esquife macio, para o fundo da noite” (LOPES, 2011, p. 46)[i], e assim é a narrativa. Mas essa lentidão externa choca-se com a constante tensão na cabeça do próprio protagonista.

Sufocado pelo medo, o protagonista se esconde nas sombras que aclimatam todo o livro. E os arredores são densos, escuros, ambientados pela escolha profícua das palavras, das construções frasais e da forma usada pelo autor, assim como na descrição do prédio que fica de frente à escola onde trabalha como professor, “cinzento nunca purificado pela chuva insistente” (p. 20, grifo meu), contendo “infelizes trêmulos a segurar receitas médicas ou carteirinhas de convênio” nos seus “corredores mofados, bem conhecidos de ratos e baratas” (p. 28, grifo meu). Como se pode perceber, o peso das descrições dá o tom da feiura e decrepitude de tudo.

O protagonista é tão destituído de atrativos e de vigor humano que nem sequer possui nome. Conhecemos seus pensamentos, sua vida por intermédio do narrador onipresente e onisciente, mas não sabemos seu nome. E dele trata o enredo, desse homem sem nome, estranho a tudo, desajustado com o mundo, vindo do interior e vivendo como professor de inglês na cidade grande, solitário, amargo e apagado, como fica claro nas palavras do próprio narrador que parece repetir os pensamentos do personagem sobre si mesmo: “Tinha se esforçado, nessa nova vida para ser a coisa mais sorrateira, microscópica, invisível que pudesse – sendo uma nulidade, suprimindo-se, correria menos riscos em meio a esses desconhecidos todos” (p. 21). Além disso, acreditava que os outros, ao olhá-lo, um ser “jamais impositivo”, entendiam “que ele nada oferecia, nada era, não merecendo mais que o olhar casual e de passagem que se dá a um pé-rapado esmagado em atropelamento de esquina” (p. 21). Seu histórico familiar já denota parte de seus complexos: o pai era alcoólatra e farrista, a mãe morreu louca.

Se observarmos as palavras na citação acima, escolhidas para descrever o intento do protagonista de invisibilidade social, veremos que “sorrateira”, “microscópica”, “invisível”, “nulidade” e “suprimindo-se”, dão a noção exata de sua forma escolhida para viver entre os outros, ou seja, apenas mais um, e nada especial.

Contudo, perante esse quadro de nulidade, é aspirante a escritor, escreve em seu diário suas impressões do mundo e do que vive, enquanto esse mundo ao seu redor o reprime, sendo vasto na cidade grande, com seus personagens obscenos e tão medíocres quanto ele, e mesquinho na cidade pequena, de onde veio. Para piorar seu estado, acredita-se perseguido por alguém que só ele vê e que não sabe de onde vem nem por que o persegue. E essa perseguição o acompanha por todo o livro.

Sufocado por essa pressão de viver, muitas vezes demonstra-se distante de si mesmo, desconhecendo-se ou lutando contra seus próprios impulsos de libertação, bloqueando atitudes, negando-se a ir além, como na manhã em que se levanta e olha desconfiado para seu caderno de memórias:

Levantou-se olhando o caderno de memórias à distância, desconfiado como se fosse algo independente, sorrateiro, sobre o qual seu controle era duvidoso: com frequência escrevia mais do que pretendia, enveredava pelo que não queria – alguém dentro dele, em desacordo com as ideias que queria claras, pegava-lhe a mão e o levava para outro caminho, para a proximidade, para a iminência de revelações que sentia, pressentia funestas (p. 34).

Um momento no qual a velha questão do outro na Literatura se manifesta. O mito do duplo, já abordado por tantos autores, pesquisadores e escritores, como Edgar Morin, para quem o duplo tem um papel importante na Literatura devido ao “caráter próprio da arte, que é um ópio que não faz adormecer, e sim, abre os olhos, o corpo, o coração para a realidade do homem e do mundo” (1997, p. 175), realidade que o protagonista de Chico Lopes não quer ver.

Na Literatura, e especificamente abordando um personagem, o duplo pode ser muito revelador, expondo com mais profundidade as muitas faces de um personagem, seus medos e anseios, sua outra metade que quer se revelar ou que está simplesmente abafada pela personalidade majoritária, primeira, assim como ocorre na cena sobre a escrita no caderno que citei acima.

Esse outro que escreve contra a vontade do protagonista não soa apenas como uma simples questão de identidade, mas de negação, negação contra revelações que não queria. Esse outro, mais corajoso do que ele, porque buscava ir mais longe e mais fundo nos seus sentimentos, causa medo pelo que poderia encontrar e revelar.

Em meio a isso, o protagonista vive uma possível perseguição – sobre a qual já me referi anteriormente. E esse homem misterioso que o persegue, somado a tensão diária sofrida, dão movimento ao texto que, por vezes, assemelha-se a uma trama de mistério e aos suspenses de Kafka e dos filmes noir.

Isso tudo o leva a ter uma vida intensamente agitada em sua cabeça, fora do mundo real, mas intimamente ligada a este pelas obsessões que gera e exterioriza em suas atitudes, o que nos auxilia a penetrar cada vez mais na mente e na personalidade desse protagonista. Em suas ruminações, constantemente se compara aos que o rodeiam, e à masculinidade deles, sempre melhor e maior do que a sua, como a de Russo, homem espaçoso, amoral, grande e forte, com quem o protagonista sempre conversa, sob a observação também soturna, silenciosa e perscrutadora de Cruz, o dono do bar, que se comporta como uma sombra ao fundo; reflexo exato do clima do livro e do mundo vivido pelo personagem principal.

Diante dessas relações, o protagonista está sempre pronto a ver o mal, o baixo nos outros, sua visão de mundo é sempre negativa e destrutiva, e quanto mais denigre a imagem dos personagens a sua volta, mais deixa transparecer a nós, leitores, sua própria face fracassada. Poderíamos ver nisso um exemplo do que diz Nietzsche, em Além do bem e do mal, sobre o homem que insiste em não ver qualquer lado bom noutro: “Quem não quer ver o que há de elevado num homem, olha tanto mais agudamente para o que nele é baixo e superficial – e com isso se revela” (1992, p. 188); porém, o narrador, semelhante ao protagonista, não nos dá outra ideia dos outros homens e mulheres que permeiam o livro, senão a de seres que também nada têm de realmente bom a oferecer. Seu lado elevado, como sugeria Nietzsche, não vem à luz, e tudo o que temos é um passar de gente amoral e problemática, o que pode estar mais perto do mundo descrito por Antoine Roquentin, em A náusea, de Sartre: “Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos, os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma monótona e interminável” (2002, p. 66); monotonia apenas quebrada, no caso do livro que ora comento, pela mente delirante do protagonista.

Corroborando para essa sua visão do mundo, o protagonista sempre se encontra sob a asa de uma mulher dominadora; primeiro sua tia, depois a dona da pensão, onde mora na cidade grande. Oprimido também por elas, é observado e julgado; o que pode ser o motivo de sua personalidade fraca, sempre reafirmada com palavras de peso contra si mesmo; o que faz dessas palavras, dos discursos na narrativa, profundamente marcantes e definidoras de quem é o protagonista e em que mundo ele vive.

Se observarmos mais atentamente veremos que quase toda palavra, frase ou sentença sobre o protagonista, pela sua voz ou pela do narrador, tem o peso do medo, da sofreguidão, da tortura psicológica, como no momento em que se descreve o baixar de uma porta de uma cafeteria, para onde o protagonista fugia, mais uma vez, do suposto perseguidor. O baixar da porta é narrado à semelhança de uma agressão pessoal, senão vejamos: “a morena do caixa lhe atirou um olhar de desprezo e impaciência; daí a pouco, as portas eram baixadas com um rangido que parecia a mais enfática ordem de expulsão” (p. 21, grifo meu).

As palavras pesam também quando se compara a um inseto, ainda referindo-se à perseguição que sofria: “tinham-no detectado, inseto de uma espécie diferente” (p. 22); ou quando se vê confortável, até onde essa palavra cabe-lhe, no bar do Cruz, diante Russo, porque julga inferiores como ele os que estão a sua volta; um momento no qual demonstra toda a sua amargura e frustração pelos que são mais fortes e arrogantes o bastante para passar por cima dos outros:

Sentia-me à vontade, apesar das ameaças no ar, porque a insignificância social do sujeito e do lugar era um consolo; não suportava ver homens fortes, altos, talhados para o sucesso e a sedução, obviamente à vontade no mundo injusto e abrindo caminho como se a potência lhes fosse um direito natural e displicente (p. 24).

Mas não só ele é desprovido de nobreza na narrativa, todos ao seu redor o são por motivos semelhantes. A loura proprietária da escola onde trabalha é descrita como uma bela mulher, porém possui “uma meiga sovinice todo fim de mês, na hora do acerto de seu ordenado” (p. 19); Cassandra é uma mulher rica, culta, mas oprimida pelo marido, que poderia aparecer a qualquer momento nas suas reuniões chiques e estragar tudo com suas grosserias de homem bruto e nada educado, o que ela suportava, e os colegas

Perdoavam, claro, porque eram dele o dinheiro, o casarão, a vida farta, repleta de livros e quadros famosos que adquirira, mas a simples presença do velho era para ela uma lembrança viva da dependência triste em que vivia (p. 68).

Há ainda dona Graça, “a velha com sua mania de chorar” (p. 08) e um filho que a abandonara; Russo, compositor fracassado, sem rumo, vivendo de restos e biscates; e a tia Ema, sempre cheia de cuidados exagerados e receios absurdos, como ele mesmo declara: “Deus, quantos medos, quantas advertências, que vida a dela!” (p. 80).

Mas o medo e o peso das palavras também estão fora das pessoas, estão no que cerca o “herói”, de traços naturalistas, no seu quarto, na casa da sua tia, com o crucifixo, a cômoda e o guarda-roupa, “uma predestinação, uma implacável decisão do Obscuro de fazê-lo prisioneiro de certas visões, de lugares imutáveis, de uma fixidez e de uma familiaridade nem por isso menos enigmática” (p. 87), como ele mesmo descreve. O peso está no Senhor Morto da procissão da Sexta-Feira da Paixão, esboçada como uma desolação, um fardo mórbido e deprimente, como se vê nessa minuciosa descrição:

o filho [Jesus morto no andor] o incomodava pela cruz, pelas feridas, por aquele suplício que seguiria sendo cobrado em submissão e dor indefinidamente. E guardava uma impressão de terror das procissões de Sexta-Feira da Paixão quando, seguindo a tia, as velas seguradas com invólucro de papel impermeável vislumbrava, no andor, aquele corpo do Senhor Morto, para o qual toda a culpa, toda a expiação, era pouca. Morto, que gravidade, que ternura, que peso para todos! – nunca uma morte com tantos ecos, tantas elegias, tantas carpideiras, tantos envolvidos. Era de fato um enterro, e ela, a Verônica – a conhecida soprano Iraíde, professora de um dos dois grupos escolares – bem garantia que não havia dor maior que aquela, parecendo cantar só para ele, ele que não fizera nada, que não matara ninguém, que ia cabisbaixo, que apertava a vela erguida e se esforçava para não bater os olhos de novo no andor e ver aquele corpo nu para o qual nunca se chorava o bastante. Viu, de repente, que alguém queimava o cabelo de uma das acompanhantes e que esta, desesperada, tentava apagar as chamas com tapas, ajudada por alguns – mas, nenhum riso, não havia comicidade alguma nas fileiras. Se ela morresse queimada, a partir dos cabelos, era o lugar para morrer, virar pedacinho de carvão em glória – uma alma, outra, salva pelo martírio (p. 84, grifo do autor).

Tudo o que ele vê na procissão são a cruz, as feridas, o suplício, a submissão, a dor; tudo na sua descrição da cena tem um papel importante na significação do martírio. A cantora parece cantar para ele, e não para o Senhor Morto, num retrato de seu mundo pequeno, onde ele é sempre o centro, o coitado merecedor de lamentos, como se comparasse a sua existência ímpia a do Cristo martirizado.

Dessa forma, cada parte do mundo é sempre suja pelo seu temperamento, como quando está de vota a sua cidade, numa bela noite estrelada, e ainda assim consegue ver algo negativo ali, em plena festa, ao invés de se soltar e aproveitar, “porque era severo demais consigo mesmo, sentia necessário mortificar-se, amargar-se ao extremo para forçar seu Destino a revelar-se”, e por isso, enquanto outros celebravam a bela noite, ele via “a cidade, muito plana, monótona, sem maiores atrativos” (p. 98). Como na festa, tudo em sua vida parece sórdido e insosso, desprovido de qualquer qualidade.

Esses detalhes todos, na festa e na passagem anterior, do Senhor Morto, ajudam-nos a entrar na mente do protagonista e a exemplificar um traço importante na narrativa: a minúcia das descrições. Essas descrições estão por todo o texto, as cenas e seus integrantes são sempre detalhadamente apresentados, desde que isto represente alta relevância para nos levar à maior compreensão do texto e envolvimento com este, como no caso da descrição de Russo, um personagem importante para a própria compreensão das características do protagonista e da inferioridade deste frente a ele, assim como para ilustrar a qualidade dos demais personagens que compõem o quadro de miséria moral que reside no mundo retratado. Assim, Russo é descrito de forma minuciosa e pouco favorável:

Russo tinha as unhas sujas, roupas engorduradas. Os olhos eram miúdos e desconfiados, buscando todo e qualquer movimento significativo ao redor com uma malícia e uma experiência a que não faltava um profundo fatalismo. No mais, dava uma impressão de complacência beatífica, sempre com preguiça ou um pouco dopado, sempre acordando tarde para aparecer no bar com a cara recém-lavada e seu cigarro na boca, nenhuma preocupação com trabalho definido, limpando as orelhas com palitos de fósforo, […]. Um rosto mais para quadrado, capaz de caretas elaboradas, mas agradável, não mais. Umas mechas de cabelos brancos (p. 13-14).

Entretanto, há algo mais, além da construção frasal e da escolha dos termos e palavras que contribui para o ar de distúrbio no texto: a forma da narrativa e do tempo não linear, repleto de flashbacks, em discurso indireto livre mesclado ao direto. A voz do narrador onisciente confunde-se sempre com a voz do próprio protagonista; os pensamentos deste invadem a narrativa a todo momento sem aviso de distinção de voz, entre narrador e personagem, como se o narrador exteriorizasse tudo o que se passa na cabeça de seu “herói”.

Isso dá versatilidade ao texto e contribui para o efeito de atropelo de pensamentos, de ideias sobrepostas, num fluxo de consciência que nos coloca dentro da mente do protagonista, deixando-nos ver o seu mundo pelos seus olhos e pela sua mente, colocando-nos na posição de espreita, sempre próximo, acompanhando tudo de perto, indo e voltando no tempo.

Porém, nem todos os personagens são manifestados da mesma forma profunda. Do protagonista vêm todas as informações do mundo ao redor; quanto aos outros, o narrador nos fala pouco, e eles mesmos não nos descrevem nada de si, são coadjuvantes de pouca voz, quase mudos, conhecidos por nós apenas pelo que nos diz o personagem principal e o narrador.

Outro ponto que se deve notar no texto e que auxilia na forma de manter a agilidade e o clima de constante tensão e confusão psicológica são os parágrafos entrecortados — semelhantes aos pensamentos atropelados do protagonista — que, muitas vezes, são quase independentes, ou seja, o parágrafo seguinte quase nunca é a continuação do anterior, mudando de assunto, e até mesmo de época, para somente mais à frente voltar a narrar o que antes se narrava. Forma que se assemelha a uma digressão do texto no próprio texto, digressão de eventos, de tempos diferentes que cortam a narrativa como uma lembrança surgida repentinamente e que não pode esperar para ser exposta depois, que precisa ser externada imediatamente.

Essa técnica narrativa, que também podemos chamar de divagação, é outro contributo para ambientar o leitor na mente do personagem principal, expondo sua mente aflita e, principalmente, funcionando como uma forma de retardar o tempo da narrativa. Como descreve Italo Calvino no seu texto sobre a rapidez na narrativa[ii]:

[…] na literatura, o tempo é uma riqueza de que se pode dispor com prodigalidade e indiferença; não se trata de chegar primeiro a um limite preestabelecido; ao contrário, a economia de tempo é uma coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mas tempo poderemos perder. A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer, antes de mais nada agilidade, mobilidade, desenvoltura; qualidades essas que se combinam com uma escrita propensa às divagações, a saltar de um assunto para outro, a perder o fio do relato para reencontrá-lo ao fim de inumeráveis circunlóquios.

[…] A divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a conclusão, uma multiplicação do tempo no interior da obra, uma fuga permanente; fuga de quê? Da morte, naturalmente, diz em sua introdução ao Tristram Shandy o escritor italiano Carlo Levi (1990, p. 59).

E é dessa forma que as divagações, as digressões, e as imersões de parágrafos e informações com tempos diferentes agem na novela. Recebemos uma informação do passado ou de outro momento para nos interar de algo ainda não exposto, mas também para retardar nossa chegada ao desfecho da saga.

Mas voltando ao protagonista, seu caráter triste e fraco, pouco afeito a evoluções comportamentais, do início ao final da narrativa, sem alterações, não nos causando relevos, espanto ou mesmo surpresa, pela falta de ações imprevisíveis, e do qual julgamos saber o que podemos esperar dele o tempo todo, sendo, portanto, bastante linear, pode nos levar a sinalizá-lo como um personagem plano, nas concepções criadas por E. M. Forster[iii]. Sobre isso, Forster diz que “o teste de um personagem redondo é se ele é capaz de nos surpreender de maneira convincente. Se ele nunca nos surpreende, é plano” (2004, p. 100).

No entanto, o protagonista de O estranho no corredor é bem caracterizado, mostrando-nos uma profundidade e densidade psicológica típica desse tipo de personagem, com uma grande vida interior e uma mente aflitiva, profundamente conturbada e ativa, no que diz respeito aos pensamentos, deduções e a seu estado constante de alerta, tendo assim grande focalização interna, o que o torna um personagem interessante — apesar de pouca ou nenhuma curva evolutiva no decorrer da narrativa — e um ponto central nesta, como deve ser um protagonista. Além disso, a atmosfera que o envolve dá vida ao texto, e, por conseguinte, a ele próprio, o que o torna um personagem esférico.

Dessa forma, as características do protagonista corroboram para que a coerência no texto se mantenha até o final, tendo em vista que se trata de um mundo onde os viventes são pachorrentos e de qualidade social inexpressiva; portanto, gestos silenciosos, poucas atitudes e passividade diante do mundo são características inerentes a esse mundo idealizado pelo autor, por conseguinte, são atributos que constituem o próprio caráter de seus personagens, e claro, do protagonista.

Assim, o texto se desenvolve num clima de vazio, de solidão em meio ao turbilhão do mundo, e o perseguidor do protagonista sem nome é talvez o “ente” mais próximo deste, o seu seguro no medo, só seu, por isso, a possibilidade de perder essa presença causava-lhe mais medo do que a própria perseguição misteriosa em si, daí não querer falar com ninguém a respeito do seu problema, não querer compartilha-lo e assim perder esse segredo que, de alguma forma, o mantinha mais forte e seguro, como ele mesmo declara: “Estranho, temia falar daquilo como se a perspectiva de livrar-se da sombra fosse mais triste que promissora” (p. 31).

Essa sombra, nome pelo qual ele define seu perseguidor, comporta-se como tal, uma sombra, pois sua aparição sempre se dá de forma nebulosa, vaga. Assim, ao mesmo tempo em que é bastante forte, marcante, assustador e presente, também é invisível a todos os demais. Nós, leitores, sempre sabemos de sua presença pela voz do narrador que descreve seu surgimento como se nos repassasse a visão do perseguido, como seus olhos, descrevendo-nos as características, os movimentos flutuantes do perseguidor, assim como os estados de espírito e aflição do perseguido, como no caso de uma “caçada” ocorrida na rua, quando o aparecimento da “sombra” se dá numa digressão: enquanto a cena descrita é um passeio em um dia de céu azul, com pombos arrulhando, muitas pessoas, carros, buzinas, uma vida seguindo normalmente, mesmo em meio a uma barafunda, o protagonista segue distraindo-se, até que, de súbito, sente-se vigiado, e tudo se transforma numa cena de perseguição digna de filmes de ação:

Notou que havia passos constantes atrás dos seus como réplicas e que, parando, estacavam também. Experimentava andar mais depressa, e o andar lá atrás se ajustava sem coragem para virar-se, para olhar de esguelha, sentiu a garganta se fechando, a língua seca, e a multidão, as caras, os corpos, esse fluxo absurdo, copioso, não poderia absorvê-lo, escondê-lo? […] ah, se tivesse a coragem de olhar para trás, poderia talvez dissipar a cisma, desfazer o temor, mas andava, andava, corria, tropeçava em corpos, desviava, não pedia desculpas, era xingado, buzinado, enfiava-se por uma rua menos cheia, […], perdia fôlego, os óculos não ajudavam, não, não, tudo menos parar (p. 31).

Na fuga, encontra um cubículo para venda de chocolates e, enquanto percebe o medo na vendedora que o olha com suspeita, vira-se e vê o homem, “destacando-se dos transeuntes pela maneira direta com que o fitava, dando a entender que não havia dúvida, que a coisa era entre eles dois” (p. 32). Porém, mais uma vez, nada acontece. A perseguição acaba em nada. O perseguido dar as costas, assustado, com a impressão de que uma mão gelada pode tocá-lo de leve a qualquer momento, e só, tudo se acaba sem contato real.

O trecho da perseguição é maior, com mais detalhes do estado do perseguido e de suas impressões sobre a “sombra”; no entanto, basta o que apresentei aqui para percebermos o medo, o pavor que tomou conta do perseguido que anda, foge, sem ao menos ter a certeza de que realmente era seguido: “ah, se tivesse a coragem de olhar para trás”, pensa ele.

A cena é veloz, conturbada, com pessoas, buzinas, esbarrões, barulho e pânico, descrita pelo narrador por intermédio de palavras e expressões como “depressa”, “andava”, “corria”, “tropeçava” e “perdia fôlego” para designar a fuga assombrada; e outras como “sem coragem”, “esguelha”, “a garganta se fechando”, “a língua seca”, “cisma”, “temor” para designar o medo em si; enquanto “multidão”, “fluxo absurdo”, “xingado”, “buzinado” para mostrar a balburdia que o rodeava, que ele ajudou a criar ao seu redor e que, ao mesmo tempo, estava dentro de si, na sua mente naquele momento. Todos, recursos que, dentro do evento apresentado, a perseguição, tornam-se semelhantes e ganham força para gerar o suspense desejado.

A cena, acima de tudo, aclara-nos a realidade do pânico, do estado de espírito, e do transtorno emocional em que vive o protagonista. Dia após dia se vendo perseguido, vigiado, aliado ao fato da sua própria derrota pessoal, da incapacidade de ser feliz, de se relacionar de forma saudável e produtiva com os outros e com o mundo a sua volta. A corrida descrita pelas ruas, fugindo de seu perseguidor, é a mesma que sofre internamente todos os dias ao fugir de relacionamentos, de novas aventuras, da tentativa de tentar, de mudar seu mundo. O pânico da cena acima é o seu pânico diário, é a sua falta de ar diária pela opressão que sente perante a vida. E a sombra sem nome, invisível — visível somente a ele, perseguido —, é uma espécie de alter-ego, algo que representa também, além do já citado antes, sua busca silenciosa por algo e sua invisibilidade para o mundo como alguém significante, real. Sua vida é semelhante a um pesadelo onde se vê apenas flashes de movimentos, de ocorrências, onde nada é claro. O que condiz também com a forma como o texto é narrado, tudo um pouco sonho-pesadelo, vago, com cenas entrecortadas, digressões, como vislumbres surreais.

A vida do protagonista é contada em retalhos de instantes, tendo em vista que o tempo é não linear como já comentei — não há uma continuidade imediata no parágrafo a seguir do que se dizia no anterior, como também já aludi anteriormente. Ao lermos, encontramo-nos numa espécie de prisma onde fatos de uma vida são projetados de vários lados para montar uma história e uma compreensão da mente do personagem principal e da vida vivida por ele e por seus semelhantes. Os retalhos funcionam e nós entendemos o que se passa, enxergamos todos os ângulos, ou vários deles, que o autor nos deixa ver, graças também à onisciência do narrador.

Mas, enfim, depois das perseguições e frustrações vividas na cidade grande, o “herói” retorna à sua cidade natal e à mediocridade de sempre: “que consolo poder voltar a um lugar tão pouco atraente, tão bom como esconderijo, anulação, fim de sonhos, de riscos!” (p. 80-81). A novela termina numa espécie de revelação sobre o que já suspeitávamos. Não chega a ser uma epifania, pois para isso precisaria haver uma mudança nos rumos da história a partir daí, o que não ocorre, já que estamos no final da trama. Mas o mal se revela, e a narrativa termina bem acabada, o que, segundo E. M. Foster, é algo difícil para a maioria dos escritores, que costumam não saber como finalizar seus textos:

Praticamente todos os romances enfraquecem no final. […]. Não fosse a existência da morte e do casamento, não sei como o romancista mediano concluiria seus livros.

[…]

Até onde se pode generalizar, é este o defeito inerente aos romances: eles desandam no fim; e há duas explicações para isso: primeiro, a perda do vigor, que ameaça tanto o romancista quanto qualquer outro trabalhador; segundo, a dificuldade que vínhamos discutindo. Os personagens foram escapando do controle, estabelecendo fundamentos e recusando-se depois a se edificar sobre eles, e então o romancista precisa trabalhar pessoalmente, a fim de terminar sua tarefa a tempo. Finge que os personagens estão atuando para ele. Continua repetindo seus nomes e usando as aspas. Mas os personagens ou já forma embora ou já morreram (2004, p. 115-116).

Isso não ocorre com O estanho no corredor. Não há morte, nem casamento no texto de Chico Lopes, e seus personagens, inclusive o protagonista, não escapam. Há, claro, o fato de que o livro não é um romance, mas uma novela, com menos personagens para administrar e uma história mais curta do que um romance; porém, passa pelas mesmas dificuldades de um texto mais longo. Mesmo um conto pode fraquejar e perder força ao final. Mas nessa novela, ao chegarmos ao seu desfecho, temos a sensação de que acabou como deveria acabar, sem final mediocremente sentimental ou algo que o valesse.

E o que faz com que nos mantenhamos ligados ao texto, nesse mundo sombrio, parágrafo após parágrafo, deve-se muito, além de tudo o que já comentei, ao ritmo. Este é algo bastante marcante no texto. O tempo segue contínuo prendendo-nos à história sem esmaecer. Isso por que o ritmo é algo fundamental num texto, seja em prosa ou verso. Como diz Italo Calvino: “É um segredo do ritmo, uma forma de capturar o tempo que podemos reconhecer desde as suas origens: na épica por causa da métrica do verso, na narrativa em prosa pelas diversas maneiras de manter aceso o desejo de se ouvir o resto” (1990, p. 51). Desejo que mantemos até o fim dessa novela.

Dessa forma, acompanhamos a saga do sofrido homem sem nome. Fomos levados lentamente através de seus olhos e dos do narrador a vivermos no centro de um mundo pequeno e viciado, asfixiante e fantasmagórico que consome o “estrangeiro” personagem que se esconde, corre e vaga pelo O estranho no corredor.

A novela de Chico Lopes revela o submundo da mente de alguém acuado pelo medo herdado dos excessos de cuidados de sua tia, dos escândalos e fraqueza de seu pai, da loucura de sua mãe e talvez, sobretudo, do peso de um mundo feito para os fortes, arrogantes e subjugadores dos mais sensíveis. A novela expõe alguém que vive marcado pela submissão ao caos que é sua mente, vivendo à margem e à sombra do mundo — à semelhança de seu perseguidor —, como um carrasco inconsciente de si mesmo, sabotando-se, numa vida que vemos frágil e rarefeita através das frases, dos adjetivos e dos comportamentos adjetivados, da minúcia com que características de personagens e lugares são-nos apresentadas, das imagens fortes, recursos que são a vida do texto, e este a morte e o vazio da vida.

 

 

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[i] A partir deste ponto, as referências ao livro O estranho no corredor, já previamente indicadas no corpo do texto, serão identificadas apenas com o número da página.

[ii] Este texto é parte integrante do livro Seis propostas para o próximo milênio (1990); textos elaborados para fazerem parte do Ciclo de palestras intituladas como “Charles Eliot Norton Poetry Lectures” que seriam proferidas pelo autor no Italo Calvino, ao longo de um ano acadêmico na Universidade de Harvard, em Cambridge, no estado de Massachussets, nos Estados Unidos. Mas não foram realizadas devido a morte do autor pouco antes de seu início.

[iii] Cf. E.M. Forster. Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. 4. ed. São Paulo: Globo, 2004, p. 91.

 

 

[Texto publicado na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ, em agosto de 2013.]

 

 

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Referências

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FEHÉR, Ference. O romance está morrendo?(contribuição à teoria do romance). Trad. Eduardo Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. 4. ed. São Paulo: Globo, 2004.

LOPES, Chico. O estranho no corredor. São Paulo: Ed. 34, 2011.

SARTRE, Jean Paul. A náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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William Lial é poeta, cronista, contista, ensaísta literário, mestre em Literatura Comparada e autor dos livros Sombras (2001), Noturno (2003) e O mundo de vidro (2005). Também contribui com jornais e revistas literárias e possui um blog sobre literatura que leva seu nome: http://williamlial.blogspot.com. Contatos: wlial1208@gmail.com.




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