A permanência de um instante


Juliana Diniz e a permanência de um instante na ausência da palavra: “O Instante-Quase”

o-instante-quase-livro

.

A expressão que dá título à coletânea (doze relatos com nomes de mulheres) O INSTANTE-QUASE (Editora 7Letras) já aparece no texto de abertura “Lúcia”, mas é emblematizada em “Lindalva”: uma noiva abandonada que percebe que a vida não passa, apesar da sua complexidade, de um “uni duni tê” de afetos e de escolhas (“O pai começa a recolher os restos de tecido em silêncio, sem perturbar o transe religioso da filha, atento ao olhar vidrado de Lindalva que destrói, ponto a ponto, sem dó ou indecisão, com golpes metálicos de tesoura, a lembrança tátil de um vislumbre de vida”). Por tanto, o admirável livro de estreia da cearense Juliana Diniz nos oferece um painel em que a sombra do que poderia ter sido paira sobre o que é.

Até nos estratos mais miseráveis da sociedade, ela vasculha as alternativas da existência. Um dos pontos altos de O INSTANTE-QUASE, “Perpétua”, é a história de uma mulher oriunda do sertão mais castigado pela seca que vai morar com o marido nas palafitas de Manaus, cercada pelo rio imenso e a mata (“Deu-se conta que a morte poderia acontecer de um susto, sem que aquele mundo farto de tanta vida notasse que ela deixou de existir”).

Juliana Diniz trabalha tanto com o realismo direto, quanto com o alusivo, o onírico (há um imaginário písceo explorado em “Perpétua” e em “Natália”, o qual se passa em outra classe social), o alegórico. Ou seja, ela sabe urdir “estórias” e também encontrar a linguagem lapidar para cada uma delas (só duas me passaram a sensação de fracas, mal desenvolvidas: “Gabriela” e “Marina”; em compensação temos momentos excepcionais como “Maria”, “Hilda” e “Olívia”: “Observo a janela aberta para o vazio e percebo que restamos apenas nós neste quarto estranho e sem lembranças, encastelados, quase desistentes, quase amantes, construindo a permanência de um instante na ausência da palavra”). Suas ficções curtas são tão caleidoscópicas que parecem romances encapsulados, na mesma linha de um mestre no gênero, a canadense Alice Munro (Nobel de literatura de 2013).

Um dos aspectos mais impressionantes dessa sabedoria textual numa autora tão jovem é a mistura que faz do arcaico, do recôndito, com os signos da modernidade: por exemplo, em “Lúcia” – conto no qual uma filha descobre a vida alternativa que a mãe poderia ter tido com o dono de um casarão antigo e aristocrático –; ou então em “Auxiliadora”, cuja protagonista é uma beata que se escandaliza ao descobrir que o juiz a quem serve fielmente durante décadas utiliza chats eróticos durante o expediente e encomenda viagra para seus encontros com uma fogosa amante (Auxiliadora planejará uma terrível vingança, trocando as pílulas de viagra por pílulas para pressão).

O Ceará já conta com contistas de peso, como Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro e Raymundo Netto. Agora Juliana Diniz com sua prosa avassaladora vem mostrar aos pessimistas de plantão, sempre anunciando a morte da literatura, que a ficção está mais viva do que nunca. Nosso panorama literário encontra-se em ótimo momento e provavelmente ela será uma das suas principais figuras.

 

.

.
[Uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de setembro de 2016]

 

 

 

 

 

 

 

.

Alfredo Monte é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




Comente o texto


*