Conversa sobre a escuridão


 

– A questão é a escuridão. Depois haverá luz, um excesso de luz. Mas até chegar lá tudo é muito escuro. Não é fácil suportar. Camadas e mais camadas escuras. Não é possível separar, na verdade. Tudo muito escuro mesmo. Não se tem a sensação de estar num ou noutro lugar. Sequer se tem sensação. Sequer se sabe estando. Sequer se reconhece um lugar.

– Que isso?!

– Sim. Há uma unicidade absoluta. A caverna da caverna. Não é fácil explicar. E isso aumenta terrivelmente o pânico. Algo como o pânico. Não se pode dizer que é pânico. Não há mais medo de que algo aconteça. A caverna da caverna é o inexplicável. Tudo se reduz ao irredutível. Não se consegue saber. E assim tudo está dentro. E assim tudo está fora. Está simultaneamente dentro e fora. A porta da porta da porta.

– Que coisa!

– Isso mesmo. Mas não se pode passar. A passagem é uma desrazão. Não será por ali que chegará a luz. Aliás, não se chegará a luz por lugar nenhum. Haverá luz depois da escuridão. Não como algo a que se chegará. Haverá luz por si mesma. Tal qual a escuridão autoimposta. Não se deseja, impõe-se. Primeiro a escuridão, depois a luz. Dois fenômenos que se impõem naturalmente. Não há qualquer possibilidade de controlá-los.

– Moço!

– Daí a impotência do vivente. Daí o sentimento de estultice. Tanto tempo perdido entre ideias! Antes ter sido um cavalo. Deambulado pra lá e pra cá. Corrido, deitado na grama, pastado. Não teria desejo de luz. Não teria, por conseguinte, medo de escuridão. Antes da luz e da escuridão. Depois, claro, não sentiria nada.

– Situação complicada!

O problema era chegar a esse depois. Nada mais inatingível. Suceder-se-ia ao antes e ao durante. Acontece que a escuridão do durante é insucessível. Não é um estágio, mas um estado. Trata-se de uma zona estável. Nada suscetível a instabilidades. Como tal, uma lógica. Como tal, uma ordem. Como tal, o significado.

– Sei.

– Não há saída no significado. Porque é ordenador. Porque é lógico. Daí o sentimento de opressão. Esse sentimento que se dissipará. Óbvio, não haverá lugar para isso. Aliás, não haverá lugar para nada. Sequer haverá corpo. Sem esse lugar os sentimentos ficam desabrigados. Ficam sem sentido.

– Como assim?

– A escuridão é um estado intransitivo. Sua razão é autossuficiente. Não cabe discussão sobre sua natureza. Trata-se da própria natureza exercendo-se. Não há perguntas, tampouco respostas. Há a certeza do é. Tudo mais é silencio. Converte-se em silencio. O que era desejo de dizer apaga-se. Não se acenderá tampouco um dia. Não haverá dia mesmo com a luz. Dia e noite não mais acontecerão.

– Muito doido!

– A luz, quando se impuser, será também escura. Desprender-se-á da escuridão. Tal qual a fresta da sombra da fresta. Por isso a questão é mesmo a escuridão. A onipresença disso. A onipotência disso. A impossibilidade de sair disso. Doravante, o mundo tornado isso.

– Verdade?

– Não porque se está cego. Não se consegue enxergar mais nada. Nem aqui, nem lá. Nada mais é nada porque tudo é. A aniquilação das diferenças. Ninguém mais é ninguém. A aniquilação das identidades. Todo mundo é todo mundo. A aniquilação dos lugares. Todo lugar é aqui. A aniquilação da memória. Tudo é esquecimento.

– Que isso?

– E já não é possível reclamar. Não é possível protestar. Não é possível lutar por justiça. A escuridão se impõe como lei. Trata-se de obedecer ou obedecer. O estado manda. Obedece quem tem juízo. E ter juízo é obrigatório. E ter juízo implica internalizar a escuridão. Ter um juízo escuro sobre si.

– Nossa!

– Adentrar a escuridão. Encavernar-se, desiluminar-se. Até tornar-se estado. Até deixar de ser ser. Até coisificar-se. Até institucionalizar-se. Assim mesmo a escuridão se impõe. Não se sabe mais o que é o quê. Perde-se a noção do real. Vida e morte se tornam indistinguíveis. A escuridão é a morte. Tão natural que parece que é a vida.

O carro, que tinha saído da Universidade, chegou até a portaria de um condomínio.

– Que aula, professor!, disse o motorista sorridente.

– Só uma reflexão urgente, meu caro amigo, sobre o nosso tempo -, respondeu o professor ajeitando o óculo.

– Não entendi nada, mas deu pra entender um pouco. Vem cá, o Sr. é professor de que mesmo? – perguntou o motorista.

– De desilusão! – disse o professor, batendo a porta do carro e saindo apressado.

– Cada figura! – suspirou o motorista manobrando o carro.

 

 

 

 

Anelito de Oliveira (1970) publicou vários livros em gêneros discursivos diversos, como A menina chinesa (ficção, 2019), Do sigiloso (ensaio, 2021), Traços (poesia, 2018) e Os acampamentos insustentáveis (prosa, 2019). Edita atualmente a Revista Sphera (www.revistasphera.com) e dirige o programa A partilha do poético no Canal desse periódico no YouTube. Esse conto faz parte de uma coletânea de novas narrativas a ser publicada brevemente. E-mail: anelitodeoliveira@lwmail.com.br




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