Como se Deus não jogasse dados
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Notícia das mais promissoras envolvendo a ciência feita no Brasil ganhou os cadernos de cultura, nos últimos dias. Ela é repercutida pela excelente revista Pesquisa & FAPESP em sua última edição, de abril de 2017. João Moreira Salles acaba de tornar público que está investindo parte de sua fortuna pessoal no incentivo da pesquisa científica. Criou o Instituto Serrapilheira para esse fim. Um jovem geneticista foi trazido da França para o cargo de diretor. Um engenheiro de materiais foi trazido da UFSCAR para presidente do conselho científico. Este é formado por um outro geneticista, um outro engenheiro, um matemático, um físico e um químico. O belo nome Serrapilheira alude à forração de folhas que cobre e fecunda o solo das florestas.
A ideia é oferecer à ciência o mesmo apoio que lhe trazem as agências públicas de fomento, mas com um diferencial: dar liberdade total de ação aos pesquisadores selecionados, deixá-los sonhar sua pesquisa por um certo tempo, sem os relatórios, pareceres e cobranças costumeiros. Trata-se de uma aposta no rigor com margem para o risco, sem o qual nada pode mudar realmente, como mostra a própria história da ciência.
João Moreira Salles vem assim posicionar-se formidavelmente como mecenas no país em que milionários têm se posicionado como corruptos. Está sensibilizado com o pouco apreço de que as ciências puras e duras gozam, de modo geral, e particularmente entre nós, que não temos nobelizáveis. Afinal, raros são aqueles que citam cientistas entre seus ídolos, não há ficções em torno de heróis da matemática nem ninguém quer ser cientista quando crescer. Há que se mudar isso para que a ciência esteja no horizonte e no imaginário das pessoas, principalmente dos jovens aprendizes, como qualquer outra disciplina do espírito, pensa ele, com razão.
O propósito é belo, bom e justo. Mas há um problema aí. A ideia vem baseada na perfeita separação entre as ciências humanas e as ciências exatas, bem no momento em que a Física contemporânea, que é probabilística e cultora do princípio da incerteza, assume o acaso, faz-se poética e se preenche de conceitos que são metáforas, como, por exemplo, “anãs amarelas”, “buracos negros” e “morte de estrelas”. Mais e melhor que isso, envolve a questão da verdade com critérios de beleza e se põe a tomar como verdadeiras as equações elegantes. A propósito, as palavras que mais recorrem no livro Sete breves lições de Física, do professor italiano Carlo Rovelli, que conseguiu um surpreendente best seller para leitores cultos, são “belo” e “beleza”.
Lá atrás, no século IV grego, a ciência era a filosofia e a filosofia não se separava completamente da poesia (o Poema de Parmênides) nem da dramaturgia (os diálogos de Platão). Sem acepção das artes, Newton e Francis Bacon eram ditos filósofos da natureza. Os poetas antigos tinham cosmogonias, máquinas do mundo, como a de Lucrécio (De natura rerum), a de Dante, a de Camões. Mais adiante, Edgar Poe incluiria em sua obra um poema cosmogônico intitulado Eureka e subintitulado Ensaio sobre o universo material e espiritual. Mais adiante ainda, Haroldo de Campos, que escreveu um A máquina do mundo revisitada e lançou pontes entre Mallarmé e a Física quântica, discutiria ciência com um professor da USP. Há um registro em vídeo dessa prestação exemplar, pertencente à série Diálogos impertinentes, que a PUC de São Paulo realizava, nos anos 1990, em colaboração com a Folha de São Paulo.
Na mesma linha generosa, Deleuze estabeleceria equivalências entre o artista, o cientista e o filósofo, trabalhando com os afetos, perceptos e sensações. Desta outra intervenção também há registro oral: o depoimento em vídeo Abecedário Deleuze.
Isso não termina nunca. Desde algum tempo, em Nova York, há cursos de Física para poetas e vice-versa. O astrônomo Marcelo Gleiser os noticiava em sua coluna da Folha de São Paulo e chegou a trazer o modelo para cá. Se tivesse feito um desses cursos, o brilhante João Moreira Salles, cujo portfólio já inclui a produção da obra de Eduardo Coutinho e a assinatura de alguns documentários que são a prova mesma da existência de um grande cinema no Brasil, talvez tivesse podido pensar em chamar filósofos da ciência e especialistas em poética, senão talvez semiólogos, para o seu conselho de doutos. O que faria dele um ainda mais formidável rennaissance man.
Nascendo um pouco apertado no campo das exatas, o Serrapilheira – que temos mais é que saudar – infelizmente comporta-se como se Deus não jogasse dados e a vida não fosse um milagre feito também para poetas.
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Leda Tenório da Motta estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva. É Professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora do CNPq nível 1, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tradutora e crítica literária, com passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros. Traduziu, entre outros, O Spleen de Paris de Baudelaire e Métodos de Francis Ponge, o primeiro livro deste poeta a sair no Brasil. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso, que recebeu o Prêmio Jabuti, e Roland Barthes- Uma biografia intelectual (Iluminuras), finalista do Prêmio Jabuti. Lança em 2015, pela Iluminuras, Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam. E-mail: ltmotta@pucsp.br
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