Nas cinzas da névoa popular


Sobre Tempo & Magma , Jean Luc Godard e a Rádio Saudade FM

 

Saudemos o retorno da Musa  Rara, a ideia desta coluna desde o início foi a de ser um eco & atualização da Geleia Geral de Torquato Neto, mas hoje  somos habitantes das cinzas da névoa popular e por isso, vamos tratar da vida fora dos guetos e outros guetos, da que  ainda não é a grande expansão,  a grande expansão é para dentro da mata, a preparação para o morrer, longe do excesso de labirintos na nuvem do não-saber, notações  e anotações nos fios misturando informação com conhecimento, os fios emaranhados de um jeito que nem o mais sábio chinês consegue mais separar o tal do que não é o Tao. Nosso primeiro alvo é a quietude como  resultado do nomadismo espiritual , a verdade chegada na casa nomeada Éden África , o tempo em Senegal do poeta e filósofo do cantar Tiganá Santana resultou no disco duplo Tempo & Magma, se eu fosse  você iríamos todos para o começo do mundo, Tiganá decanta seu violão e diálogos florescem com textturas percussivas que já eram a base de seu estilo peculiar de tocar visibilíssima em The invention of the colour e antes. Se os deuses abandonam nossa casa que nossos pés saibam encontrar a morada anterior dos deuses, diz o ditado escrito no vento, este disco é resultado de uma busca, de uma travessia que ouso chamar de mística, Tiganá Santana não é um músico do espetáculo, possui sutilezas que o ligam a uma amálgama de tempos e lugares que vão do  Senegal até a beira de matas não nomeadas e rios de águas cristalinas no caminho, é o caso de um músico heideggeriano, sim e é neste descampado onde começam a brotar pequenas árvores da quietude, da fé no ser e em seu rio heraclitiano, é daí que vêm o canto de Tiganá Santana.

 
Adeus à Linguagem de Godard se insere dentro das pesquisas com o cinema como pintura em movimento que ele desenvolve desde HISTÓRIAS DO CINEMA , seu filme-ensaios,  JLG inventou o cinema-ensaio, filmes para ler enquanto vemos um pensamento se movendo na tela, eis a equação, aqui trata-se de um cão imune ao pensamento e conceitos são projetados nele e simplesmente batem no corpo do cão e caem por terra. É o mais perto que o cinema chegou do esgotamento e diluição matemática da linguagem do pouquíssimo comprendido lógico e  místico Wittgenstein, calma com o andor, Leonor. Além do cão há o casal ou melhor envolto no cão que se converte em centro efetivo do discurso fragmentado do romance do casal, romance que é narrado por seu entorno e não pelo que ouvimos que se torna apenas uma música superposta por cima da música real, Godard é um VJ também e trabalha com o conceito de texturas imagéticas a partir do cansaço da língua, curiosamente e de modo enigmático seu filme dialoga com o FILME-RIO de Daniel Kairoz,  vale a exibição simultânea de um ao lado do outro. Daniel kairoz é de certa forma um personagem de Godard e Adeus á linguagem é uma ode ao cão de Luciano em uma espécie de Diálogo dos Mortos cifrado pelos corpos que se misturam com a paisagem, no final do filme Jack London e John Ford se encontram em uma cena que fala do eterno retorno da humanidade através do que não é humano.

 
Eu não durmo sem beber na águas desse  Rio Letes às avessas chamado Rádio Saudade FM, é um fenômeno que perdura por décadas este da predileção pelo passado em detrimento do que é realizado no tempo em que estamos vivendo, não nos lembramos como era a vida antes dos celulares e notebooks mas louvamos a música que tocava nesta época, é como se a presentificação de canções populares nos levasse até uma etérea leveza diante do peso da experiência enlameada e pantanosa de vivermos hoje. Atravessamos o pântano que se mistura a que nos tornamos no meio da nossa insônia diurna de conectados permanentemente desde que seja possível o deslocamento sensível  proporcionado pelo enlevo distraído de colocar os ouvidos nessa enorme concha radiofônica enterrada na história de tudo o que perdemos.

 

 

 

 

Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008); Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010); O Céu no fundo do mar (Dulcinéia Catadora,2009); A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011), entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com




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