Poesia da Poesia
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Já a partir da estreia, com A respiração das vértebras (2001), João Rasteiro conquistou um lugar de destaque na poesia portuguesa contemporânea. O leitor brasileiro, sobretudo o habituado à poética do rigor e à voz inenfática, postas a circular por João Cabral (tendência dominante, entre nós, nas últimas décadas), talvez estranhe a voluptuosidade com que os versos brotam, sem cessar, da poderosa imaginação verbal do poeta deste Tríptico da súplica. Tudo aí parece regido pelo ímpeto desabalado das sensações em liberdade e das associações inusitadas, quase sempre de forte impregnação visual, verdadeiro magma de palavras onde por vezes fulguram iluminações como “a boca das chuvas”, “a ortografia das águas”, “a morte é lilás como o amor” ou “A cidade meteu-se toda para dentro / o sexo descoberto / transformada em réptil de hálito branco”.
A “chave”, se for preciso alguma, é o leitor deixar-se levar pelo aliciante fluxo de imagens e não fazer questão de cobrar, dos poemas que vai lendo, o sentido enigmático da torrente que os enforma. A poesia de João Rasteiro pede a conivência do leitor que se deixe entusiasmar (estar com um deus dentro, como reza a etimologia), disposto a enfrentar a vida como aventura do espírito, e não a objetividade do leitor analítico, distanciado, em sua busca obsessiva de explicações racionais. O resultado será vivenciar “a profecia dos poetas eclodindo como castigo celestial”, sem receio de proferir “a blasfêmia redentora da utopia”.
Este Tríptico, já se vê, deita raízes na tradição bíblica do Eclesiastes e do Apocalipse de São João; flerta com o romantismo visionário de um Blake ou um Novalis; e não esconde sua afinidade com esses “chercheurs d’aventures” que são os surrealistas, empenhados em desvendar, mais do que uma nova poesia, o novo homem – “criador e criatura” – prestes a emergir das ruínas desta civilização castradora.
Se ainda assim o leitor insistir em encontrar um sentido que lhe satisfaça a necessidade de explicações, não será difícil. A despeito da variedade de suas referências e alusões; a despeito da variedade de seus timbres e soluções formais; este Tríptico (na verdade, três livros autônomos, reunidos num só volume) incide, nas suas três seções, em um tema único: a própria poesia.
João Rasteiro nos dá um marcante exemplo de poesia da poesia, daquela espécie que Heidegger, a partir de Hoelderlin, diagnosticou como a mais necessária em “tempos de penúria” como o que vivemos. E no centro irisado de sua combustão verbal, a figura do poeta, a pregar o “desregramento de todos os sentidos”, com vistas a propiciar a “verdadeira vida” sonhada por Rimbaud.
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Poemas do livro “Tríptico da Súplica”, de João Rasteiro [Escrituras Editora, São Paulo]
A Divina Pestilência
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1.
Os poemas virão inclusos
quando afluir o orvalho,
chegarão antes do pecado.
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2.
O seu domínio é infinito:
longa é a garganta do medo,
cego o coração do sussurro!
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3.
No princípio era a doçura
e a palavra ousou a lascívia.
Por ela se fará todo o flagício.
4.
A matança é uma inferência,
nunca a criação permanecerá
em sua aparente invisibilidade.
5.
O que for escrito do hálito
será cumprido – a dilecção
é a sua extensão mais pura.
6.
Sinto como a estrita cegueira
invoca o mais recôndito lugar
para que nada solidifique o medo…
7.
Como decifrar a ira do clarão
se é do eixo da luz que cego
e da soldadura que agora rezo?
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8.
É o prímulo espaço encantado:
as mágicas colinas sem nome
entre as ígneas e adúlteras vozes.
9.
Na carne a pestilência do corpo.
Após o curtume a imortalidade,
o perfume da fala ou da morte!
10.
O poema serve de mortalha,
ignoro de que ocultos metais
é constituída a arte dos dedos .
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No Prelúdio das Rezas Pagãs
Com a morte, também o amor
Ao valter hugo mãe
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Um dia, o excelso dilúvio do sangue
queimará a noite, também os livros
jazerão sós sob as túnicas de Istambul,
com a morte, também o amor devia
acabar – num único e violento segredo.
A melancolia esvoaçará dos orifícios
expiando a culpa, as criaturas cinzentas
comover-se-ão fartas pelo calor do tacto,
perecerão sozinhas – como a sua progénie.
E haverá a celebração dos precipícios
urdindo o beneplácito das heras, pois a flor
é um corpo excessivamente fresco e mortal,
o sangue, na primavera, é mais vermelho
que o barro nu – a terra é um lírio dobrado.
Porque amor e morte têm existência própria
convertem-se, mas os seus monstros subsistem
e subsistirão recolhidos à agonia do tempo
amando-se pelo ventre – até ao fim do mundo.
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No ano da morte de José Saramago
A Pilar del Río
O coração aquece o suco prenhe dos cavalos
e de outros animais. Apenas para iludir
ou amedrontar as pequenas memórias do amor.
É aí nesse espaço e não em todos
os caminhos do pó e da lama infernais,
que Blimunda e Baltazar acariciam o pojo
como dois desnudos seres disputando o sol
pela boca dos mais secretos desejos,
em busca de todos os líquidos silêncios
do templo e dos múltiplos espaços inaudíveis.
Esses que traçam a sua própria peleja
de vozes. Um deus cheio de pústulas doiradas
pois o fogo imita nos corpos a eternidade da lágrima
que se oculta na sombra inclinada dos círios.
O narrador chega do branco horizonte dos lugares
da azinheira, porque ainda não queria morrer
antes das colheitas das águas frescas
que já não desaguam. Mas Blimunda disse: Vem!
E a sílaba acreditou que a morte é lilás
como o amor. E que se há-de perdurar pelo clarão
de coisas assim. Eternamente lilases. A sílaba possível!
Então o narrador despediu-se das palavras rubras,
abraçando-as uma por uma, até a noite ser queimadura.
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Iniciação
Ao António Vilhena
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A cidade dobrou-se para o rio
e o seu útero irrompeu
sobre as águas
rosa a rosa
apoiada por bilhas vivas
auríferas
sopro a sopro
prenhes.
Soube-se então que renascia violenta
entre mandíbulas alagadiças
como a inflexibilidade
da borboleta
acerba.
Em agonia precipitaram-se sobre as casas
e coseram-se com a cal
pelo coração irreconhecível da pedra.
Era uma cidade como um sismo
ininterrupto
atada às víboras do milagre
extremo
entre rosas e pão
incandescente e granítico.
A cidade meteu-se toda para dentro
o sexo descoberto
transformada em réptil de hálito branco.
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Diacrítico
VIII
.a arte mais sublime de trespassar a morte é descansar num nevoeiro a arder de sangue. e mastigar a ferocidade das abismadas paisagens com a zoologia aberta do amor. na agonia da pura inocência. olhar o gume da lâmina prateada e amá-la exalando a sua boca atulhada em espaço lírico. no ventre suculento das algas a renúncia do torpor é apenas a entrega incólume da candura e da vulva viva porque nos incutimos erectos. o fingimento que evoca a mulher sufocada nos ganchos quando o poeta faz de homem sábio. a magnólia cheirando a incesto nas palavras faustosas. cada golpe luminoso é a acutilante pujança das orquídeas negras do nosso próprio eco. a exígua morte.
XIII
.o antigo arquitecto das almas andou de cidade em cidade porque é um desvairado. rastejou subjugado sem que uma delas o acolhesse em seu divino e surreal canto. filho unigénito da oração fraccionada em seu totalitário desvario apenas procurou um espaço ou subúrbio de paisagem. nele descansa toda a eternidade das borboletas azuis contaminadas pela antiga estrela do sol. esperou só a apoteose do prodígio do verbo e a luminescência sobre os seres que respiram pelas artérias. e pereceu na ausência da abundância expelindo o derradeiro halo do vómito. o excremento ácido e avassalador das mariposas ofuscas de luz. as suas raízes alastram agora pelas frechas sanguíneas do asfalto. e aí desabrocham hoje pragas raras de gramíneas. a blasfémia redentora da utopia.
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[Outros poemas do autor: http://sites.google.com/site/joaorasteiropaginapessoal/] [Blogue do autor: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/]
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Carlos Felipe Moisés, São Paulo, SP, em 1942. Estreou como poeta em 1960. Dois anos depois, ao mesmo tempo em que ingressava na Universidade de São Paulo, como aluno de Letras, já era colaborador regular do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de São Paulo, e outros órgãos de imprensa, como crítico. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas, tornou-se professor universitário, tendo ensinado teoria literária e literaturas de língua portuguesa na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto (1966-68), na PUC de São Paulo (1967-1970), na Universidade Federal da Paraíba (1977) e na USP (1972-1992). Passou várias temporadas no Exterior – em Por¬tugal e na França, como bolsista da Fundação Gulbenkian, e nos EUA, como poeta resi¬dente em Iowa City (1974-75), e como professor visitante na Uni¬versidade da Cali¬fórnia, em Berkeley (1978-1982), e na Universidade do Novo México (1986). Seus livros de poesia receberam alguns prêmios, entre os quais o Governador do Estado de São Paulo (Carta de marear, 1966), o Gregório de Mattos e Guerra, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Círculo imperfeito, 1978) e o APCA, Associação Paulista dos Críticos de Arte (Subsolo, 1989). Tem proferido conferências e participado de simpósios e congressos, nacionais e in¬ternacionais, como poeta e como crítico. Sua obra inclui poesia, ficção, ensaio, tradução, litera¬tura infanto-juvenil e edições comentadas de poetas modernos e contemporâneos. E-mail: carlos_moises@uol.com.br
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22 fevereiro, 2012 as 19:48