Manifestos


Manifestos ou uma pequena consideração sobre a chegada do presente, primeira parte seguido de Três Prefácios

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A nostalgia do futuro era a febre que dominava o começo do século, de 1900 até a segunda grande guerra, todos estavam siderados pela ideia de que o futuro era o centro ontológico, nos anos 60 até o final do século XX , a Nostalgia do passado era o vetor, seja ele um passado edênico, bucólico e idílico (nos hippies por ex.) ou um passado escravocrata e feudal (nas elites dominantes, na burguesia conservadora de ultradireita e etc.), o que vemos nos recentes acontecimentos que desencadearam as várias marchas de protesto em todo o Brasil, é o começo da morte da Nostalgia e a chegada do presente, finalmente chegamos a um ‘tempo presente’ que inaugura um lugar sem centro como uma ontologia, algo muito parecido com a Internet, mas muito mais complexo do que ela. Condenados ao atravessamento de um vazio que ocupa o lugar de uma profecia , um vazio que é como uma partitura em branco para a criação de um novo status para a chamada ‘ordem social’ que tem na cartografia da rede seu símile e nas instituições seculares seu simulacro.

Podemos dizer que o ‘Brasil não é mais o País do futuro’ porque todos estes movimentos de indignação e desespero negam um devir conhecido para inaugurar o vazio criativo de uma presentidade infinita. O pensamento de classe (da classe dominante principalmente) é extremamente redutor diante da complexidade do acontecer espontâneo de todos estes precisos gestos de negação devidamente registrados para uma avaliação que nos escapará sempre que tentarmos enquadrar estes gestos, sejam eles, os óbvios gestos de vandalismo ou seus opostos, gestos que atravessam todas as classes sociais e precisa ser analisados fora da linha podre do pensamento dicotômico, econômico ou das linhas categóricas da sociologia.

(Continua na próxima coluna)
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Abaixo três textos escritos a pedido dos autores para seus novos livros, um deles já está publicado e consta no livro de ensaios ‘ Esquinas do Mundo’ de Alessandro Atanes ( Dobra Editorial) , outro o para Mariana Ianelli foi rejeitado e não estará no livro e o de Paulo Carvalho foi aceito e estará no livro.

 

1.

Para o livro de crônicas de Mariana Ianelli:
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, são os anjos dos fatos por isso é silencioso o infinito.

A vida humana é como um Sol , seus raios interiores tocam as coisas  e os fatos , deixando neles  esta luz que só percebemos quando ela está em seu estado natural de sonho invisível , fatos e coisas ao serem  transportados para a dimensão das palavras se tornam mais silenciosos, este é o mistério que pode envolver uma carta ou um livro, principalmente um livro como este, onde os fatos ganham não apenas a cor invisível da dimensão das palavras, também se emancipam  e procuram o teor sagrado do indizível que paradoxalmente foi  delicadamente dito, deixando intacta sua condição,   apenas uma poeta teria esta delicadeza de deixar intocado  apenas aquilo que em si mesmo não procura  a dimensão da palavra sem contudo deixar de tocar levemente com a palma das mãos , neste indizível.. Podemos pressentir no silêncio que envolve estes textos como um véu que a  vida humana é ela mesma o Verbo , que ela é uma fonte objetiva do sagrado , um  Sagrado que é vizinho da alegria, da contemplação e da ironia socrática. Um grande sufi disse certa vez  ‘ os poetas procuram mais a poesia do que o amor, mas como o amor procura a mesma coisa que eles, acabam se encontrando ambos em um mesmo deserto’, este livro foi escrito contra este Deserto, por alguém que o conheceu intimamente quando ele ainda era um jardim. É óbvio para mim hoje, que esse deserto foi iluminado pelos fatos e pelas coisas que são os insuspeitos raios deste Sol  que atravessam somente o tempo-eternidade. Também é óbvio para mim que os que condenam a si mesmos a uma redução da vida do espírito,  não sabem que não existe a vida do não espírito ou seja  que não existem dicotomias e que  tudo habita poeticamente o mesmo lugar onde é possível o tempo-eternidade,  todos habitam o mesmo mundo de  onde alguns fatos se distanciam  e  desaparecem no tempo cronológico e  outros  permanecem sendo no tempo-eternidade das coisas reencontradas ali onde a noite em claro transcende a memória e sutilmente toca no indizível. E o que são estas  crônicas escritas no decorrer dos tempos, senão evocações  desta ligação entre o tempo-eternidade   e  esse misterioso sonho  que se dissipa dentro do tempo cronológico . Cantando no deserto do tempo , as  coisas estão silenciosamente  chamando pelo nome dos mortos e de   tudo aquilo que na vida  está imantado pela visão como oração  e anti-profecia, aqui  os fatos que de um modo ou de outro tocaram de leve no indizível ou no sublime   e estão tentando materializar-se não como lembranças mas como mistérios visíveis,  somos simples servidores deste mistério onde as palavras  sempre foram um reflexo da luz  deste Sol no oceano dos mortos, nós, somos como ilhas, como tigres, como pássaros e estas outras ilhas, onde pousaremos por pouquíssimo tempo, estas com quase nenhuma terra são os anjos dos fatos

 

2.

Para o novo livro de Poemas de Paulo César de Carvalho:
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Letra, Som & um deslocamento que ilumina

O crítico acadêmico Harold Bloom  em um ensaio famoso e muito citado ,cunhou uma expressão que considero infeliz, angústia da influência, o diálogo com a tradição literária ou entre um autor de uma época e outro, a meu ver , não tem como vetor apenas a angústia, a ansiedade pode ser o centro de muitos destes diálogos, no caso de Carvalho e deste ‘Letra e som no ouvido do papel’ , nem é uma coisa, nem outra. O livro possui um tessitura dialógica que tem o entusiasmo como vetor. Carvalho conversa em grau maior com Cacaso, Leminski, Walter Franco, Oswald de Andrade,Chacal, Roberto Piva, José Paulo Paes, Charles Bukowski e outros. Conversa com a tradição da canção brasileira, é raro encontrarmos uma poética como a dele, construída para parecer simples e até evocar a leveza no meio dos escombros do que hoje é a canção e a cultura brasileira. Duke Ellington para nos deslocarmos para uma dimensão próxima da aura do livro de Carvalho, costumava dizer que a despretensão  era sua maior qualidade e quando alguém o chamava de gênio, ele dava uma enorme gargalhada e respondia que ‘ essa não era sua intenção, ele apenas tocava para merecer ouvir os mestres’, pois bem, essa mesma despretensão- intenção  pode estar por trás deste livro do Carvalho. Dividido em seções-atos em que alguns temas chaves são propostos, este livro também dialoga com alguns modos de se fazer poesia que estão dentro de uma espécie de lugar intermediário entre as fronteiras do que convencionalmente se chama de letra de musica e do que constantemente se chama de poema, este é um dos maiores trunfos deste ‘ Letra e som no ouvido do papel’ , erguer no meio dessa tensão cada vez mais crescente entre a letra de música e o poema, uma espécie de jardim híbrido, vários poemas são dedicados a algumas cantoras e é inevitável pensarmos  que estes poemas poderiam ser cantados por elas, este é quase um livro disco, mas um disco de silêncios irônicos e até de risos silenciosos que envolvem os poemas, aqui se ri da morte e do amor, eis uma coisa que está escrita na porta deste livro em letras invisíveis.  Aqui neste meu breve e precário texto de apresentação, não vou tocar na biografia do poeta, a biografia de um poeta são seus poemas, Carvalho sabiamente transfigura  sua biografia em música e poemas de um  modo tão sutil e repito irônico, que transmite a sensação de deslocamento e distanciamento que torna possível descolarmos o poema do poeta. Existe um terrível ofuscamento do poema quando isso não é possível e esta pode ser outra das contribuições deste livro, a de desmistificar a figura do poeta através do modo simples de escritura do poema, é muito difícil escrever um poema no ‘modo simples’ e fácil escrever um poema abstrato e de leitura cifrada. Existe se nos desarmarmos de um certa projeção típica dos ‘ schoolars’ e do ‘academicismo’ que nasce de um preconceito, a de que a poesia escrita para ser comunicável como uma canção resvala na superficialidade,  o que é falso. Se nos desarmarmos desta projeção que é jogada sobre quase todas as poéticas, como se fosse uma lei, a de que todo poema profundo precisa parecer profundo, feito esta consideração e este desarme, poderemos compreender como um poema que ‘ parece simples’ como o de Carvalho é na verdade de uma profundidade que pode nos escapar em uma leitura desatenta, não  gosto de esquartejar poemas  para demonstrar minhas teses, como fazem muitos críticos e resenhistas, prefiro que vocês procurem indícios do que afirmo através do mergulho no livro. Antes de finalizar, recomendo que cada um leia os poemas deste livro em voz alta e se possível cantarole os poemas, a experiência, esta péssima conselheira, as vezes nos dá sábios conselhos, e a minha sempre me diz que um poema lido em voz alta, se comunica de modo direto com você. Carvalho é um poeta que se preocupa com ‘ comunicar’ e esta é  a arquitetura e a música de seus poemas. O dizer de um músico dentro de um poeta pode ser um grande convite para a leitura de um tipo de harmonia raro entre leitores e escritores, a harmonia do entendimento.

 

3.

Para o livro ‘Esquinas do mundo’ de Alessandro Atanes

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O roubo da voz efetuado pela memória é meu farol

Por Marcelo Ariel

 

I dwell in Possibility-

A fairer House tha Prose-

More numerous os Windows-

Superior- for Doors-

Emily Dickinson

 

O jogo da água é o nome de uma rua por onde passam alguns ensaios antes de irem para o trabalho, ou seja para a ponte das sinapses, o que se parece com um sonho com um dos personagens de Los Siete Locos de Roberto Arlt chamado ‘ O Astrólogo’, o fato é que os ensaios são um personagem, Machado  foi um dos inventores desse ilusionismo metafísico, ele mesmo, um ensaísta dentro de um contista e de um romancista, o oposto é o narrador desta trama, existem doses de realidade e de sonho equivalentes, no espaço que um ensaio cultiva em relação ao outro, um encontrão entre os ensaios seria demasiado barroco e a luz que poderia surgir dessa fricção amorosa e nada aleatória, pode nos cegar de novo, comenta Jorge Luís. Um dos ensaios reivindica um parentesco sutil entre meu Cavalo e Roberto Bolaño, não sei se ele está aqui neste pequeno navio, os trabalhadores do cais ontológico,  estão em greve, uma greve lírica, como a greve dos marceneiros do poema anônimo, descendentes dos poetas egípcios da quinta dinastia, de Mêncio e de alguns dos melhores alunos de Omeros, a grafia que resgato  é esta. Que prescinde do esotérico’ H’, que segundo consta é um dos nomes do Altíssimo. Vocês, podem me acusar de roubar o estilo de Jorge Luís, mas o roubo do estilo é uma forma de afeto superior, do qual todos os boons escritores sofrem, nada de angústia, algo melhor do que a influência, este antigo nome da gripe, o roubo puro e simples, este mestre do Capital, esta outra doença essencial dos séculos mais novos. Através do roubo do estilo, dá-se também a revelação do espaço para o pensamento. Vocês realmente jamais poderão saber se este texto é uma ficção ou um ensaio, o hibridismo, muito útil aos antigos deuses pagãos e panteístas, coisas quase opostas, que também se confundem, como estava dizendo, o hibridismo é um trunfo de uma época mestiça, onde predomina esta altíssima esfera do pensamento, a esfera mestiça. O jogo da água é uma rua abandonada habitada por pássaros silvestres, como os citados em um romance americano, que tudo deve a Dreiser, chamado ‘ Liberdade’. Alguns pássaros chamam a atenção dos ensaios que passam concentrados e um pouco assustados por causa da greve lírica, um dos pássaros emite um estranho som que lembra vagamente a letra ‘ K’, outro gosta de voar próximo das janelas dos ônibus, onde dormem alguns ensaios, um momento lúdico, para as mágicas do inconsciente, este deus inexistente e por isso mesmo real, como todos os outros deuses interiores que procuramos na paisagem. O modelo para este texto é certamente Jorge Luís e seus labirintos sonhados não por ele, mas por M.C. Escher, um personagem de Jorge Luís que jamais foi imaginado por ele. Os ensaios gostam mais do oceano e da vocação dos oceanos para a poesia absoluta, do que dos navios, me parece que isto é uma  das mais misteriosas características dos ensaios. Eles, como Ahab, são partidários do afastamento perene de todo o barulho das cidades, gostam de ouvir as árias oceânicas, ecos da voz dos deuses e nome primordial da senda humana sobre a terra, aí está um paradoxo, seres feitos de água por onde se move o pensamento e o amor, seu silencioso pastor, os humanos podem  em seus momentos de maior e menor lucidez, porque a lucidez se movimenta como uma respiração da Alma, onde expiração e inspiração são simultâneos, e nestes menores-maiores momentos da visão, nós, humanos podemos ser atravessados pelos ensaios, por que afinal, somos nós o resultado de seu trabalho, a criação de conceitos, como este da humanidade. Nada mais deve ser dito sobre estes seres criadores de conceitos e de perguntas, quando fechamos as pontes das sinapses, os ensaios descansam em paz , um sono muito frágil dentro de suas casas vegetais, estas estranhas e encantadoras casas feitas apenas com duas portas , uma ao lado da outra, se abrindo simultaneamente para fora.. Portas que dão para a boca e os olhos de um singularíssimo oceano.

 

Comentário do Astrólogo: Enquanto eu mesmo caminhava pelas ruas de Névoa, não pude deixar de pensar em seu texto sobre os Ensaios, você de fato, simula o estilo de Jorge Luís,mas a ponte imaginada por você, me parece uma cópia exata embora abstrata e subjetiva da ponte de vidro de Névoa, todas as casas e pontes aqui são de vidro, devo dizer que escrevo para você do inimaginável ano de 26666, e para que você entenda, como seu texto chegou até mim, devo afirmar que sempre que certas metáforas são evocadas e metáforas como você sabe criam uma nova dimensão da realidade, algumas dimensões do tempo se tocam, como nos sonhos, metáfora que fabrica metáforas automáticas. Devo falar sobre a cidade de Névoa, antes de expor o que realmente encontrei em seu texto, em Névoa a moeda é luz e ventilação, por isso o asfalto foi há tempos substituído pelo ‘ vidro astral’ , uma espécie de vidro levíssimo e fluídico, muito mais próximo da água do que da areia,um tipo de vidro que deixa passar as moscas e os pássaros e que podemos atravessar, como se fôssemos fantasmas, aqui em Névoa, temos a densidade etérea dos mortos e se entre nós, caminhassem estes ensaios que você cita em seus textos, eles seriam ensaios-fantasma. Um momento estamos recebendo uma ligação de Jorge Luís

Jorge Luís Borges direto do spiricom-skype: Caríssimos detentores da forma física, esse peso etéreo da experiência que contrasta imensamente com nossa leveza  de seminuvem, a leveza dos que deveriam ser olvidados, dos tigres extintos e das pirâmides enterradas. Meu abandonado nome foi algumas vezes por vós mencionado, e sempre que estes sons que agora tem a estatura dos sonhos insonhados, são ditos, sentimos este leve e nostálgico tremor que sobe do ar dos existentes até aqui, um lugar que,s e não está tão distante, quanto o inexorável ano de 26666 de onde escreve nosso amigo, é igualmente inimaginável, estes seres que são mencionados, tão irreais e palpáveis como os seres dos espelhos, suscitam em nós, uma pergunta: Não seriam ‘O Astrólogo’ , A  Cidade de Névoa, o Deus dos Ensaios e os próprios ensaios, a mesma e única coisa, chamada ‘ Imaginação autônoma do mundo’ ? Não seria o pensamento e as ruas de todas as cidades, sejam elas do século 2 ou do século 30, apenas formas do pensamento? Não será a resposta para este axioma, misteriosa como uma mão dentro de  um Dragão?

 

Conclusão do Cartógrafo:  Aqui onde estou, caminho por ruas antigas, sem placas, ruas que foram reivindicadas pela grama e pelas árvores, onças e  serpentes dividem com imensas borboletas, o espaço destes túmulos que já foram casas,  não vejo nenhum vestígio dos antigos, viventes que atravessavam estas ruas, dentro dos túmulos, pilhas e pilhas de livros , estão ali, milagrosamente intocados e em perfeito estado de conservação, tal como acontecia com o cadáver de antigas múmias e santos. Aliás, era este o nome desta cidade abandonada, agora, devo caminhar até o mar, única paisagem que permaneceu inalterada, me parece que os navios, encalhados na praia, estão repletos de livros e de mapas.

 

 

 

 

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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010), O Céu no fundo do mart (Dulcinéia Catadora, 2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011), entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com




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