400 anos de Cervantes


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Ao que parece, Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia: 23 de abril de 1616. Não se sabe se isso corresponde à estrita verdade dos fatos, mas como lenda literária é uma beleza, pois os dois criaram os mais duradouros personagens da Era Moderna, Hamlet e Dom Quixote.

 

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Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, considerava Dom Quixote “antiquado, sórdido e grosseiro”. Trata-se de uma exceção porque o livro de Cervantes (cujo primeiro volume chega, em 2005, aos 400 anos), é particularmente amado por todos os que gostam de ler e que veem em seu protagonista um símbolo da curiosa atividade que é a leitura.

O genial escritor do século XVIII Laurence Sterne faz várias referências brincalhonas e carinhosas a Cervantes em seu extraordinário (e quixotesco) Tristram Shandy“Gentil Espírito do mais brando humor, que outrora pousaste na pena desembaraçada do meu amado Cervantes”, lemos, por exemplo, no capítulo 24 do volume IX.

Cervantes (1547-1616) passou muitos anos como prisioneiro em Argel, até que conseguissem pagar seu resgate (era época de corsários e guerra com os árabes, e tudo isso permeia seu grande romance). Publicou O Engenhoso Fidalgo em 1605, quando se encontrava empobrecido e esquecido, e o sucesso foi tamanho e o livro se difundiu de tal forma que alguém (certamente um inimigo literário, que utilizou o nome de Alonso Fernando de Avellaneda), em 1614,  publicou a continuação apócrifa das aventuras da dupla Quixote-Sancho Pança (na verdade, esse falso Quixote não é destituído de graça), ainda que no final do original aparecesse até o epitáfio do herói (junto com os epitáfios de Sancho, de Dulcinéia e até do cavalo Rocinante).

No ano seguinte, apareceu então o segundo livro, O engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha (já que num dos episódios mais divertidos e irreverentes do primeiro o dono de uma estalagem sagra como cavaleiro o fidalgo enlouquecido pela leitura de romances de cavalaria), poucos meses antes da morte do autor. Ele queria que, através das aventuras farsescas (e aí entram os famosíssimos episódios da luta contra moinhos de vento ou contra odres de vinho, que se afiguram gigantes a D. Quixote, rebanhos que viram exércitos inumeráveis, estalagens que se tornam castelos, etc) dos seus dois heróis, jogados no mundo que nada tem de idealizado, e através de um humor nem sempre brando e sim às vezes bastante escrachado, os leitores sentissem a insuficiência da literatura ligada aos feitos heroicos, tema amplamente discutido, em vários momentos; o principal deles, quando D. Quixote é conduzido, enjaulado,  a sua casa – acreditando-se enfeitiçado – pelo cura e pelo barbeiro da sua aldeia, e o primeiro deles conversa com um cônego, e é aí que Cervantes expõe de forma clara seus pontos-de-vista e faz profissão de fé do tipo de relato ficcional e de teatro que ele gostaria que fossem  praticados, além de colocar a teoria em prática nos diversos relatos intercalados à história principal.

O que ele acabou realizando foi o paradigma da ficção ocidental, praticada a partir dele, o livro-referência de todos os romancistas (Nabokov que resmungue à vontade). Ou alguém pensa que a matriz da jornada de Frodo e Sam Gamgi (sem contar a própria relação entre eles), em O senhor dos Anéis, é outra?
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Quando se lê com atenção O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha fica impossível não se constatar que, há 400 anos, o mundo muçulmano já assombrava, como hoje, o Ocidente e fazia parte do seu imaginário, obrigando-o também a lidar com seu mal-estar (e sua má fé) diante de uma alteridade tão evidente. Sancho Pança sempre se refere aos defeitos e destemperos dos mouros e na constelação de monstros e no bestiário do romance as alusões a eles são constantes também; há até uma das novelas intercaladas à narrativa principal (a história do Cativo, ocupando três longos capítulos) que evoca a vida de Cervantes, prisioneiro-refém em Argel durante muitos anos.

As novelas dentro do romance são outro aspecto fascinante. Ao colocar na boca de certos personagens (o cura da aldeia de D. Quixote, em sua conversa com um cônego, quando traz de volta para casa, enjaulado, o fidalgo lunático, o qual crê estar enfeitiçado) sua severa condenação à prática ficcional das novelas de cavalaria e ao teatro de seu tempo, Cervantes está propondo uma outra prática de ambos, de que ele seria o representante (já que não se furta a citar o próprio nome em seu texto, ou insinuá-lo).

O ponto central da argumentação está na inverossimilhança, no exagero, no fato de que as novelas de cavalaria não têm estrutura discernível (portanto, uma condenação formal), enquanto que o teatro da época está infestado de lances inconvincentes destinados a embasbacar o público crédulo. Certamente há aí intenção polêmica e vingativa com relação a inimigos literários, notadamente Lope de Vega, o autor de “Fuenteovejuna”. No prefácio ao 2º volume, essa atitude se reafirmará, pois, contra-atacando, ele mira detratores e rivais, inclusive plagiadores que usaram seu personagem, obrigando-o a escrever uma continuação, O Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, publicada um ano antes de sua morte.

Qual seria o procedimento em contrário? Este apresentará uma contradição  instigante e produtiva: criticando a irrealidade e a falta de forma, Cervantes não pode se escusar de ver a trama de um feitio teatral (e fundamentalmente vaudevillesca, tanto nas partes, como na novela do “Curioso Impertinente” quanto no todo do livro), fazendo com que todos os seus personagens, que são de diferentes lugares e esferas sociais possíveis, se encontrem, quase que se acotovelando (é isso mesmo, chega a faltar espaço), por assim dizer, na humilde estalagem que a D. Quixote parece um castelo encantado. Tirando isso, e também as convenções que de tão visíveis se tornam risíveis e até ingênuas (toda heroína é a mais bela mulher do mundo, só que ele reúne quatro delas num mesmo local; todos infalivelmente sempre choram juntos quando cada personagem toma a palavra e conta as suas desventuras), o que vemos é um tipo peculiar de ficção impondo-se: a novela sentimental, onde um fundo aventuroso não impede a interiorização, a discussão às vezes profunda dos sentimentos.

Ficamos com a impressão de que as aventuras trapalhonas de D. Quixote e Sancho Pança são apenas a moldura desse que é o verdadeiro cerne, o miolo da obra (embora não seja o que tenha ficado de mais marcante para a posteridade; quem é que lembra da história do Curioso Impertinente ou do Cativo, enquanto todos citam os moinhos de vento, ou Dulcinéia, até sem ter lido o romance). Enfim, o que está supostamente apenas intercalado à aventura principal é o que Cervantes gostaria que estivesse sendo lido e representado (sendo ele o principal autor, é claro) em seu tempo, uma vez que as fascinantes e amalucadas andanças do Cavaleiro da Triste Figura e seu criado representam a liquidação de um gênero anterior.

 

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[Uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em dezenove de abril de 2016]

 

 

 

 

 

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Alfredo Monte é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




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