Os vagantes de Mind the gap
………….Sem talento para viver: os vagantes de Mind the gap
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Vera Helena Rossi é jornalista, Mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica. Contudo, nada disso faz de um escritor um escritor, mas pode facilitar sua compreensão de mundo literário, se assim souber filtrar e usufruir dessas matérias. Um escritor é feito de sensibilidade, de observação e prática de escrita, o que acredito seja a realidade de Vera Helena Rossi há muito tempo, e que desaguou nesses contos presentes no livro que abordamos agora.
Os contos de Mind the gap nem sempre obedecem à forma tradicional de contos que conhecemos ― há conto com apenas oito linhas. Suas características podem se enquadrar na do pós-modernismo atual, digamos assim, “um conjunto aberto de traços heterogêneos”, como definiu Italo Moriconi (2004), em artigo, com narrativa fragmentada e sem espaço nítido, predominando períodos curtos ― inclusive alguns de seus contos são extremamente curtos, com seis ou oito linhas apenas, e construídos com fluxos de consciência que revelam os pensamentos mais íntimos de seus personagens.
Isso ocorre, por exemplo, em “Narciso”, conto com apenas doze linhas, e um dos dois contos de mesmo nome. Nele, uma mulher mira-se no espelho como a ver outra de si, “Um rosto mudo, a imitar meus lábios entreabertos, as falhas exatas de minhas sobrancelhas, os fios brancos desregulares aqui e ali” (p. 74), revela.
Trata-se daquele Outro já conhecido do mundo literário, O Duplo, usado, dentre outros, por Jorge Luis Borges no conto “O outro” (2009), onde Borges velho encontra-se com Borges novo, num banco na rua, e estes dialogam sobre seu passado e futuro, nas formas labirínticas do autor argentino: “cada um de nós era o arremedo caricatural do outro” (p. 14). Usado também por Luigi Pirandello em Um, nenhum, cem mil (2001), no qual Vitangelo Moscarda se vê outro no espelho por causa de um nariz que julga diferente naquela manhã, e começa a desvendar os outros de si, seus vários duplos: “meu drama atroz se complicou com a descoberta dos cem mil Moscardas que eu era não só para os outros, mas também para mim” (p. 34), diz ele.
Já nas treze linhas que compõem o conto “Eu e vós qualquer dia”, a intimidade do ser surge sob um tom de carta de confidências, com forte apelo poético, como uma poesia em prosa: “se precisares da vida, ainda a tenho aqui, deserta e fria, inerte sob meu corpo morto” (p. 49), nas palavras de alguém ébrio de desventura e enjoo.
Esses dois contos são exemplos daqueles que fogem aos padrões do conto clássico, como alertamos no começo deste texto. Porém, nem todos os contos são assim; alguns, como “Boas novas” e “Ocaso”, o conto mais longo do livro, assemelham-se, em forma e estrutura, ao tradicional. Contudo, não dispensam características modernas ou pós-modernas, a que já nos referimos acima.
Em “Boas novas”, texto com ação psicológica e concreta, que evolui numa tensão interna, faz-nos expectadores dos delírios de Dona Fina, uma velha reumática a imaginar complôs contra si realizados por sua enfermeira Cecil: “Um dia, enquanto estivesse dormindo, Cecil entraria quieta no quarto e a mataria. Sem dó” (p. 35). Vagando pela casa, escondendo gatos que não são seus, Dona Fina ensaia proteger-se da “vilã”, supõe maluquices e ações. No final, o texto nos atinge com um desfecho realmente inesperado.
Diferente na temática, “Ocaso”, com características do gênero policial, um Serial Killer, enigmático e esquartejador, é a sombra que vaga por todo o conto, ao lado ou às costas de Roger, o protagonista ― escritor de signos do zodíaco para o jornal que leva o nome do conto. Angustiado e devastado pela culpa, vivendo à margem do mundo real, como um lunático a conversar com fantasmas, ele trava uma espécie de solilóquio, quase contínuo, com sua amada Luana, a mulher com quem dialoga em seus pensamentos, denunciada, já no início do conto, como morta, talvez pelo próprio Roger: “― Você me matou.”, diz a suposta voz da morta, num surreal diálogo a se passar no subconsciente de seu assassino, “― Tive meus motivos.”, “― Não interessa, você me matou. Isso eu não te perdoo.” (p. 103).
A partir daí, o texto cresce, e personagens femininas, mudas e vagas como nuvens, aparecem e desaparecem deixando apenas seus corpos esquartejados e sangue. Mortas sempre após os encontros com Roger, enquanto o leitor não consegue decidir se Roger e o assassino são a mesma pessoa. Nisso tudo, “Ocaso”, nome do conto e do jornal, lembramos, mostra-se também como o retrato e a realidade íntima de Roger.
Observando os textos amplamente, vemos que expõem personagens sofridos, angustiados, pessimistas, obsecados, por algum motivo. Incapacitados de ser felizes, parecem não ter talento para viver. São pessoas feridas por alguma espécie de vazio, de vão como diz o próprio título do livro, Mind the gap, (cuidado com o vão) ― expressão muito usada nos metrôs ingleses como alerta aos passageiros.
Entretanto, no livro, o alertado é o leitor sobre os vãos dos personagens ― representados também pelas páginas pretas, ou brancas, com o título do livro, que surge algumas vezes entre um conto e outro; um ponto bastante positivo para o projeto gráfico, creditado a Leonardo Mathias, autor também da capa (muito bonita), projeto criativo na confecção estética e semiótica do livro; área, inclusive, na qual Vera Helena Rossi é doutora.
Além das características dos personagens que enumeramos acima, encontramos também outras como a morte, poética ou cruel, o medo do passado, o fantástico (que lembra Murilo Rubião), segredos que afligem, a felicidade que assusta, pelo medo de perdê-la ― dada à falta de costume de possuí-la, como é o caso do personagem de “Felicidade fora de contexto”, escrito a quatro mãos por Vera Helena Rossi e Débora Rubin: “‘Não pode ser tão perfeito!’”, pensei. Não estava acostumada a qualquer felicidade isenta de esforço. Sempre desconfio da alegria espontânea” (p. 29).
Outro ponto marcante é a recorrente fronteira entre a loucura e a sanidade, facilmente encontrada em alguns contos em que os “sãos” parecem ou se mostram loucos, e os loucos surpreendem com ataques de lucidez, como em “Filosofia de botequim”, no qual os pretensos bêbados mostram-se ébrios de lucidez, como num estado de graça, e os sóbrios são os bêbados de falsa realidade: “Nossa loucura é outra, meu caro”, conclui um dos ébrios de lucidez, ao ver, pagando a conta do bar, que havia bebido menos do que imaginava; portanto, diz ao sair do bar: “Deixamos o palco de nossa mais lúcida loucura para retornarmos à nossa peremptória condição de bêbados, como camelos” (p. 55).
Assim como “Filosofia de botequim”, “Louca” também apresenta dementes que se trocam pelos sãos. Nele, uma suposta louca é apontada como pretensa candidata ao suicídio: “Lá estava ela, no metrô, cantando e dançando alto. As pessoas a olhava de viés, riam disfarçado e continuavam a se preocupar com o próprio umbigo” (p. 65), diz o narrador. Mas alguém se preocupa com suas atitudes e alerta: “Ela vai pular. Quando o trem chegar. Ela vai tentar se matar, ninguém faz nada, meu Deus!” (p. 65). Ao lado disso, frases intermediárias, que descrevem as características imediatas da suicida, confundem-nos, e ficamos a nos perguntar a quem afinal essas descrições se referem.
Em suma, os personagens parecem cansados, desesperados ou sem paciência para a vida e suas agruras, que tanto os ofende e maltrata. Como diz o escritor Pedro Amorós, no prefácio do livro:
V. H. Rossi se complace, pues, en describir aspectos de la vida cotidiana: La imposibilidad de La felicidad en un mundo abarrotado de desilusión; la ausencia de novedades y alegrías en la vida; la vejez con todos sus achaques; la búsqueda de vías de escape para la rutina diaria [como ocorre com Dona Fina]; […]; la locura como forma de expresión […]” (p. 8).
Assim são os textos de Vera Helena Rossi, retratos do cotidiano, repletos de imagens e interiores psicológicos de homens e mulheres com vidas conduzidas “pela fatalidade de estar vivo” (p. 107), como diz Roger, em “Ocaso”. Enfim, são seres fadados ao fracasso da vida, imersos em desilusão e desesperança, palavras utilizadas também por Roger, e que definem bem os sentimentos dos vagantes de Mind the gap.
REFERÊNCIAS:
BORGES, Jorge Luis. O outro. In: O livro de areia. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MORICONI, Italo. A problemática do pós-modernismo na Literatura brasileira (Uma introdução ao debate). Cadernos da ABF, Rio de Janeiro, n. 1, v. III, fevereiro/março de 2004. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/abf/volume3/numero1/02.htm>. Acessado em: 24 ago. 2010.
ROSSI, Vera Helena. Mind the gap. São Paulo: Patuá, 2011.
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William Lial é escritor, poeta, autor de três livros, Sombras (2001), Noturno (2003) e O mundo de vidro (2005), e Mestre em Literatura Comparada; além de colaborar com jornais e veículos literários on-line e manter um blog que leva seu nome, no endereço: http://williamlial.blogspot.com. E-mail: wlial1208@gmail.com.
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