Em território inimigo


……………Sísifo rolará a nossa pedra para além do réquiem?

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Para o amigo e товарищ Daniel Puglia

Has la victoria (y/o la narrativa) siempre!

 

 

Chicago, 11 e 12 de setembro de 2014

 

Noite. Da minha janela, ouço o farfalhar das folhas. Vez por outra, um galho resvala o vidro. Este ano, o General Inverno parece ter enviado um de seus regimentos mais cedo. Já faz frio, frio que este brasileiro, ainda que já tenha vivido em Moscou, mal consegue suportar. Para onde foram as cigarras? O ronco longínquo dos aviões me faz entrever a rua ainda mais solitária sob a luz de sódio bem amarela. Me sinto incomodado, instado – à deriva. Uma senhorinha, pé ante pé, tenta vencer os degraus até a porta de seu sobrado sem portão. É a minha deixa: preciso sair daqui, faz dias que não deixo o quarto. Busco a carteira entre os livros – ela havia se escondido sob os Cien años de soledad. Casaco. Luvas? Ainda é possível driblar o frio com as mãos nos bolsos. Mas o vento de Chicago requer o gorro.

Downtown. Não consigo me acostumar com as pilastras de aço que içam os trilhos dos trens. Sentinelas, elas parecem usurpar as ruas. Os cafés ao rés da calçada estão todos tomados, das fachadas posso ver as sopas fumegantes. Quero um conhaque. Mas onde? Descubro alguns bares subterrâneos, me sinto ainda uma vez no Leste Europeu. Dez degraus ladeados por um corrimão enferrujado me levam à porta espessa do bunker.

Não fossem as luzes esparsas a iluminar o entrechoque das bolas de bilhar, mal seria possível discernir os rostos. Me sento junto a um dos corners, o conhaque não demora a chegar – e a me eriçar.

Uma loira de botas se debruça sobre a mesa de sinuca para tentar encaçapar a 7 negra. Ela oscila – alguém já bebeu mais conhaque do que eu… –, alguns gritinhos irrompem, os peitos resvalam a mesa – o furor cálido do conhaque me faz sentir os bicos intumescidos pela minha pele. Faço menção de me levantar – alguém precisa ensiná-la a aprumar o taco –, mas o possível acompanhante da loira de botas e os rodopios do conhaque me devolvem à cadeira.

O álcool não apenas expande e embaralha os sentidos; o conhaque liberta o ímpeto, a vodka nos faz viver algo além, algo outro, aqui e agora. O corpo ganha novas dimensões, os pensamentos parecem materializados, à iminência do toque. Se não ultrapassamos a tênue fronteira da autodiluição, o scotch nos insinua que a memória se faz obsoleta: o absinto aglutina o tempo, as experiências díspares, distantes e dispersas parecem atadas umas às outras – enfim elas se complementam, elas passam a fazer sentido! – como se fizessem parte de um novelo, como se fôssemos o nó górdio de uma imensa rede. Eu não preciso me lembrar daquilo que me é simultâneo, daquela que não está mais ausente, desta que me está bem rente. (Quando perguntam a um escritor o que a literatura lhe traz, o vinho bem poderia sentenciar: a embriaguez do sentido que, mediado pela cadência das palavras, se torna tangível.)

Mas, aqui e agora, o incômodo persiste. Dor difusa, dor do mundo. Tiro do casaco o Guerra Civil, do bom e velho escritor alemão Hans Magnus Enzensberger. O livro me acompanha há 11 anos, foi o primeiro texto com que me deparei no curso de Ciências Sociais. Antidogmático, literário e dialeticamente crítico: Enzensberger caminha entre os escombros das utopias que buscaram diagnosticar e revolucionar o movimento do mundo. O liberalismo, o niilismo, o anarquismo, a democracia burguesa, a social-democracia. O socialismo. A história como a construção da humanidade. A humanidade como a história em devir. Após a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a história como barricada se viu órfã. É quando a brutalidade da guerra civil começa a dispensar seus álibis contumazes (e supostamente emancipatórios) para insuflar o caos. A guerra civil ecumênica, à direita e à esquerda, em trincheiras, escritórios e fast foods, na escola e pela indiferença dos pais, ao lado das amizades facultativas e dos amores mornos de quem introduz o dedão na água, cautelosamente, antes de se entregar à piscina. Eis a guerra civil que já não se emociona com a trégua pálida da neve, a guerra civil que não serpenteia pelos Andes e não se importa com Machu Picchu, a guerra civil do burguês ensimesmado. O cotidiano dos cidadãos de bem e de bens. Ao lado de Albert Camus, Enzensberger insinua, ao fim e ao cabo, que é preciso imaginar Sísifo feliz. Sísifo, em seu ostracismo perpétuo, se vê condenado a rolar uma pesada pedra morro acima sem quaisquer expectativas de que consiga atingir o cume para que Newton, na trajetória descendente da montanha, o liberte de seu fardo. Relegar a pedra não lhe é possível: isso custaria a Sísifo sua própria vida, a pedra o esmagaria, e o condenado dos deuses, mesmo em tempos de orfandade e guerra civil, insiste em sobreviver. É por isso que, para Camus e Enzensberger, a tautologia de Sísifo é a imagem da paz contingente e do humanismo entre os escombros. (Ambos frágeis, mas inescapáveis.) A paz que ensaia sorrir entre as fuligens, as pichações, as seringas já sem agulhas e os estilhaços. A paz que ensaia.

Cada vez que leio Guerra Civil, tento encontrar um Enzensberger menos resignado. Me lembro dos dois pássaros sobre o telhado verde do sobrado do vizinho e imagino Sísifo para além do pêndulo de sua rolling stone. E se quiséssemos alcançar o cume ainda uma vez? E se a história quisesse recompor seu movimento alquebrado a partir de suas fraturas? (Mal me dou conta de que o conhaque me faz entoar meu ímpeto para além de minha intimidadezinha pequeno-burguesa, mal percebo que articulo minhas expectativas a plenos pulmões.) Com o conhaque em riste: e se Sísifo conseguisse se libertar?!

– На здоровье!1

O quê? Quem disse isso? Olho ao redor e continuo a me deparar com as mesmas pessoas ilhadas pelas mesmas conversas e pelos mesmos drinks. Quem propôs um brinde à libertação de Sísifo?

– Eu, meu jovem.

Eis que, três mesas ao lado, até então submerso pela penumbra, um senhor auscultara tudo.

– Um jovem que lê! Eis, realmente, uma grata (e rara) surpresa em nossos dias!

– Ainda estamos à procura, senhor…?!

– Vissarion Ivanovitch Orlov, oчень приятно!2

A mão algo reumática e repleta de nódoas e veias entre verdes e azuis arrasta a cadeira e pede que eu me sente.

– Os jovens, hoje, já parecem envelhecidos de antemão: comezinhos, pragmáticos e, sobretudo, adaptados. (Mesmo a nata da vagabundagem já parece resignada.) Mas, muito bem, muito bom, qual é o seu nome, meu jovem?

– Ricardo, senhor Vissarion, Ricardo Vassoler. O senhor é mesmo russo?

– O senhor ficará pelo caminho, pois você não precisa me fazer recordar a todo momento que já não me restam muitos dias…

Você é mesmo russo? Morei em Moscou há alguns anos.

– Então, товарищ Ricardo3, we are walking on a common ground, as our fellow Americans would say.

Vissarion pede mais duas doses de um bom e envelhecido scotch e, antes que eu faça menção de sacar a carteira, o russo sentencia:

– It’s on me, товарищ Ricardo, it’s on me.

– Mas você não vai pedir uma vodka?

– Ora, não estamos em Chicago? So, you know what they say: em Roma, como os romanos. Um brinde a Sísifo!

– На здоровье!

– Coma esse queijo e o amendoim, товарищ, ou daqui a pouco você vai sair de órbita como o velho cosmonauta Iuri Gagárin.

– “A Terra á azul”, Vissarion, “a Terra é azul”: você consegue imaginar a emoção de Gagárin ao descobrir o azul encarnado pelo nosso planeta? Não é possível que ele não tenha pensado em algo maior do que tudo isso aqui naquele preciso momento!

– Eram outros tempos, товарищ, e o mundo parecia uma argila a ser modelada. Naquele instante, se eu tivesse que transformar Gagárin em uma personagem, diria que ele descobriu algo além do próprio corpo. Naquele azul, meu jovem, no azul que este bunker e a noite de Chicago não nos deixam ver, Gagárin talvez tenha se cotejado com o imenso e pressentido o universo como um grande caminho. (Vissarion arfa.) Mas, pobres diabos, que sabemos sobre tudo isso?

Os olhos acinzentados se diluem no caramelo do scotch como duas pedras de gelo náufragas. Só então noto o broche da foice e do martelo junto ao colarinho de Vissarion. Minha pergunta teletransporta o cosmonauta Vissarion Gagárin de volta do cosmos:

– O que você faz em território inimigo, товарищ, o que te trouxe aos Estados Unidos da América?

Ainda não de todo aterrissado, Vissarion remove o capacete cosmonauta, apruma a barba e me provoca:

– Território inimigo? Não vai me dizer que você também acredita na falácia dogmática da Guerra Fria, right?

– Não foram poucas as vezes em que o mundo se viu à iminência de uma hecatombe nuclear, Vissarion. Você certamente se lembra da crise dos mísseis, em Cuba. Então, como não dizer que havia tensões e contraposições?

– Sim, sim, sim, Ricardo, é claro que me lembro, sou um velho bolchevique, por sua vez filho de outro velho bolchevique que participou de 1917. Me lembro de tudo, como não?

– Quer dizer que você fazia parte da nomenklatura, Vissarion?! Você sempre pertenceu ao Partido!?

– Take it easy, товарищ Ricardo, take it easy. First things first, we’ll get there, it brings me terrible memories. Em primeiro lugar, não vou negar o inegável: em termos da Realpolitik, é claro que houve profundas disputas entre EUA e URSS. Mas, aqui, já não estamos discutindo com Marx e Engels, товарищ, mas com Hobbes e, sobretudo, Maquiavel. Duas potências imperialistas duelam de forma encarniçada por suas zonas de influência. Há algo de novo no front? Ora, você há de convir comigo que não esperaríamos outra coisa dos EUA, do Destino Manifesto e da Doutrina Monroe, right? Mas, ainda que com todas as concessões, desvios e reacionarismos, os homens e mulheres de boa vontade sempre esperaram algo a mais da finada URSS. Então, товарищ Ricardo, sem que abandonemos a geopolítica, não limitemos a nossa conversa aos tabuleiros de xadrez do Pentágono/CIA e do Kremlin/KGB. Antes de mais nada, uma pergunta: você se lembra, é claro, dos estandares das Repúblicas dos Sovietes, right?

– A foice e o martelo que estão no seu colarinho.

– E quem os envergava?

– A camponesa envergava a foice, o operário sustinha o martelo.

– Precisamente. Nada mais revolucionário, right?

– Sim, sobretudo se considerarmos a situação de calamidade do proletariado e do campesinato russos à beira da Revolução. Elencá-los como vanguarda de Outubro é uma grande justiça histórica.

– Tоварищ Ricardo, suas colocações poderiam estar em cartilhas escolares de Moscou, Pequim, Hanói, Havana e Pyongyang. Mas isso não vai nos levar além do realismo socialista. (A realidade ficcional a ser chancelada.) Não me tome por sarcástico, товарищ, mas me responda uma coisa: você, leitor de Camus e Enzensberger, gostaria de envergar a foice e bater o martelo?

– Meus pais vieram da roça, Vissarion, e eu sinto muito orgulho por toda a luta deles!

– Sem dúvida, sem dúvida, isso é admirável. Meus pais também têm origem humilde, entendo muito bem o teu sentimento, esteja certo de que me irmano ao teu orgulho. Mas, Ricardo, nossa origem socialmente proscrita não responde à minha pergunta: nós gostaríamos de envergar a foice e bater o martelo?

Meu silêncio sob o scotch como resposta.

– Mas é claro, товарищ, ninguém quer ser proletário. Os antigos proprietários rurais, os milenares kulaks, ainda assim, queriam manter sua relação imemorial com a terra, relação transmitida de geração a geração. Bom, você bem sabe o que a coletivização forçada de Stálin trouxe aos camponeses. A fome devastadora, as deportações siberianas e os assassínios aos milhões. Creio que os kulaks famintos conheceram o lado escarninho da Internacional: “De pé, ó vítimas da fome, de pé, famélicos da terra!” Mas, ora, a guilhotina da Revolução Francesa não decapitara os camponeses reacionários para que os vestígios anacrônicos do feudalismo fossem varridos pela modernidade? Nossa Revolução, Ricardo, também precisou fazer tábula rasa da história. Já dissera Ióssif Vissariónovitch Djugachvíli, também conhecido como Stálin, que não é possível fazer uma omelete sem quebras ovos. E mais: Stálin chegou a afirmar que o único local em que poderíamos encontrar o consenso universal seria em um cemitério. Sendo assim, o Guia Genial dos Povos tratou de seguir e perseguir a mais irrestrita unanimidade. (Só não contávamos com o consenso universal dos campos de concentração siberianos, o cemitério dos vivos.)

– Ora, товарищ Vissarion, suas colocações bem poderiam constar das cartilhas escolares machartistas a serem distribuídas para os países latino-americanos após os mais diversos golpes de Estado patrocinados pelo Departamento de Estado e pela CIA. O generalíssimo Augusto Pinochet, marionete de Richard Nixon e Henry Kissinger, faria bem em ler suas colocações sobre as ruínas do Palácio La Moneda, entre as quais os golpistas enterraram o cadáver de Salvador Allende há precisamente 41 anos. Até agora, товарищ, não vejo suas colocações fora da lógica da Realpolitik.

– Pois muito bem, Ricardo, sejamos mais claros, de tal maneira que as afinidades eletivas entre socialismo e capitalismo venham à tona. O trabalhador era o ícone-mor da URSS. E concordo com você: elevar os condenados da terra a estandartes da nova sociedade socialista é sumamente revolucionário. Mas, товарищ, quando lhe perguntei se você queria ser operário e/ou camponês, eu não estava imbuído de um mero preconceito (pequeno-)burguês. Não: estou certo de que nossos pais, após a esperança que a Revolução alardeou aos quatro cantos, não nos quereriam camponeses e/ou operários. Se houvessem tido oportunidades, eles certamente ficariam muito orgulhosos de nos verem leitores de Camus e Enzensberger, de acordo?

– Sem dúvida, Vissarion. Ainda mais no Brasil, meu país, verdadeiro pentacampeão mundial em desigualdade – por sinal, a Rússia, neste quesito, mesmo após a URSS, se consagra hexacampeã.

– Eis, verdadeiramente, o diálogo entre o sujo e o mal lavado, товарищ brasileiro. Mas, veja só: falamos, então, sobre o orgulho proletário e camponês para que, justamente, proletários e camponeses deixem de ser proletários e camponeses. Este é o sentido da maior utopia que já fez parte do imaginário histórico. Enquanto você viveu em Moscou, Ricardo, você certamente visitou as estações centrais do metrô, right?

– Mas é claro! A estação Praça da Revolução é um verdadeiro palácio popular. Mármore às massas! Pois este era o sentido da Revolução: que o ethos da aristocracia tsarista pudesse ser universalizado, de tal maneira que o último mujique se tornasse leitor de Púchkin. O próprio Lênin chegou a afirmar que nada tinha contra os hábitos da antiga nobreza, desde que eles não mais colidissem contra a nova sociedade emancipada. Tratava-se, então, de resgatar o conteúdo de verdade da vida ociosa e contemplativa, para que se fundasse “uma terra sem amos”, para que todos fossem senhores de si e da sociedade. Trótski, além de exímio líder político, era um grande escritor e não abria mão de seus passeios diários pela cidade, para que a vivência do belo, tão vital quanto a digestão e a circulação, o inspirasse na construção do socialismo.

– Eis aqui um bom mote para pensarmos sobre a vitória do filisteísmo burguês em terras supostamente antiburguesas. Enquanto o aristocrata socialista Liev Trótski caminhava pela Moscou primaveril repleta de flores policromáticas, o infatigável Stálin, qual um Chief Executive Officer da IBM e/ou da AT&T, só fazia trabalhar. Trabalho coisificado, burocrático e conspiratório: a essência do que é o trabalho em nossa sociedade. Stálin, o montanhês georgiano, via o cosmopolitismo de um Trótski e de um Bukhárin com profundo ressentimento. Mas, para além da contingência da (de)formação de Stálin, creio que precisamos observar o ethos da sociedade então nascente: Stálin, o protótipo do burguês, traz consigo o princípio da automutilação capitalista. Sem jamais ter batido uma chapa a reboque do martelo e ceifado um campo munido de uma foice, Stálin lega em sua incansável e tautológica sanha pelo poder o sentido do trabalho alienado. É preciso realizar uma tarefa, ainda que percamos de vista seus objetivos. É preciso executá-la, ainda que nossa vocação seja esmagada. O filisteísmo de Stálin sobrevive à morte do ditador. O trabalho quantitativo e massacrante, o trabalho das minas e das siderúrgicas, o trabalho das usinas nucleares, o trabalho da indústria de guerra. A União Soviética precisa suplantar seu atraso secular. Para tanto, tudo é permitido. Já nos lembramos do massacre aos kulaks. E, veja só, Ricardo: a Realpolitik a tudo e a todos justifica. Se o proletariado das cidades não fosse alimentado com os grãos saqueados dos kulaks, como é que a URSS venceria os contrarrevolucionários emigrados e as potências ocidentais que lhe faziam oposição encarniçada? Sem a exploração voraz do operariado, como é que a indústria de guerra soviética se levantaria contra o fascismo vindouro? E mais: como censurar o pacto nazi-soviético selado por Ribbentrop e Molotov? Stálin bem sabia que Inglaterra e França queriam incitar Hitler a uma guerra total contra a URSS. Não era o nazismo o inimigo mais antípoda do comunismo? Então, o pacto tático deu ao Exército Vermelho 2 anos mais de preparação até que a Operação Barbarossa invadisse a União Soviética. Perceba, Ricardo: tal cadeia de raciocínio é categórica. O darwinismo social que a ela subjaz é inapelável. Contra fatos (vitoriosos) não há argumentos. O que quase aconteceu, os momentos trêmulos e contingentes, as dúvidas e hesitações, as opções alternativas, democráticas e emancipatórias, tudo isso é relegado à lata de lixo da história. A vitória gera a causalidade-mor a partir da qual a narrativa histórica será composta. Até aqui, nada de novo no front. Ocorre que, se nos ativermos a essa factualidade maquiavélica, não conseguiremos avaliar, de modo crítico e, sobretudo, autocrítico, as possíveis razões e desrazões que fizeram com que a Revolução de Outubro se transformasse, historicamente, em uma ode à burguesa segunda-feira. Senão, vejamos: quantos parques moscovitas você pôde visitar com os símbolos dos trabalhadores a carregar feno, Ricardo?

– Inúmeros. E o curioso é que, nos primórdios da Revolução, intelectuais visitavam os trabalhadores nas fábricas para, nos horários de folga, lhes recitarem poemas de Púchkin, trechos de Turguêniev, epopeias de Tolstói.

– E, ainda mais curioso, Ricardo, é que o champanhe não tenha pensado em suplantar a graxa de uma vez por todas! Por que não se pensou em uma sociedade de máquinas para o trabalho anti-humano? Por que, no decorrer da revolução que pretende revolucionar a si mesma continuamente, não se imaginou o trabalhador munido de uma pena ou de um pincel, ao invés do burro de carga a vergar com a bigorna às costas? Ah, “mas tudo isso é pura abstração, tudo isso é utopia desconectada da realidade”. Ora, não estou dizendo aqui que isso fosse realizável a priori. Mas, Ricardo, eu me pergunto e te pergunto: isso estava nos planos dos revolucionários?

– Idealmente, sim. Trótski chegou a imaginar a sociedade socialista formada por homens e mulheres com o nível médio de Marx e Aristóteles. Isso só seria possível com a superação radical do trabalho, com a libertação dos seres humanos ao encontro de um tempo que já não deveria ser considerado livre, uma vez que já não precisaria se contrapor à prisão das fábricas e escritórios.

– Mas, ainda uma vez, se tivermos que nos voltar para a geopolítica da revolução de forma única e exclusiva, entenderemos que os esforços da Segunda Guerra – ou melhor, da Grande Guerra Patriótica, como maquiavelicamente a intitulou Stálin, já que a Internacional é muito frágil diante do nacionalismo secular dos povos – e os sacrifícios durante a Guerra Fria são perfeitamente justificáveis. First things first, gentlemen, first things first. E para onde vai o novo homem socialista, Ricardo?

– Os materialistas o transformam em Ideia para sempre postergada.

– E mais importante: Ideia para sempre postergável. “Um dia chegaremos lá. Mas, até que lá cheguemos, aguentem firme, trabalhem mais e mais, pois só assim, com a acumulação primitiva de capitais – ou pior, com a acumulação de capitais a partir dos primitivos –, é que conseguiremos alcançar a sociedade em que já não acreditamos”.

Já não há amendoins.

Cadê o queijo?

Resta o naufrágio do scotch.

– Tоварищ Ricardo, você se lembra do Kitchen Debate, que, em 1959, durante a American National Exhibition, em Moscou, contrapôs o prêmie soviético Nikita Kruschev ao então vice-presidente dos EUA Richard Nixon?

– Inesquecível, na verdade. Kruschev e Nixon, em meio a uma típica cozinha do American Way of Life, discutem sobre as vantagens econômico-produtivas de seus respectivos sistemas.

– Pois muito bem: e se a dissensão tivesse mais contiguidade do que gostaríamos de admitir? Se a utopia estivesse on its way to heaven, ou melhor, se o Éden estivesse descendo até a terra, não creio que a competição para saber quem produzia mais microondas, sofás, geladeiras e ogivas nos fosse conduzir ao patamar de Marx e Aristóteles. Mas, antes de mais nada, tratava-se (e trata-se) de produzir, produzir e reproduzir. A estatística, real e/ou forjada, faz as vezes do novo Espírito do Tempo. Você quer saber se alguém vive melhor? Contabilize as quilocalorias diariamente consumidas, inventarie o número de vacinas tomadas, padronize a frequência escolar e, sobretudo, os salários, liste os eletrodomésticos e eletroeletrônicos à disposição, descubra se as linhas de crédito em progressão aritmética e, sobretudo, se os juros da inadimplência em progressão geométrica são suficientes. Com tudo isso em mãos, poderemos mensurar a felicidade. Afinal, a pergunta você é feliz? é sumamente subjetiva, right? Por que é que a sociedade da tirania industrial, à direita e à esquerda, deveria se preocupar com um fator que não pode ser manipulado em laboratório? Então, caro Ricardo, vemos que a derrocada da subjetividade – subjetividade que, a bem dizer, só poderia ser nutrida por uma socieadade em que, como pensava o jovem Marx d’A Ideologia Alemã, a condição para o desenvolvimento de um fosse fosse a condição para o desenvolvimento de todos –, a derrocada da subjetividade implica o crepúsculo da objetividade revolucionária. Assim, o debate na cozinha entre Kruschev e Nixon faz todo o sentido: é preciso saber se a propriedade estatal e o planejamento centralizado podem suplantar a propriedade privada e a planejamento flexível na sanha por mais e mais mercadorias. Já não se trata de saber se e como as pessoas construiremos nossas vidas a partir da liberdade que o ócio da sociedade emancipada do trabalho nos poderia fornecer. Se assim fosse, o trabalho, enfim!, se livraria de sua maldição etimológica: tripalium, em latim, era um instrumento de tortura para lembrar ao escravo que o trabalho era pior do que a pena de morte; o trabalho era a pena de vida. O tripalium era um cinto ao qual se atavam ganchos pontiagudos e rentes à barriga dos condenados. Enquanto eles estivessem de pé, enquanto eles estivessem cumprindo a maldição do Velho Testamento – “ganhareis o pão com o suor de vossos rostos” –, tudo bem, nada de novo no front. Mas, no momento em que a fragilidade humana buscasse descansar, no momento em que os escravos se curvassem para relaxar o corpo das enxadas, picaretas e chicotadas, o tripalium e seus ganchos capatazes lhes sussurrariam que o trabalho dignifica o homem. Ora, “você é feliz?” Os capitães da indústria, à direita e à esquerda, sequer se embaraçam ao dizer que tal pergunta, subjetiva ao extremo, só pode ser respondida a partir das planilhas que as pesquisas de mercado e as agências de publicidade lhes fornecem. O homem não existe mais como o mundo dos homens, como suas múltiplas potências e possibilidades. Agora, estamos diante do homo estatisticus.

– Ora, ora, товарищ Vissarion, isso me faz lembrar de uma máxima espirituosa do velho comunista do capital Henry Ford, fundador da portentosa montadora de veículos que até hoje alardeia seu sobrenome: “One can have a car in any colour, since it’s black”.

Amargos sorrisos de soslaio invadem o bunker e os tragos de scotch. Vários rostos até então envoltos pela penumbra despontam para descobrir do que se trata. Como aquilo (supostamente) não lhes diz respeito – “mind your own business” –, eles e elas logo voltam ao torpor da própria intimidade.

Vissarion cofia a barba em meio à qual os dedos se perdem. Ele parece buscar uma contraposição a nosso emparedamento histórico. Mas, enquanto o russo reflete com os olhos ao longe e o queixo sobre a palma da mão esquerda, um mote me vem à baila:

– Veja só, товарищ: no mesmo ano de 1959, quando ocorreu o fast food debate entre Kruschev e Nixon, a Revolução Cubana toma de assalto a ilha encravada a 90 milhas da Flórida. Um argentino ecumênico, o comandante-em-chefe Che Guevara, teve que lidar com uma tensão histórica fundamental. Nos primórdios da revolução, tudo e todos pareciam dispostos aos mais árduos sacrifícios. Ainda que fosse um dos líderes do Movimento 26 de Julho, Che abriu mão de todos os privilégios. Não queria moradia e alimentação diferenciadas, declinou de todo e qualquer benefício financeiro que o colocasse em destaque em relação aos funcionários do Banco Central de Cuba – como você bem sabe, Vissarion, Che chegou a ser presidente da instituição. E mais: não havia folga para a construção da nova sociedade socialista. Era preciso trabalhar todos os dias – de forma remunerada e, aos sábados e domingos, por meio do trabalho voluntário. Che se mostrou um crítico acerbo dos incentivos materiais para que os trabalhadores se vinculassem cada vez mais à construção do socialismo. Era preciso que todos entendessem que, na nova sociedade, a máxima deveria ser de cada um, conforme sua capaciade; a cada um, conforme sua necessidade. A justiça de então era feita com base na justiça futura. E Che se doou completamente à causa da revolução. Ele religou as esferas pública e privada que tomamos como dadas e cindidas em nossas vidas. A família, a esposa e os filhos tiveram que entender que, para o guerrilheiro, o todo prevalecia em relação às partes, até que a utopia mostrasse aos homens e mulheres que as partes precisamos nos relacionar com vistas à construção de uma nova totalidade. Nesse sentido, Vissarion, não deixa de ser sintomática a busca de Che pela revolução total para além de Cuba.

– Ah, товарищ Ricardo, mas aí a esquerda endireitada bem poderia lhe dizer que não há possibilidade de socialismo em um único país.

– Com o que, a bem dizer, precisamos concordar, Vissarion, há verdade nessa colocação, você bem sabe. Porém, o dogmatismo que apenas expurga os problemas com vistas aos adversários reacionários não consegue entrever uma tensão político-existencial fundamental no movimento pendular do Che rumo à revolução total. Che cortava cana aos domingos – os funcionários do Banco Central eram instados a segui-lo. Che lidava consigo mesmo com marcos cada vez mais altos de consecução, como se o homem fosse sempre o além-homem, o homem que ainda está por vir, o homem em construção. Para alguém que lida com o real como uma revolução contínua, como um magma de transformação perene, a inércia dos homens e mulheres só pode gerar uma angústia inaceitável.

– Mas, Ricardo, aqui vale a pena inocular uma provocação dialética: você fustigou o dorso do Stálin burguês e o cotejou com a erudição de um Trótski. E quanto ao Che Guevara trabalhador full time? Por que você o isenta do filisteísmo? Che não chegou a ser promotor público e não esteve envolvido nas ações de fuzilamento via paredón?

– Sim, é verdade, Vissarion, Che esteve envolvido em tais casos. Como representante de Cuba na Assembléia das Nações Unidas, o comandante chegou a afirmar que “hemos fusilado, fusilamos y seguiremos fusilando mientras sea necesario, ya que esta es una guerra a la muerte”.

– Ah, então não é possível fazer uma omelete sem quebrar ovos, right?

– Concedo que as contradições objetivas do poder tal como ele se configura historicamente trazem parâmetros de juízo mais sinuosos do que a mera alternativa filiação ou repúdio. Aceito a sua crítica, Vissarion, mas tendo a lhe responder da seguinte maneira: Che poderia ter ficado em Cuba, o comandante-em-chefe, então, teria vivenciado a própria deificação.

– Não se esqueça de que as críticas públicas de Che à União Soviética tornaram muito difícil sua permanência como figura de proa no regime cubano, uma vez que Fidel, cada vez mais contraposto aos Estados Unidos, precisava do apoio do Kremlin para conseguir administrar o país.

– Mas é precisamente o conteúdo das críticas de Che à União Soviética que me permitirá dar sequência ao argumento da revolução total, товарищ Vissarion. Veja só: Che visita a Cortina Ferro e se depara com países militarmente ocupados pela (contrar)revolução. O guerrilheiro descobre que, nas fábricas, escritórios e universidades soviéticas, as ligas dos jovens comunistas e dos trabalhadores competem para ver quem conseguirá vencer a dispusta para o cumprimento das metas dos planos de produção. Os ganhadores seriam condecorados com as honrarias máximas da nação – medalhas ao invés de participação nos lucros – e se encontrariam com os mandatários regionais e nacionais do Partido para que a nomenklatura emulasse os campeões da produção e, sobretudo, a si mesma com as fotos para a posteridade. Ora, Vissarion, se não formos dogmáticos, descobriremos uma forma de reprodução conservadora sob um conteúdo ideológico progressista. Não estaríamos diante de mecanismos similarmente competitivos em relação àqueles que alicerçam as relações nas sociedades do capital?

A concordância de Vissarion meneia a cabeça.

– Então, товарищ, a saída de Che da ilha socialista diz e não diz respeito à Realpolitik. Por um lado, as diatribes públicas de Che contra a URSS tornaram insustentável a fraternidade soviética enquanto um mandatário cubano continuasse a se pronunciar contra o modo pelo qual o socialismo era conduzido na pátria-mor da revolução. (Como a hipocrisia e o cinismo se unem como as musas da história, as críticas jamais podem ultrapassar as fronteiras dos gabinetes, do contrário elas acabam sendo instrumentalizadas pelos inimigos políticos. Assim, o materialismo dialético, coisificado pelo Kremlin como diamat, exulta Marx no 20º Congresso do Partido para cumprir os mandamentos do Evangelho segundo Maquiavel.) Por outro lado, Vissarion, as tentativas frustradas de Che de sublevação do Congo e da Bolívia também podem ser entendidas como um princípio de revolução contínua tanto para além de Cuba quanto para movimentar os homens em direção ao novo homem socialista. Che, um inadaptado por excelência, queria mais dos homens e exigia ainda mais de si mesmo. O movimento constante da guerrilha, as idas e vindas em combate, o companheirismo revolucionário – tudo isso constituía o protótipo, aqui e agora, de uma sociedade reconciliada consigo mesma. Ainda que se tratasse de situações excepcionais, Che buscava a integração social a partir do ímpeto de entrega dos guerrilheiros. Aliás, chego a afirmar que, para o nômade Che Guevara, era precisamente o caráter excepcional de tais situações que as tornava exemplares para a construção do novo homem socialista. Todos sabemos, товарищ, que os ossos de Che Guevara permaneceram ocultos durante décadas na Bolívia, até que uma retomada democrática no país restituísse os restos mortais de Che a Cuba. Em julho do ano passado, quando estive em Cuba, visitei o mausoléu de Che em Santa Clara. Estou certo de que ele não aprovaria seu processo de deificação. As canções escolares ressoam seremos todos como el Che. Na verdade, Che queria que todos fossem iguais a si mesmos, que a trajetória de cada um pudesse convergir para a construção do todo, mas sem que houvesse tutelas. Que cada um se assenhoreasse de si mesmo.

– Mas, Ricardo, não lhe parece que, nessa busca político-existencial do Che pela revolução contínua, o comandante-em-chefe aproximou sobremaneira a construção da (auto)destruição? Quero dizer: é claro que a contrarrevolução patrocinada pelo Departamento de Estado e pela CIA recrudesceria o cerco contra os focos revolucionários na América Latina após a vitória da Revolução Cubana. Ainda assim, nesse ímpeto utópico pelo além-homem, a revolução de Che beira o martírio. Não lhe parece que, em Che Guevara, a utopia caminha rente ao despenhadeiro?

– Creio que, nesse caso, Vissarion, a poética talvez se mostre melhor municiada para caminhar pelo subsolo do humano. Em Confesso que vivi, Pablo Neruda narra um dos encontros que teve com o Che. “Eu, poeta e homem de paz, nunca pude entendê-lo. Não estava propriamente de acordo com a sua teoria e prática da guerra de guerrilhas, do foco revolucionário. Considerava tudo aquilo demasiado, insano. Mas não conseguia deixar de vê-lo como um Quixote latino. Eis que, uma tarde, a reboque de seu mate argentino, Che me conta que, ‘uma vez na guerra, poeta, dela não mais conseguimos nos desvencilhar. Nela, somos a superação de nós mesmos a cada momento – não é possível ser menos quando as rajadas crispam o corpo a cada instante, quando os guerrilheiros dependem um do outro, de forma perene, para poderem acreditar e sobreviver. Mas, compañero Neruda, quero lhe pedir uma coisa’. (Aquiesço com prontidão e curiosidade.) Che então saca de sua mochila uma de minhas antologias com poemas de amor e odes às mulheres. ‘Amigo Neruda, me faça aqui a tua dedicatória, quero ler o seu cancioneiro a cada fim de batalha, quando os fuzis relegados e o crepitar das fogueiras oferecerem uma trégua aos peregrinos da revolução’”.

– Essa sua bela menção, meu jovem, sintetiza e reverbera as próprias palavras do Che. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

Uma nova rodada de amendoins aterrissa – now it’s on me, Vissarion – como que a coroar a nostalgia.

Ainda assim, Vissarion não pretende arrefecer a crítica crítica:

– A revolução total de Che, Ricardo, não prescindia do belo – mas também não prescindia do martírio. Ora, товарищ, quem está realmente disposto a se imolar?

– O Che se ofereceu em holocausto, camarada, e, diferentemente do burguês bolchevique Ióssif Stálin, que reteve o cetro do poder até o último instante, o internacionalista argentino abriu mão de todas as suas posições consolidadas para lutar, sem quaisquer garantias, pelo espraiamento da revolução.

– Mas, meu jovem, talvez faça sentido, então, a metáfora de Moisés a peregrinar com os judeus pelo deserto rumo à terra prometida após a libertação do cativeiro no Egito.

Minhas sobrancelhas arqueadas e a testa franzida expressam menos consternação que dúvida. What?

– Que são aqueles 40 anos pelo deserto senão a tentativa de reformar os corações humanos para além da servidão, Ricardo? O deserto e suas privações, o deserto e o aprendizado da solidariedade. A cada dia, aqueles homens e mulheres se viam como um todo tão contingente quanto o traçado efêmero das dunas. Se não houvesse cooperação, não haveria sobrevivência. A condição para a sobrevivência de um era a condição para a sobrevivência de todos. Ainda assim, quando Moisés desce do Monte Sinai com os mandamentos pétreos, as tribos díspares e cada vez mais fratricidas ovacionam o Bezerro de Ouro. Moisés estava certo, Ricardo: precisamos de tempo, tempo! Precisamos do cosmos de Gagárin!

– No more scotch, comrade, otherwise você atingirá o além do cosmos de Gagárin no próximo suspiro!

O dedo em riste de Vissarion requer minha atenção:

– Não, meu jovem, falo com o ímpeto da embriaguez, mas estou utopicamente sóbrio: Che Guevara entendeu Moisés, você está certo, Ricardo, você está certo!

– Mas o que isso quer dizer?

– Quer dizer que o materialista Che Guevara descobriu que era preciso dar à luz um princípio maior do que o ego para que a revolução fosse realmente total. O socialismo, se quiser ser realmente fundado, talvez precise se contrapor ao próprio princípio de sobrevivência.

– Mas, Vissarion, eu não te entendo. What is your point?

– Você morou na minha velha Rússia, não morou?

– Sim.

– Vivenciou resquícios da sociedade soviética, não é mesmo?

– Дa4.

– Esteve em Cuba também, right?

– Sí.

– Muito bem. Se eu disser a você que a verdadeira vida no socialismo de Estado se encontra no mercado negro, você vai me contradizer?

– De forma alguma. Isso vai ao encontro do mais trágico nas experiências que vivenciei.

– Pois veja só: o mercado negro restitui ao fluxo vital da sociedade a competitividade e a usurpação que são as marcas maiores da modernidade. Enquanto os planos quinquenais determinam 500  gramas de carne semanais para cada um, o desvio, a propina e a prostituição voltam a inserir os carteis, as quadrilhas e as máfias como as classes da sociedade sem classes. O raciocínio é sinuoso e flerta de forma rente com o pessimismo e o ceticismo. Mas, se quisermos proceder à radicalidade da autocrítica, precisaremos entrever como o socialismo não apenas não rompeu com o ethos capitalista da modernidade, como, na verdade, se mostrou bastante incompetente para vencer o sistema de mercado em sua própria arena. Senão, vejamos: na Antiguidade, os soldados de César, após as conquistas, tinham 2 ou 3 dias de pilhagens sobre os logradouros derrotados. Propriedades, mulheres e crianças, desnecessariamente nessa ordem, transformavam-se no butim da soldadesca. A torrente do caos era liberada para que, quando se desse o restabelecimento da ordem, os passos de César voltassem a pisar sobre os dorsos vergados de seus comandados tidos como naturalmente inferiores. O nascimento e o estamento delimitavam o destino social. Os mil anos de Idade Média, nesse sentido, só fizeram sacralizar, por séculos e séculos, amém, a hierarquia social ungida pelo Pai Criador. Diante dessa pirâmidade social em que a base não pode aspirar ao cume do poder, que faz a modernidade capitalista? Tudo o que é sagrado é profanado, tudo o que é sólido desmancha no ar: pela primeira vez na história da humanidade, os soldados de César podem almejar o posto do mandatário-mor. Todas as paixões encalacradas, todas as genuflexões, todos os joelhos repletos de cicatrizes e nódoas, todas as costas abauladas, tudo agora pode ser mandado às favas! O capitalismo rompe os aguilhões da desigualdade natural e, como sentencia um de seus profetas, o filósofo inglês Thomas Hobbes, arremessa o homem como o lobo do homem, de tal maneira que a competição encarniçada se transforme no estado de natureza de nossa vida em sociedade. Assim, o germe produtivista vai sendo inoculado da mais tenra vivência até as balizas mais gerais das experiências sociais. No pega-pega, no esconde-esconde, na bolinha de gude e, sobretudo, no videogame, a criança quer ganhar, ela não pode ser um loser, perder já equivale a ser privado de existência. A frustração só deve existir como combustível para o ressentimento – e a retaliação vindoura. Se perdi hoje, amanhã terei minha revanche. Moças e rapazes devem conquistar uns aos outros como se estivessem em uma batalha. A rejeição deve ser escamoteada a todo custo. O desempenho sexual, balizado pelas planilhas de produtividade, deve transformar o prazer em um aríete da maximização de si. Todo esse turbilhão, Ricardo, toda a história violentíssima da introjeção desses marcos como moldura do nosso cotidiano geraram a sociedade mais rica e provida de recursos de que a humanidade já teve notícia. Toda essa riqueza, é claro, poderia acabar com a inanição na Terra em um piscar de olhos, meu caro. Ocorre que, como bem sabemos, a abundância produtiva é fomentada pela lógica de que os recursos são escassos, isto é, de que a riqueza socialmente produzida deve ser distribuída segundo os parâmetros da escassez.

– Como diria um grande escritor brasileiro, aos vencedores, as batatas.

– Bom, Ricardo, se os vencedores ficam com as batatas, restam as cascas aos milhões e bilhões de soldados de César que sonham, de olhos abertos – cafeína, energético, anfetamina e Prozac contra o estômago –, com o trono do generalíssimo. Todos sabemos que não há vagas para todos os postulantes a rei; todos sabemos que, com altíssima probabilidade, não seremos reis; todos sabemos que os reis de hoje já não se fartam com o ócio e as orgias dos senhores feudais. (Quando o ethos burguês de Stálin pôs a aristocracia de Trótski de joelhos, o ditador soviético nada mais fez do que escrever as primeiras páginas do manual de pró-atividade para os cursos de MBA mundo afora: “Prefácio – A virada do primeiro milhão compensa a ponte de safena aos 40 anos”.) Todos sabemos que os reis são contingentes, que a guilhotina os espera. Mas, ainda assim, ninguém quer – já que ninguém pode – assumir a mediocridade dos seus desejos, proclamar aberta e irrestritamente que não tem ambição, que não quer maximizar, que não quer se maximizar, que não quer suplantar os demais. “Mas quem é você? Alguma espécie de hippie?” Digamos o que quisermos, Ricardo, mas é dessa base de competitividade visceral – competitividade que se irradia até os capilares mais recônditos da nossa identidade – que a utopia precisa partir. Ninguém aceitará o retorno aos feudos autogeridos e às comunidades alternativas, senão um punhado de excêntricos que, na verdade, têm muito mais saúde do que a sociopatologia da nossa vida cotidiana. Ainda assim, a utopia não pode abrir mão da nanotecnologia, da aeronáutica, do moderníssimo sistema de telefonia, da internet, da tecnologia médica de ponta, dos efeitos especiais, da fusão entre espaço e tempo nas telecomunições, enfim, de toda a pujança que só o capitalismo pôde gerar para trazer o Éden para a Terra. Mas, товарищ Ricardo, neste preciso quesito, as economias socialistas se mostraram verdadeiros arremedos de competitividade. Os tenebrosos talões de racionamento em Moscou e Havana atestam ao consumismo de classe média em Chicago e em São Paulo o pavor das filas diante dos mercados por conta da subprodução. Assim, o que é que os mercados negros têm a nos ensinar? Que, quando se tenta planificar o ego de César pulverizado pela guerra hobbesiana da modernidade com propagandas industriais de fraternidade de proveta, fraternidade que não está calcada nas experiências reais dos homens, fraternidade que apenas estimula o áfã pelos bens, ao invés de se voltar para valores e práticas que elevem os homens e mulheres para além de si mesmos, em suma, quando se tenta conter a torrente do caos com o bom mocismo do Partido, o autoritarismo mais brutal e o mercado negro mais contumaz restituem ao fluxo da história a verdade daquilo que a humanidade ainda não conseguiu superar.

– Vissarion, meu caro, preciso lhe dizer: suas imagens cataclísmicas me remetem à Havana dos prédios e casa escorados por andaimes de madeira, à Havana das fachadas descascadas, à Havana dos charutos desviados das fábricas de Cohiba e Monte Cristo, à Havana que se tornou o grande prostíbulo da revolução. Se os estrangeiros não podemos nos aproximar das habaneras pelo fato de o ditador Matusalém ter decretado que, assim como é proibido chover nas segundas-feiras, também é vedada a prática (pública) do meretrício, os amigos/cafetões se achegam para barganhar os programas e aquinhoar suas comissões. Pequenas empresas, grandes negócios. Sob as fachadas rotas da arquitetura colonial espanhola, móteis e mais motéis – os prostíbulos itinerantes – se esgueiram com o devido ar condicionado contra o suor caribenho e as devidas propinas para os agentes da fiscalização, os verdadeiros cães de guarda do mercado negro, os anfíbios da revolução: para o público, a austeridade; em termos privados, a contabilidade.

A eloquência de Vissarion começa a claudicar.

Ele arfa e busca o furor das palavras, como se a crítica pudesse devolver à humanidade a possibilidade de cicatrizar os descaminhos da utopia.

(O russo busca o scotch de suas mágoas, mas a garrafa, de que eu quase dei cabo, já está devidamente arrolhada e segura sob o meu casaco.)

– Comrade Vissarion, me diga, o que você faz nos Estados Unidos?

– Fui derrotado, meu jovem, fomos derrotados, e o meu exílio buscou a terra dos winners para que eu pudesse entender, vivencialmente, por que a humanidade tem tanto fascínio por tudo aquilo que a desvia de si mesma.

– Então você tenta sobreviver em meio ao Canto de Circe, camarada?

– Não tentamos todos, meu jovem? Utópica e cinicamente, não tentamos todos?

Eu já não posso sacar a garrafa de scotch para calar, com um longo trago, a pergunta em riste de Visssarion. Para tanto, precisaria dividir – e, consequentemente, arrefecer – minha embriaguez com o camarada de naufrágio.

– E assim, meu jovem, os campos de concentração siberianos estão para o novo homem socialista, assim como os planos quinquenais estão para o mercado negro. O autoritarismo mais férreo se impõe justamente quando e enquanto a verdadeira natureza social do homem destoa do ideal de entrega que ainda não foi alcançado historicamente. E aqui, Ricardo, antes que eu me vá – me dói muito remoer tudo isso, meus pais foram assassinados pelas engrenagens contrarrevolucionárias da revolução, meus filhos não me perdoam pela minha ausência por conta da vida que dediquei ao Partido que agora renego, mas eu preciso dizer, eu preciso escavar o nosso subsolo, o pus precisa jorrar –, mas antes que eu me vá, meu jovem, quero dizer que, quando a URSS ruiu, quando Gorbatchev, em sua transmissão pelo canal estatal, decretou o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a “queda de um dos grandes ideais da humanidade, ideal que se liga às bases mais fundamentais do cristianismo”, me lembrei, imediatamente, de uma reflexão essencial de Hannah Arendt. (Sim, nós a líamos; contra tudo e contra todos, na penumbra de nossos quartos, nós também a líamos.) Em A Condição Humana, Arendt faz uma especulação que, nos tempos áureos da revolução, seria rechaçada a priori. A filósofa leva às últimas consequências a proposta do então jovem Marx de que a condição para o desenvolvimento de um seja a condição para o desenvolvimento de todos. Ora, e se esse um, extinta a necessidade que o prende à vida em sociedade, optasse por se colocar à parte? Tal tese parece eminentemente conservadora, pois todos queremos o fim da opressão – o fim do império da necessidade – que tanto reduz a vida das pessoas. Mas o raciocínio é ardiloso: levantamos pela manhã, nos encaminhamos para o trabalho, suportamos a convivência alheia, ora, já que somos coagidos pela busca da sobrevivência. Então, a imaginação inquieta (e dialética) de Arendt vai em busca da alma do homem sob o império da liberdade: se as pessoas não tivessem mais interesses comuns – hoje, elas têm interesses comuns, ainda que tais interesses sejam atados por relações vistas como eminentemente negativas; se a saciedade pudesse ser alcançada praticamente sem intercâmbios sociais duradouros e relevantes; em suma, se não mais fosse necessário haver uma esfera pública de convívio para que cada um pudesse cuidar do próprio umbigo, o que faria com que a sociedade não se desagregasse em centenas de milhares de milhões e bilhões de ilhazinhas narcísicas apenas voltadas para si mesmas, apenas querendo maximizar os próprios desejos? E, claro, a imaginação de Arendt, sempre acossada pela experiência da guerra e do holocausto, só faz perguntar: e se, em um novo patamar de egoísmo e interesse, essas individualidades encarniçadas como castelos começassem a colidir em busca de suas novas e imponderáveis vontades? O que as poderia conter? Que princípio poderia reunir as pessoas novamente para além da privação? Eis a dúvida de Moisés, Ricardo. Eis, talvez, aquilo que tenha feito Gagárin chorar ao descobrir que a Terra é azul.

Vissarion tenta se levantar.

O russo, velho e alto como um pinheiro, precisa ser içado por um pool de amigos improvisados: o garçom, o segurança, eu, a loira de botas e seu acompanhante a tiracolo o levamos até um táxi.

Algo condoído, acomodo a garrafa de scotch sob o corpo entre adormecido e desfalecido do camarada.

[Algo arrependido, receio que o scotch on the rocks acabe embalando não o revolucionário compulsoriamente aposentado, mas a gorjeta (maquiavélica) do taxista.]

Quando a madrugada me devolve às ruas de Chicago, a embriaguez mede forças com a náusea.

Sensações difusas, desconexas e dolorosas.

Uma dor, eu sei, que vai se transformar em latência, em parte de mim mesmo.

Dor a ser descrita, analisada, esmiuçada – narrada.

Dor muito além de mim mesmo.

Dor do outro, dor conjunta.

Dor da história, pela história, por causa da história.

Qual é o caminho cósmico que se abriu para Gagárin?

O medo de Hannah Arendt pode ser superado como nossa travessia?

O que Moisés ainda tem a nos ensinar com a peregrinação dos homens e mulheres pelo deserto de si mesmos?

Não consigo pensar em respostas para essas perguntas que não sejam narrativas.

Após uma vida que lhe usurpou o devido e esperado arremate; após a derrocada que lhe retirou o sentido utópico da entrega à construção do socialismo, que faz Vissarion a ruminar a história que se entrelaça à sua própria estória em um bunker sombrio de Chicago? Que significam essas ruminações – por que o náufrago se atém ao frágil bote de palha? Por que o velho bolchevique insiste em voltar à tona, por que Sísifo não afunda com a carcaça de sua esperança?

Não consigo pensar em narrativas para essas perguntas que não sejam respostas.

Não consigo narrar pensamentos para essas respostas que não sejam novas perguntas.

Tоварищ Vissarion Ivanovitch Orlov, quando você acordar – se você acordar –, me diga: Sísifo rolará a nossa pedra para além do réquiem?

 

 

 

 

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1 Na zdorov’e!, saúde!

2 Otchen priatno!, muito prazer!

3 Tovarich, camarada.

4 Da, sim.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de Tiro de Misericórdia(Editora nVersos, 2014) e O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos, 2013) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as Memórias do Subsolo legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgz.com.br, o Poral Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito,www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memóriaswww.subsolodasmemorias.blogspot.com , páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. E-mail:within_emdevir@yahoo.com.br




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