Uma tarde com Saramago


[Divulgação]

 

Só podia ser lá, no Consulado de Portugal. Rua Canadá, 324, São Paulo.

Ele disse muitas coisas, consistentes como os sonhos. Algumas gotas eu anotei. A maior parte entrou pelo poros e, creio, já fazem parte de mim. Não tenho mais lembrança.

Estava no Brasil por conta de uma exposição sobre sua obra: “A Consistência dos Sonhos”, no Instituto Tomie Ohtake. Estive na exposição também e lá tropecei com o poeta e professor Horácio Costa. Horácio fora meu professor na Letras e carregava a fama de ser leitor de vários originais do homem. Fotografei-o em uma parede da exposição com quase todos os livros escritos sobre a obra de Saramago. Havia um livro do Horácio na parede. Pena que não sei onde foi parar esta foto.

Dias antes, lá no Consulado, fomos à convite da editora Cia das Letras, o Pipol, eu e a jornalista Egle Spinelli. Éramos o Cronópios. Gravamos sua fala e depois colocamos os melhores momentos na TV Cronópios. Um depoimento antológico. Tudo isso se perdeu com nossa separação e a morte do Pipol.

Anos depois, naquele filme sobre Saramago, José e Pilar, me vejo lá sentado na primeira fila. Ah, a Pilar também estava na primeira fila, mas do outro lado.

Saramago falou sobre seu lançamento mais recente, A Viagem do Elefante, cuja escrita fora interrompida por seis meses por conta de uma doença. Ele teve medo de não conseguir retomá-la. É um conto filosófico daqueles do séc. 17, a la Voltaire ou Diderot. Nele, o humor aparece uma única vez, embora a ironia esteja sempre presente. Foi uma história que, segundo ele, quis ela mesma se contar.

Alguém lhe pergunta sobre direitos humanos. Ele diz categoricamente: “Não há direitos humanos. A Carta dos Direitos Humanos é uma declaração de intenções e foi escrita da perspectiva ocidental”.

“Nós, seres humanos, deveríamos viver como sobreviventes”, diz. “Com uma noção da precariedade dos seus. Viver poupando, administrando”.

“Uma doença vale por toda obra do Paulo Coelho”. Foi a máxima da tarde. Ele quis dizer que sua doença lhe ensinou muito mais do que se tivesse lido toda a obra do Paulo Coelho, que aliás não leu. Risos incontidos…

“Deveríamos nos perguntar: onde é que nos equivocamos, nesta viagem longuíssima da história humana?”

“A corrupção chegou a tal ponto que contaminou a linguagem”.

“A bondade, por exemplo, ninguém mais se arrisca a dizer que ela seria seu ideal. O sistema não admite a bondade”.

“Em todo caso, eu não sou pessimista. O mundo é que é péssimo”, arremata ele.

Sobre a reforma ortográfica: “a questão não está no falar e sim no escrever. Duzentos milhões de pessoas falam português no mundo”.

O que você está lendo no momento?, alguém arriscou uma pergunta.

“O importante são os autores que eu li e não os que estou lendo. O escritor que sou hoje se deve aos escritores que eu li: Vieira, Antero de Quental, Almeida Garret, Kafka (o grande escritor do séc. 20), Montaigne (um gigante). Cada escritor escolhe sua família”.

“Como é que nós portugueses conseguimos parir um homem como Fernando Pessoa?”, pergunta com espanto.

“O que nós contamos têm uma linguagem própria”, diz sobre as narrativas.

Bem, eu fiquei lá ouvindo e esperando a oportunidade de fazer uma pergunta. Ia perguntar sobre a relação dele com a internet, o blogue que levava seu nome e que sempre tinha coisas novas e bacanas. Você mesmo que escreve?, eu perguntaria insolente. Mas não consegui. A lábia do português era muito boa e encantatória, embora transparecesse que estava o tempo todo entediado com a vida e com o público.

Ao final, ainda cruzo com ele e seu editor. Entram em um carrão daqueles, todo preto, com motorista etc. Eu fico olhando e pensando: “Lá se vai a língua portuguesa, com o peso de seu Nobel”.

 

 

 

 

 

 

Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, crítico e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e, ainda estuda, Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Apresenta todos os sábados o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV.




Comentários (1 comentário)

  1. Cléia Plácido, Muito bom! Obrigada pelo envio. Beijos
    20 maio, 2021 as 1:44

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