Branco no Branco


[Kazimir Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, óleo sobre ela, 79,4 × 79,4 cm, 1918. Conservada no Museum of Modern Art, em Nova Iorque, EUA]

 

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p/ Malevich

 

“eu queria
uma poesia
como um quarto branco
quatro paredes
oito cantos”

(Régis Bonvicino)

 

“mas o recinto é branco
todobranco
como se tudo aguardasse
contrito
em silêncio suprematista
o tinir do tímpano cósmico”

(Haroldo de Campos)

 

“em profundo silêncio
o menino, a cotovia
o branco crisântemo”

(Bashô)

 

Em português, só existe a palavra “branco” para batizar o que – do ponto de vista da óptica – não é cor, mas o termo polar do espectro cromático que reflete as cores, cuja antípoda é o preto, que as absorve. Em latim, em contrapartida, “branco” tinha dois nomes: o opaco era chamado de “albus”; o brilhante, de “candidus”. Já no idioma inuíte, os esquimós – vivendo e aprendendo a ver neve a perder de vista desde sempre – têm dezessete denominações para discriminar as sutis variações tonais das gélidas brancuras que se projetam em suas pupilas culturais. É óbvio que quem vive nos trópicos sabe o que é passar um cheque “em branco”, entregar a prova “em branco”, votar “em branco”, casar “de branco”, ficar “branco” de medo, com o lábio trêmulo “branco” de susto ou de frio, enfim, mas não entende que no Círculo Polar Ártico o branco do iglu é abrigo, nem saca que urso branco é sinal de perigo. É claro que os romanos não diziam “deu branco” quando não lembravam o que estavam falando, nem os mais esquecidos de fato diriam que um mais inolvidável evento ou menos relevante fato “passou em branco”. Quando os anos iam passando e os pêlos embranquecendo, os velhos Sênecas não usavam tintura como embuste em busca do tempo perdido, nem trajavam túnicas brancas para passar o Ano-Novo. Jamais passaria pela calva cabeça republicana de um Cícero que alguém de branco, não sendo médico, enfermeiro ou dentista, supondo não ser paciente, noivo, maître ou marinheiro, e descartada a hipótese de ser iogue, espírita, pai de santo ou papa, se não é carnaval nem réveillon, e não estando de camisola de louco, quimono de judô, jaleco de doutor, terno de malandro, uniforme da marinha, camisa do Santos, abadá de filhos de Gandhi, avental de babá, batina de padre ou traje de gala, não estando enfaixado de múmia nem fantasiado de morto sob lençol branco, fosse fantasma. Isso tudo não seria absurdo supor apenas naquela augusta finada Roma dos Césares, mas um delírio impossível também em inuíte, tão insólito como dar “carta branca” para esquimó pescar foca e comer fígado cru no Alasca ou caçar urso e usar a pele como veste ou tapete, esquentando o corpo rijo e o cubículo frígido na longínqua inóspita branca Groenlândia. Os idosos indígenas do Ártico, evidentemente, também nunca precisaram pedir que lhes respeitassem os “cabelos brancos”, porque sempre foram vistos como supremos sábios pelos aprendizes das neves. Aliás, não só para falantes de língua portuguesa os dezessete nomes do branco são incompreensíveis, mas também irremediavelmente intraduzíveis em quaisquer dos milhares de idiomas do globo. Para quem nunca enfrentou as baixíssimas temperaturas do círculo polar, parece mesmo coisa de outro mundo tantas diferenças entre tons de branco: mais azulados ou transparentes, em flocos ou em blocos, mais “fofos” ou compactos, opacos ou brilhantes… Só um esquimó realmente sabe que, quanto mais azul for o branco, mais fina é a camada de gelo sob os pés; ou que, quanto mais “fofo” ele for acima da cabeça, mais provável é uma avalanche: em um e outro caso, o fato é que saber chamar cada espécie de branco pelo nome pode ser uma questão de vida ou morte. Quem dera pudera “ouviver”, enfim, todos os tons – o pelo branco/ o gelo branco/ o branco – do disco branco dos Beatles: sismografados num haicai inuíte. Pintaria, então, o perfume do nome da rosa branca – tão claro quanto Clarice – no quadrado branco sobre o branco de Malevich. A moral dessa história “onomasticromática”, portanto, é que a síntese esfíngica de Haroldo seria só retórica: “o branco da pena branca/ é igual ao branco da neve branca?/ é igual ao branco do jade branco?/ de quantos brancos se faz o branco?”

 

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PS: Impressões ainda “in progress” – não revistas – sobre as brancuras do branco…

 

 

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Paulo César de Carvalho

(Quem não semiografa “o silêncio piramídeo da/ baleia branca”, em outras palavras, naufraga: “soçobram velas/ no tumulto branco”)




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