Um poeta e o coronavírus


Por Felipe Fortuna

Ônibus de O Fantasma da Ópera em Seul (Coreia do Sul) – Foto by Felipe Fortuna

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O poeta e diplomata Felipe Fortuna está em serviço na embaixada brasileira na Coreia do Sul. Ele nos conta os dias de apreensão e espera depois de ter tido contato no hotel com atores e dançarinos do musical “O Fantasma da Ópera” que foram contaminados pelo coronavírus.

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Em Seul (Coreia do Sul), encontrava a trupe de “O Fantasma da Ópera” sempre ali, no café da manhã do hotel. Jovens, muito falantes, bem despertos, todos pareciam ser dançarinos —embora eu identificasse, isolado em sua mesa, um senhor a que mentalmente apelidei de “o gerente”.

Era fácil observar que o grupo era multinacional, multirracial, multilíngue: chineses, canadenses, coreanos, ingleses, sul-africanos. Por acaso, desci de elevador com uma das moças da trupe, americana, ruiva, baixinha, mas não, não fazia o papel da soprano Christine Daaé.

Ela me contou que todos estavam em uma longa turnê pela Ásia e, em seguida, pelo Oriente Médio: as apresentações começaram nas Filipinas e, após a Coreia do Sul, passariam por Singapura, Malásia, Israel e Emirados Árabes.

Diante de tanta animação da bailarina, eu perguntei: “Vocês não estão preocupados com o coronavírus?”.  “Não, de jeito nenhum”, ela atalhou, olhando talvez com perplexidade para mim e para meu terno, dentro do qual imaginou um homem torturado pelas convenções e pelas perguntas. “Aqui nos sentimos bastante seguros, o controle tem sido muito rígido.”

“Mas, e o público?”, insisti eu, tendo por trilha sonora a gargalhada da morte. “O público não deveria temer a aglomeração em um teatro?” “É como eu lhe disse: não creio que estejamos correndo riscos”, insistiu ela.

Eis como eu tentei obter a simpatia de uma bailarina. E, apesar do meu interesse puramente fitossanitário diante da expressão artística do musical de Andrew Lloyd Webber, ainda coincidimos outras vezes no elevador e na cafeteria, e ela jamais deixou de sorrir.

Às vezes, voltando da embaixada ao fim do expediente, encontrava o ônibus que transportava todos os dançarinos para o teatro Blue Square. Era um ônibus-outdoor, que estampava explicitamente a cena em que o fantasma rema e transporta a jovem soprano para o seu esconderijo nas profundas da Ópera de Paris.

Eu sorria com ironia ao ver o diligente motorista do ônibus checando os pneus e polindo a lataria do veículo, orgulhoso do seu trabalho. A bailarina do elevador me garantiu haver uma “demanda reprimida” do público por “O Fantasma da Ópera”, que não se apresentava na Coreia do Sul desde 2013.

Até que recebi a notícia de que uma das dançarinas havia contraído o coronavírus.

O prédio do hotel, de repente, transformou-se em um labirinto mais arriscado do que o da Ópera de Paris: a dançarina infectada, me disseram, ocupava um apartamento no oitavo andar. Felizmente, o meu estava localizado no 17º.

Em seguida, informaram que outro dançarino, um homem, também estava com o vírus, no nono andar. Comecei então a rememorar todos os encontros que mantivera com a baixinha, muito aliviado ao saber que ela pertencia ao 14º andar.

Eu não apertara a mão dela nem de ninguém. Eu conversei calmamente todo o tempo, ela também, e no meu melhor esforço de reconstituição eu não percebia um só perdigoto lançado na minha direção. Tudo indicava, portanto, que eu não fora vítima da trupe de “O Fantasma da Ópera”.

Na mesma sexta-feira de abril, porém, fui avisado de que todos os dançarinos estavam de quarentena no hotel e que a temporada do musical estava cancelada por, pelo menos, 14 dias. Não seria mais possível descer à cafeteria: de manhã, marmitas seriam deixadas na porta de cada quarto. E o governo concordara em fazer testes em todos os hóspedes, no fim de semana.

Subitamente, a realidade ficou monstruosa até para quem estava assintomático: onde será que minha mão tocou? Quando esfreguei os olhos pela última vez? Precisava mesmo ter puxado conversa com a dançarina e seus colegas, todos agora filtrados por uma luz ambígua de vida e de encenação?

A culpa ia se infiltrando, assim como as hipóteses mais birutas de contaminação. Lendo os jornais, descobri que exatas 8.578 pessoas presentes às apresentações de “O Fantasma da Ópera” em Seul já estavam sendo monitoradas pelas autoridades.

No domingo, me apresentei voluntariamente ao teste do coronavírus, montado na cobertura do prédio. Cinco pessoas com suas vestes de astronautas antiviróticos organizavam filas, preenchiam formulários com os nossos dados e, por fim, esfregavam longas hastes com algodão nas pontas em nossas gargantas e em nossas narinas. Tudo feito de modo rápido e eficiente, como eu já esperava, mas dessa vez havia algo diferente: em cada muco, uma sentença.

Voltei ao apartamento decidido a esperar e a enfrentar um resultado “positivo”. Sendo positivo, mas temendo o “positivo”. Às 20h, um funcionário do hotel telefona e informa que havia imagens minhas nas quais eu aparecia a caminhar pelos corredores e a entrar no elevador sem máscara. Ele pediu, gentilmente, que eu deixasse de agir assim.

Em um impulso dedutivo, concluí que ele e todos no país já sabiam que meu teste dera “positivo”, apesar de ele, calmamente, explicar que estava apenas sendo realizado cruzamento das imagens dos dançarinos infectados com as de todos os hóspedes, para identificar algumas possibilidades de contato. Fui dormir com a cabeça cheia dessas possibilidades.

Na manhã seguinte, uma silenciosa, sub-reptícia, cavilosa mensagem chega por SMS: indica, como se eu ouvisse clarinadas, que o teste dera “negativo”.

Ainda me dei o direito de tripudiar, perguntando a mim mesmo: e de ontem para hoje, quem sabe um vírus se imiscuiu no corrimão da escada, na maçaneta das inúmeras portas e veio agora se alojar, com sua vocação para poeta parnasiano, em algum “úmido remanso”?

Leio nos jornais que, superado o incidente, “O Fantasma da Ópera” seguirá sua turnê —e deverá apresentar-se até mesmo em Daegu, o epicentro nacional da pandemia, a cidade da seita religiosa que teve o maior número de contaminados.

Lembro-me apenas que uma das canções do musical se chama “Point of No Return”, que traduzo assim: “Além do ponto sem retorno, / A última fronteira, / Que segredos cálidos nunca ditos / Serão aprendidos, / Além do ponto sem retorno?”

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Felipe Fortuna é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente O Mundo à Solta (Topbooks) e O Rugido do Sol (Pinakotheke), ambos de poemas.




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