Um vitral abrindo-se para o céu
Um vitral abrindo-se para o céu
Leonardo Chioda estreia com Tempestardes
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Conheci Leonardo Chioda primeiro como estudioso do Tarot e me impressionou não apenas sua erudição mas, sobretudo, sua visada simultaneamente imersa na contemporaneidade e na ancestralidade, além de uma plasticidade muito própria em lidar com os signos. Ao conhecer sua poesia, a admiração aumentou por perceber que a palavra poética e a dimensão oracular se dão as mãos na sua experiência como criador/leitor do mundo. Assim, é com grande alegria que chega até mim o primeiro livro de Chioda, Tempestardes (Patuá, 2013).
Já a partir do excelente título, o livro convoca a uma experiência dos sentidos, como deve fazer e ser toda boa poesia. Evocando Bachelard, as palavras e arranjos escolhidos pelo poeta pensam, sonham, criam formas vivas. Chioda estabelece um jogo no qual o mínimo se expande e se dilata, o musgo abrindo-se para o vitral, o vitral abrindo-se para o céu, o céu para o inominável. No poema Fluxo. Labirinto., os primeiros versos são exemplares: “as paredes descascam. não se vê com clareza, nem pelo fio/delicado da suposição, o que há por trás da tinta de dois séculos/ tudo dói antigo (…)”. Em Epitalos, o mesmo procedimento: “terra tal concha/sevilhana, fértil/como alamedas de azulejos/ à vista dos vitrais. só falta/ saber-se”. Muito embora solicite um olhar contemplativo é na ação que essa poesia se espalha.
Aliás é bastante apropriado convidar Bachelard para tratar da poética de Chioda, posto que este parece ter tomado ao filósofo francês como mestre condutor senão do seu ofício, ao menos desse primeiro livro. Estão em Tempestardes as tensões entre exterior e interior, uma inclinação para a imensidão/intimidade, as concavidades e convexidades das pequenas coisas, uma preferência pela oposição complementar entre efemeridade e cosmicidade. No poema À Singela Botânica dos Sonhos será o próprio Bachelard a surgir, palavra e deus tornado verbo, “o olho se pondo/ a te Bachelard no original”.
Há, ainda, nessa poética, um sentido de organicidade que sai do mundo natural para o mundo das coisas, a vida que pulsa nos morangos e que ondula nas águas contamina azulejos, ladrilhos, vigas de ferro, dá ossatura, nervos, pêlos crispados às próprias palavras. O poeta adverte, “o encoberto é sempre novo/ vida ladrilhada” (Azul Antigo). E “há de se ler as pedras. os dedos na relva, sentindo o mármore – as capas/dos livros. sentir o assombro aberto em tempo./ a circunferência da memória – a árvore está, pois, / sempre na semente. ainda o ninho cujo segredo, minha/ dívida,/ é escutar a flor” (Túmulo do Poeta).
O imaginário de Chioda é tomado por uma botânica particular e um bestiário próprio com os quais fabula e confabula: jaguares, sereias, leões, tigres, gárgulas, meimendro, sálvia, hera, bácaro. Como investigador das artes divinatórias não se pode esquecer que algo de mágico e solene se coloca no percurso do livro. O que poderia, em outro caso, parecer forçado, em Tempestardes flui, por não ser justamente colocado como centro. Trata-se de dosar o pharmakós para que seja veneno quando precise ser veneno, remédio quando precise ser remédio.
É sem dúvida uma boa-nova a publicação desse livro, um belo livro de estreia. E se estou atrasada para dizer “imprima-se!”, nunca é tarde para recomendar: “leia-se!”. E para concluir, um dos belos momentos do livro:
Prece da Tarde
azul na terra
como no céu.
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Micheliny Verunschk é autora de três livros: Geografia Íntima do Deserto (2003, indicado ao Portugal Telecom no ano seguinte), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (2010). Escreve porque é tudo o que pode saber. Gosta de teoria literária, moda, arquitetura, design, arte de rua e, ocasionalmente, de música. É blogólatra e workaholic. Costuma dizer que Osman Lins é seu pastor e por isso a ela nada faltará. Já viveu muitas vidas numa só e está sempre curiosa para saber as cenas do próximo capítulo.
21 setembro, 2013 as 20:28