Poesia para ser cantada, para ser falada
Poesia para ser cantada, para ser falada: Leandro Durazzo
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A voz é o espaço do poema por excelência. Ou deveria ser. Se fôssemos pensar numa arqueologia da palavra poética a encontraríamos como uma realização antes de tudo sensorial, uma performance do corpo em sua totalidade: poesia para a voz, para os ouvidos, para ser dançada, poesia para os sentidos. Poesia, pois, como palavra da ordem do sagrado. Ora, para Paul Zumthor, a performance é o único modo vivo de comunicação poética (2000) e Jean Cohen (1987) afirma que “o poeta seria então aquele que não esqueceu o que é sentir, e é por isso que ele realiza essas alianças de palavras que parecem estranhas àqueles que perderam a recordação delas e já não veem nas palavras senão conceitos”. Estar vivo e sentir parecem ser, portanto, condições inerentes à ação criadora de poesia, mas é necessário que se lembre que nada se opera nesses termos sem a presença poderosa do corpo, das percepções.
Reivindicando um espaço que desde a Grécia antiga, com seus aedos, lhe foi seu por vinculação direta, o poeta contemporâneo parece buscar os interstícios entre os quais corpo e espírito se encontram e não se opõem, o espaço de uma palavra poética poderosa, que se finca no real (ou nas possibilidades deste) por intermédio do corpo. Sem abolir o aspecto intelectual da feitura da poesia e comunicando-se muitas vezes a uma performance oral de raiz popular e urbana, esses criadores parecem buscar o Orfeu perdido, o xamã oculto, e alinhavam a contemporaneidade a um passado que parecia distante, recuperando para o lugar da criação seus elementos constitutivos mais caros: a voz e o corpo tanto do poeta quanto do seu leitor/ouvinte. Nesse sentido, compreende-se que o texto poético, para além do registro gráfico impresso, é sempre uma obra aberta, dada às várias possibilidades de leitura/recepção e execução performática. O poema está em permanente movimento, sujeito a todo tipo de alterações, acréscimos, subtrações, em maior ou menor grau, desobedecendo ou colidindo com as normas estabelecidas, respirando. Vivo e mutável, o poema comunica uma diversa gama de mensagens e se apresenta, desse modo, permanentemente em progresso. É exigente, e em sua exigência pede corpo e intelecto integrados e atentos e, ainda assim, simultaneamente desregrados. Um paradoxo para uma sociedade longe demais dos voos e do poder ritual da palavra.
É sob essa perspectiva que encontro a poesia de Leandro Durazzo. Sem livro publicado, ainda, o poeta espalha sua produção na página pessoal que mantém no facebook e no blog mísera mesa. E impressiona, tanto pela proficuidade, como pelo bom uso que faz da palavra. Poesia para ser dita em voz alta, produto de um estado de confronto entre o que o ouvido capta, a escritura elabora, a língua ressoa, esta parece ser uma definição possível. Ciente das variações melódicas que pode imprimir ao verso, Durazzo flexiona as unidades ritmícas de modo que a energia das palavras não se esvai, pelo contrário, movimenta-se num jogo permanente entre a música e a fala, uma resvalando na outra, sem que no entanto a colisão seja perceptível, como é o caso de canção dialógica, não por acaso musicada, deslizante na bela voz de Isabela Morais. As entonações crescentes e descendentes são enfáticas nessa poética, e responsáveis, certamente, por uma cadência tão marcadamente própria.
Em ela foi meu hospício, o manuseio das vogais e das oposições/complementaridades entre pares como hospício/serenidade, alegria/maldade imprimem ao poema uma inflexão ritual à qual a leitura empreendida pelo poeta José Juva põe em relevo. O poema, salmodiado na voz de griô de Juva, reivindica territórios de claridade e escuridão, as modulações da paisagem que o poema constrói em torno de si.
ela foi meu hospício
sede e serenidade
ela foi alegria foi broto e flor e maldade
silêncio lacrado e carrêgo inclemente
ela foi o buraco na gente
a bala varando a varanda gelada
de neve
ela foi breve
mas foi tanto
que me espanta o espanto de estar por aqui
sabendo que um dia morri
e hoje canto
Veja-se, também o poema um estudo em concreto: amor parte VII, elaborado a partir do poema Duas Borboletas, de Ted Hughes (trecho em aspas traduzido por Sérgio Alcides):
“Borboletas-monarcas, descobrindo-se vivas,
Ela embriagada com o vapor da terra, e ele
Embriagado com ela […]
Ela o ignora
Enquanto ele se acerca, pela direita, pela esquerda, alvoroçando
As asas abertas, bafejando a penugem dela
Com sua aragem perfumada, agitando as padronagens,
Seu apelo pavonesco e tropical de artesania,
Aventurando-se mais perto, sobre cada lâmina de folha,
Tremendo como inibido, bem perto de tocá-la –
E ela outra vez vai embora, vacilando sem noção nenhuma.”
ela o
ignora
ela
vai embora
ele
vai atrás
o amor é não ter paz
senão co’as asas
redobradas
sobre o
outro
dia
o amor era universo
hoje
o amor é padrões fractais na asa de uma borboleta que voa
atrás da flor que voa na flor e que pousa
amor, em espanhol, é mariposa
e ela
mora
numa
boa
no
amor
Nesse poema, a utilização do compasso das rimas internas ora em “o” aberto, ora em “o” fechado imprime uma musicalidade oscilante que evoca o próprio voo das borboletas: ignora/embora/redobradas, amor/co’as/outro, e a elegante fórmula amor/mariposa/mora, para citar apenas alguns exemplos. Paul Zumthor (2010) diz que “às vezes, a mesma melodia traz diferentes canções transitando de uma à outra no curso de sua história”. Particularmente neste poema parecem mesmo conviver múltiplas canções, um poema movente e que exige do leitor essa mesma capacidade para o movimento. A coloquialidade, que parece ser um traço caro a essa poética, colabora neste e em outros textos para um duplo giro, ora em torno do eixo da contemporaneidade da língua falada, ora em torno de outro eixo, a errância dessa mesma língua. E Durazzo brinca com as dobras. Cotejando o poema de Hughes, vai no que Deleuze chama a dobra da dobra, o elemento mínimo, não operando simplesmente com a elasticidade que lhe é disponibilizada mas com a infinitude de uma dobra sobre outra, movimento de condensação que faz do seu poema um origami, uma alteridade fundamental (sou o outro sem deixar de ser eu mesmo).
Para concluir, pecando um pouco pelas paráfrases, há poetas que não precisam de denúncia. É o caso de Leandro Durazzo, cuja construção poética é, para falar o mínimo, digna de atenção. Da sua singularidade deixai que ele mesmo o diga:
nada está
separado
nada
está separado
porque nada
de um ponto
a outro
nada de um ponto a outro
tem entre si um vácuo
nada
neste planeta
está separado
a mais longínqua lonjura
tem com esta terra dura
o vínculo azul do barro
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Pós-escrito: Me pareceu que este texto, por falar na premência da voz, ficaria incompleto sem a inflexão que dei aos poemas de Leandro. E é nesse sentido que apresento minha leitura para o poema II, da série o amor é um brownie. Aliás, me ocorre que será um bom exercício para esta coluna a leitura ocasional, mas não acidental, de poemas.
http://youtu.be/V_NfPyA8aMs
Notas
COHEN, Jean. A plenitude da linguagem: teoria da poeticidade. Coimbra: Livraria Almedina, 1987
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.São Paulo: Educ, 2000.
________.Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. São Paulo: Editora UFMG, 2010.
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Micheliny Verunschk é autora de três livros: Geografia Íntima do Deserto (2003, indicado ao Portugal Telecom no ano seguinte), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (2010). Escreve porque é tudo o que pode saber. Gosta de teoria literária, moda, arquitetura, design, arte de rua e, ocasionalmente, de música. É blogólatra e workaholic. Costuma dizer que Osman Lins é seu pastor e por isso a ela nada faltará. Já viveu muitas vidas numa só e está sempre curiosa para saber as cenas do próximo capítulo.
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