A noite luminosa de Novalis


A noite luminosa de Novalis em uma rápida anotação

 

Giorgio Agamben, no ensaio O que o contemporâneo? (2009), define: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Recorro a Agamben para falar sobre Novalis (1772-1801), poeta alemão cuja obra Hinos à Noite é fundamental para a compreensão do Romantismo ou, como diz a seu respeito Wilhelm Dilthey (1987), um homem cujos pontos de vista “podem permitir que penetremos nos motivos gerais em que se inspira a cultura intelectual de sua geração”. Geração que, como anota Dilthey, se segue a Goethe e Kant.

Agamben usa de uma explicação astrofísica para situar esse escuro da contemporaneidade:

No universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz. (2009: 64)

E é precisamente nesse escuro luminoso que me detenho e encontro Novalis. Composto em seis ciclos, Hinos à Noite foi escrito sob o impacto da morte da noiva do poeta, Sophie von Kühn, e essa morte é imprescindível para a compreensão do seu pensamento místico -filosófico. Em carta a Schlegel, Novalis diz: “Chegou o meu outono, e sinto-me extraordinariamente forte e livre. – De mim ainda algo resultará. Isto posso sagradamente assegurar-te – me é evidente a divina fortuna que foi sua morte. – Foi uma chave para o todo – um passo maravilhosamente adequado. Só um ser assim tão puro poderia ser libertado, e só assim imaturo a maduro passaria. Uma força simples e poderosa invade meus sentidos. Meu amor tornou-se uma chama que lentamente vai consumindo tudo aquilo que é celeste”.

Chegando a afirmar que o que sentia pela noiva falecida, uma jovem de 14 anos, não era amor, mas religião, Novalis (pseudônimo de Friedrich von Handenberg) empreende em Hinos à Noite um afastamento do “tumulto do mundo” em direção à noite, morte transfigurada, face permanente de Deus sob uma perspectiva cristã. Em Novalis,  porém, diferentemente de São João de la Cruz, a noite não é entendida em sua polaridade negativa. Pelo contrário, é a luz do Sol que vai representar a escravidão e a impermanência. À luz, a voz poética inquire: “Podes oferecer-me um coração fiel? Tem teu sol olhos amorosos que me reconheçam?”

De fato, em Novalis, a noite é esplendorosa, paradoxalmente luminosa em suas sombras. É sobretudo no primeiro ciclo que esta luminosidade se prefigura. A noite é benevolente, piedosa, onipotente, rainha do universo, protetora do amor. “Quão pobre e pueril se me apresenta a luz agora!”, proclama o poema. A amada, ” sol da noite” funde-se à própria escuridão como a luz das galáxias distantes de que fala Agamben. Nas profundezas noturna, as trevas são a emanação de uma luz perpétua e verdadeira. Diz a apresentação à edição brasileira dos Hinos:

A Noite de Novalis é uma rede intrincada de símbolos, não é uma metáfora plana que se esgota em seu sentido mais imediato. No pensamento simbólico de Novalis se fundem a noite metafísica, a noite fatal da morte redentora, a noite do inconsciente, a noite mitológica, a noite eterna de paz e consolo, a noite órfica do resgate da amada, a noite da fusão amorosa, a noite nupcial, de completa união, a noite mística das revelações, das visões e dos sonhos. (1987: 08, 09)

A noite de Novalis é também a sua “flor azul”, a “flor de obsessão” do poeta romântico, aquela que, encontrada nas profundezas de uma caverna, brilha ao infinito.  A noite de Novalis é a morte, a divindade, Sophie e o poema, artefato de linguagem que lançado sobre o sujeito é simultaneamente facho de luz e trevas:

Porém mais sagradas que as estrelas reluzentes são os olhos infinitos da Noite abertos sobre nós. Eles veem mais longe que os olhos pálidos das incontáveis legiões – prescindindo da luz eles sondam as entranhas da alma amante – o espaço mais sublime. Glória à Rainha do universo, altíssima anunciadora dos reinos mais santos, protetora do Amor venturoso – ela para mim te envia – terna amada – adorado sol da noite – súbito me vem à consciência – pois sou teu e meu – tu me revelaste a Noite como fonte de vida, e de mim fizeste homem. Que a chama do espírito devore meu corpo e então, como aérea substância, eu possa em ti mais intimamente me dissolver e assim seja eterna a nossa noite de núpcias. (1987: 34, 35)

Como disse Otto Maria Carpeaux a seu respeito, Novalis foi um “espírito antecipador: poetas simbolistas e poetas surrealistas, sobretudo na França, veneravam-no como precursor” (s/d : 29).  Alcançado pela luz inalcançável, tornado homem pela escuridão na qual se deixa envolver, Novalis é intempestivamente aquele que se torna contemporâneo de si mesmo.

 

 

 

 

 

Referências
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AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradutor: Vinícius  Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

Novalis: Aprendizagem da filosofia (a poesia da morte). Ephêmera Uma revista marcada para morrer. Recife, PE: s/d.

NOVALIS. Hinos à Noite. Tradutores: Nilton Okamoto e Paulo Allegrini. Introdução de Wilhelm Dilthey. Mairiporã, SP: Esfinge Editorial, 1987.

 

 

 

 

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Micheliny Verunschk é autora de quatro livros: Geografia Íntima do Deserto (2003, indicado ao Portugal Telecom no ano seguinte), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003),  A Cartografia da Noite (2010) e  Nossa Teresa – Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2015, na categoria Melhor Livro de Romance do Ano – Autor Estreante com mais de 40 anos). Escreve porque é tudo o que pode saber. Gosta de teoria literária, moda, arquitetura, design, arte de rua e, ocasionalmente, de música. É blogólatra e workaholic. Costuma dizer que Osman Lins é seu pastor e por isso a ela nada faltará. Já viveu muitas vidas numa só e está sempre curiosa para saber as cenas do próximo capítulo.




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