Três poemas de Gloria Anzaldúa


Descendente de mexicanos, Gloria Anzaldúa nasceu no Texas, Estados Unidos, em 1942. Feminista interessada em temas como mestiçagem, transculturalismo e hibridismo cultural, é autora do livro Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1987), uma obra radicalmente híbrida, transitando entre os gêneros e as línguas. Ao assumir, entre outras, as personas da Mulher Cobra, da Mulher Cacto e de divindades pré-colombianas como Tlazolteotl, deusa ambígua da purificação e da sujeira, dos partos e dos crimes sexuais, o sujeito poético do livro The New Mestiza empreende uma longa jornada de autoconhecimento da condição feminina em seus aspectos culturais, sociais, espirituais, ao mesmo tempo em que inquire duramente as representações autoritárias da sociedade na qual se insere. É um livro político. Em Anzaldúa a formulação da identidade mestiça rejeita a lógica binária e as noções de pertencimento fundadas numa suposta hegemonia branca, masculina e ocidental. Na visada feminista da autora as questões da mulher pobre, mestiça, homossexual, à parte dos ideais eurocêntricos são marcadamente diferentes das questões da mulher branca, inscrita nos padrões sociais da classe média dominante. Não por acaso, Gloria Anzaldúa é uma das principais debatedoras do feminismo da diferença nos Estados Unidos.

Os poemas aqui traduzidos pertencem a The New Mestiza. O primeiro do conjunto, Útero sem túmulo ou “o banho da purificação” remete diretamente a uma passagem dolorosa da vida de Anzaldúa. Devido a problemas de origem endócrina, a autora menstruou precocemente aos 3 anos de idade e também muito cedo passou por uma histerectomia, cirurgia para retirada do útero. É da perspectiva dessa perda que trata o longo poema e é possível, a partir da leitura, traçar um paralelo com a obra também biográfica e dolorosa da pintora mexicana Frida Kahlo. O segundo poema, A Canção do Canibal, reflete sobre um tema cultural particularmente caro à cultura latino-americana e, sobretudo, brasileira. Mais que canibalismo, o ato de comer a carne humana e assim absorver o outro em seus dons e particularidades, transformando-se enfim naquele que foi devorado, trata do próprio movimento mestiço e híbrido a transtornar os padrões de quem é o outro e de quem sou eu. Chama a atenção a inserção de elementos católicos naquilo que evolui como um batuque e dança selvagem. Finalmente, no poema A Mulher Cacto, a figura feminina assume xamanicamente sua condição natural, de ser da natureza: mulher, animal, planta, a própria areia do deserto.

Gloria Anzaldúa faleceu em 2004 e deixou vários livros publicados, entre eles, This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1981), importante antologia de autoras feministas de várias cores, origens e culturas e que questiona o lugar do feminismo da diferença frente ao feminismo “branco” de classe média alta.  Este livro, do qual Anzaldúa foi co-organizadora, lançou as bases para a Terceira Onda do Feminismo.

 

 

Útero sem túmulo)
(ou o banho da purificação)

 

Estendida numa cama estreita

as roupas encharcadas de sangue.

Sei que silenciosa nada sou.

Desditada,

distante, com a boca inchada,

vomito algo amarelo,

repito palavras sem sentido.

Sinto algo arrebentando

dentro de mim.

Estou imóvel nas margens

de uma noite escura.

 

Um espinho grosso lhe pica a nádega,

seu corpo estremece.

Se entrega a um sabor de ferro

e ao éter.

Sonha com uma mulher

que urina pus

e come a própria merda.

 

Revolvo e repito palavras sem sentido.

Algo se rompe dentro de mim.

Como sujeira um agitado vento me empurra.

Me sinto alheia, julgada

pelo urubu dentro do meu ventre.

A fera noite entra armada com navalhas

me encontra tão pertinho,

gesticula, me perfura duas, três vezes.

Percebo que me arranca as entranhas.

Que varre meu útero para o lixo.

Útero sem túmulo.

 

Sonha que toma o “banho da purificação”

em honra de Tlazolteotl.

Por trás dela vê uma figura

tragando o próprio sol.

Com a obsidiana lhe pica quatro vezes, cinco.

Estou morta? Eu pergunto.

Por favor, enterrem meu útero comigo.

 

Um relâmpago perfurando o céu

dispersa a noite.

Me sangram, me sangram.

Tenho sinais da morte:

fumaça entre meus olhos

que reluzem pouco;

o rosto escurecido.

Alguém me empurra para as chamas

aspiro fumaça de cabelos chamuscados.

Esta pequena morte,

uma comichão que não me deixa quieta.

Um dedo sai do céu e desce,

se insinua em minhas rachadas cavidades.

Chispas saem do buraco

e me preparo e me despeço da vida assassina.

Revolvo e repito palavras sem sentido.

Dentro de mim alguém se queixa.

Sonha com um rosto tisnado,

a boca cuspindo sangue,

e logo comendo atole de mel e chili.

Do oriente uma larga cicatriz racha o céu.

A perfura duas vezes, três, sete.

 

Padeço de um mal: a vida,

enfermidade recorrente

que me purga da morte.

Me sangra, me sangra.

Derramando um aguaceiro

verte a morte pela minha boca.

Viro o rosto,

Revolvo e repito palavras sem sentido:

A vida enema, útero sem túmulo.

Dentro de mim algo se arrebenta

e um agitado vento empurra os pedaços.

 

 

A Canção do Canibal

.
Este é o nosso costume

o consumo

das pessoas a quem amamos.

Tabu carne: intumescida

Genitália         mamilos

Escroto          a vulva

As solas dos pés

As palmas das mãos

Fígado e coração saborosos.

O Canibalismo é uma benção.

 

Eu vou usar seu maxilar

Em volta do pescoço

Ouvir suas vértebras

Osso por osso

Dançando no meu pulso.

Seus dedos num cinto

Em torno da cintura

num abraço íntimo.

Sobre o meu coração

Um broche com um cacho do seu cabelo.

Noites                        eu dormirei embalando

Seu esqueleto                       afiando

Os meus dentes        no seu sorriso desdentado.

 

Aos domingos, missa e comunhão,

Aí então colocarei suas relíquias para repousar.

 

 

Mulher Cacto

.
A mulher do deserto

tem espinhos

os espinhos são seus olhos

se te aproximas, te arranha.

A mulher do deserto

tem largas e afiadas garras.

 

A mulher do deserto vê a vespa

cravar o seu ferrão

e trepar com a tarântula

Vê que a arrasta a um buraco

põe sobre ela um ovo

o ovo se abre

o bebê sai e come a tarântula.

Não é fácil viver sobre esta terra.

 

A mulher do deserto

se enterra na areia com os lagartos

se esconde como rato

passa o dia no buraco

tem o couro duro

não resseca ao sol

vive sem água.

 

A mulher do deserto

mete a cabeça em si mesma, tartaruga,

desenterra raízes com o focinho,

está com os javalis,

caça coelhos com os coiotes.

 

Como uma flor, a mulher do deserto

não dura muito tempo

mas enquanto vive enche o deserto

com flores de palma e paloverde.

 

A mulher do deserto

enroscada é serpente cascavel

descansa de dia

mas à noite quando é mais fresco

agita-se com a coruja,

e com as cobras alcança um ninho de pássaros

e come os ovos e os filhotinhos.

 

Quando em fúria a mulher do deserto

cospe sangue dos olhos como o lagarto cornudo

e quando escuta um sinal de perigo

salta e corre como a lebre

e se transforma em areia.

A mulher do deserto, como o vento,

sopra, faz as dunas, as colinas.

 

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Micheliny Verunschk é autora de três livros: Geografia Íntima do Deserto (2003, indicado ao Portugal Telecom no ano seguinte), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (2010). Escreve porque é tudo o que pode saber. Gosta de teoria literária, moda, arquitetura, design, arte de rua e, ocasionalmente, de música. É blogólatra e workaholic. Costuma dizer que Osman Lins é seu pastor e por isso a ela nada faltará. Já viveu muitas vidas numa só e está sempre curiosa para saber as cenas do próximo capítulo.




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