Um cineasta de abordagens polêmicas


Sylvio Back, um cineasta que vira a história do Brasil pelo avesso

Foto: Mauro Vieira / Agencia RBS

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Por trás da história oficial registrada nos livros e na memória coletiva, Sylvio Back costuma enxergar uma ponta solta a ser recosturada e iluminada por outro ponto de vista. Questionar fatos e mitos, na ficção e no documentário, levou o cineasta catarinense de 79 anos a trilhar no cinema brasileiro um caminho permeado por polêmicas. Já falou dos nazistas entusiasmados do sul do país que foram para a sombra quando Hitler começou a cair (em Aleluia, Gretchen, 1976) e observou com sarcasmo a campanha dos pracinhas da FEB na II Guerra (em Rádio Auriverde, de 1991).

Os 12 longas-metragens que Back realizou desde 1968 foram reunidos pela distribuidora Versátil em duas caixas de DVDs, denominadas Cinemateca Sylvio Back, à venda por R$ 94,40 cada — o volume 1, que estava fora de catálogo, é um relançamento, e o volume a segunda traz seus filmes mais recentes. Back diz que faz um “cinema engajado antes de tudo com o imaginário do espectador”. Reconhece ser um provocador:

— Polêmica não se premedita. É o que tem sucedido com quase todos os meus filmes desde Aleluia, Gretchen, no qual chamei Getúlio Vargas de “ditador” pela primeira vez no cinema brasileiro. República GuaraniGuerra do Brasil remoem acidamente mitos da proto-história do Rio Grande do Sul, Cruz e Sousa — O Poeta do Desterro foi boicotado pela comunidade afrodescendente, que tacha o genial poeta de “preto de alma branca”.

O diretor destaca o barulho provocado por Rádio Auriverde:

— Houve um infausto escriba carioca que, saudoso da ditadura militar, invocou a necessidade da volta da censura a fim de evitar que fosse ao ar. Ainda que vítima até de ameaças à integridade física ou de repórteres vaticinando o fim da minha carreira, nenhum filme provocou uma reflexão de que deveria ter sido feito de outra forma. Senti-me confortável diante das reações terroristas ao conteúdo abusado e politicamente incorreto de Rádio Auriverde.

Back define sua marca:

— Faço um cinema que desconfia. Em momento algum manipulo a história para que ela se adapte às minhas convicções. Jamais levar o espectador pela mão feito criança, eis o mantra do meu cinema, pois a plateia é sempre mais esperta do que o filme e o diretor juntos.

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Entrevista com Sylvio Back: “A história é sempre um cadáver a ser exumado”

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Provocador e original são adjetivos que costumam ser atrelados ao senhor. Eles lhe parecem justos com sua trajetória?

Uma verdade é irrefutável: polêmica não se premedita. Ela acontece, simples assim, independente do seu desejo. É o que tem sucedido com quase todos meus filmes. Desde Aleluia, Gretchen (onde, pela primeira vez no cinema brasileiro, chamei Getúlio de “ditador”, o que me custou surda execração no Festival de Gramado!). República Guarani e Guerra do Brasil, que remoem acidamente mitos da proto-história do Rio Grande do Sul, Cruz e Sousa — O Poeta do Desterro, boicotado pela comunidade afrodescendente, que tacha o genial poeta de “preto de alma branca”, ou O Contestado  — Restos Mortais, quando elenquei médiuns em transe como porta-vozes da história. Sim, essa independência moral tem custos, tenho consciência. Mas, Rádio Auriverde (1991) foi o que mais levantou incompreensões. Houve até um infausto escriba carioca que, saudoso da ditadura militar, invocou a necessidade da volta da censura a fim de evitar que fosse ao ar. Ainda que vítima até de ameaças à integridade física, ou de repórteres vaticinando o fim da minha carreira, nenhum filme, no entanto, provocou uma reflexão de que deveria ter sido feito de outra forma. Simplesmente porque jamais entrei pela portas dos fundos da história. Senti-me confortável diante das reações terroristas ao conteúdo abusado e politicamente incorreto de Rádio Auriverde quando a mídia em todo o país abriu generosos espaços ao filme. Como faço um cinema que desconfia e, portanto, na outra margem do discurso político ideológico da vez, em momento algum manipulo a história para que ela se adapte às minhas convicções. Nem tento impor ou fundar alguma verdade. Jamais levar o espectador pela mão feito criança, eis o mantra do meu cinema, pois a plateia é sempre mais esperta do que o filme e o diretor juntos! 

O senhor tem uma obra muito focada em episódios e personagens históricos de diferentes épocas. Em um país que pouco valoriza sua história e sua memória, como o Brasil, seu trabalho é devidamente valorizado por público e crítica?

Não consigo vislumbrar uma fronteira muito nítida entre ficção e documental. Quando pessoas e personas, circunstâncias e instâncias do cotidiano ou da história são transportados para a tela, tudo vira memória. Como saber onde começa um e termina outro? Tanto é que nos filmes de enredo ou nos docudramas, nosso passado recente ou remoto é submetido a uma voraz atualização e bricolagem (ressignificação icônica e irônica de filmes de arquivo), objetivando conturbar o espectador. Adoro deixar a plateia órfã, sem corrimão de qualquer natureza política, ideológica ou moral, creditando a ela a conclusão da narrativa que o filme deixou em aberto. Portanto, é um privilégio poder estabelecer essa empatia libertária, de mão dupla, com quem o assiste. Em síntese, no futuro, gostaria que, quando minha obra fosse lembrada, se dissesse que cada filme do Sylvio Back parece ter sido feito por um diretor diferente.

Questionar a história oficial, sobretudo quando ela é balizada por patriotismo ou pela voz dos mais poderosos, é fundamental para compreendê-la e interpretá-la sob diferentes pontos de vista e complexidades narrativas?

Há sempre uma inequívoca vocação “chapa branca”, como se fora a “voz do dono”, e de viés evangelizador rondando o cinema brasileiro, de ficção e/ou documental. E não é de hoje. Já se pode afirmar, pela longevidade desse compromisso, que ele se localiza na retomada nos anos 1990, após o fechamento na marra da Embrafilme pelo governo Collor. Há toda uma geração de jovens, alguns nem tanto, inclusive da minha faixa etária, que abriu mão de questionar o passado do país, preferindo repicar as falácias da história oficial, seja ela de cunho estatal, acadêmico ou partidário. Como se o dissenso fosse palavrão. É assustador, quando não, triste e vergonhoso, assistir a dezenas de docs restaurando utopias que já viraram entulho da história na Europa e nos Estados Unidos e que hoje são recauchutadas com a maior desfaçatez. Sem ao menos alguma desconfiança de que a verdade permanece no fundo do poço, como dizem os chineses.

O cinema brasileiro contemporâneo tem mostrado interesse por nossa história? Que filmes produzidos nos últimos anos lhe chamaram a atenção?

Me permita um reverente silêncio em relação a títulos ficções ou docs mais recentes que se detêm na investigação da história contemporânea ou remota do Brasil. Com as exceções que confirmam a regra, os filmes não ultrapassam a soleira da “história oficial”, mantendo-se caninamente fiéis a ela, aí tanto faz seja de direita seja de esquerda. A história é sempre um cadáver a ser exumado, ela não termina com o pretérito. Ao contrário, o pretérito é sempre testemunha de acusação, rara e ralamente absolve o consolidado. E, quando se investe em fazê-lo, frequentemente exalta o mito, exala mentira, cheira mal!

Entre os títulos das coleções, está seu primeiro longa, Lance Maior. Como o senhor o espelha diante do universo temático que trilhou em seus filmes posteriores? Em que momento o senhor teve a convicção de qual seria sua marca autoral?

Marca autoral nunca é fruto de uma epifania. Penso que, se alguma marca autoral existe para meu cinema, ela foi se construindo à medida que os filmes foram nascendo, crescendo e aparecendo. Quem sabe seja essa pegada desideologizada deles seu DNA, por sua falta de aderência às idiossincrasias político ideológicas de seu tempo e à narrativa imagética em voga. Já intitulei minha filmografia de “cinema torto”. Uma tortuosidade que também me confunde, pois a criação é sempre algo randômico, incontrolável e imprevisível. E no cinema mais ainda, é algo que eu chamaria de uma “epifania industrial”.  Se o filme deu certo como linguagem e encaixe moral, procuro torná-lo “estrangeiro”, como se não tivesse saído das minhas entranhas intelectuais, psicológicas e físicas. Parto para o desconhecido, com tudo, justamente para me haver mais uma vez com a angústia que caracteriza tanto a criação quanto a imponderável empatia com público. Fora dela, da angústia, não há criação legítima e duradoura.

Cruz e Sousa, Graciliano Ramos e Stefan Sweig foram personagens de seus filmes. Qual sua conexão, afetiva, intelectual, com essas figuras?

Já escrevi alhures que meus filmes são melhores do que eu. São personagens, como Stefan Zweig, cujo duplo suicídio com sua jovem esposa, em fevereiro de 1942 em Petrópolis (RJ), é atinente com o destino do meu pai, seu trágico igual, como ele, um judeu nascido no império austro-húngaro. E, sem nenhuma coincidência, sua retidão moral e solitária postura político e ideológica me encantaram desde a juventude quando comecei a ler toda sua obra. Acabamos parceiros nessa independência e, também, na crítica, no menosprezo e na incompreensão, até na ridicularia, dos contemporâneos. Cruz e Sousa e Graciliano Ramos são, igualmente, paixões que se remontam aos anos 1950 quando, já mordido pelo cinema, queria também ser poeta e escritor. Mordo meus sonhos como quem degusta uma iguaria ansiada, não os largando até torná-los realidade factível, daí eu colecionar 24 livros publicados por editoras nacionais (nove de poemas, 10 roteiros e cinco de ensaios) e 38 filmes, com 12 longas-metragens.

O senhor é um cineasta conhecido pelo zelo dedicado à obra que produz, não apenas no seu lançamento, mas também na sua preservação. Como procede, e qual dificuldade encontra, para manter seus filmes “vivos” em iniciativas como esse lançamento em DVD?

Nestes tempos de crise, o lançamento da Cinemateca Sylvio Back é um luxo à toda prova. O volume 1, por se encontrar esgotado, estava a exigir uma segunda fornada. Então, resolvemos aguardar a estreia nacional em cinemas de O Universo Graciliano para, juntamente com mais cinco longas inéditos em DVD, agregar ao volume 2, e assim oferecer ao público todos os meus 12 longas-metragens. Sinto-me orgulhoso e recompensado de poder disponibilizar esses filmes de torque absolutamente independente, da ficção desalinhada à narrativa de consumo televisivo, aos antidocumentários na contramão da febre de docs chapa branca e hagiográficos. Um cinema moral, a partir de um olhar desideologizado sobre homens e seus feitos. O conjunto reflete a coerência de uma filmografia que acaba trazendo à tona um pleito humanista e poético sobre personagens e temas sem que jamais isso me leve a flertar com o público, a mídia ou a crítica. 

Cite três filmes que poderiam servir de síntese dos objetivos que o senhor persegue como cineasta.

Minha paleta cinematográfica é muito diversificada porque nunca vi diferença entre documentário e ficção, nem entre arte e entretenimento. O importante é a linguagem e o estofo moral do filme. São inúmeros os filmes que influenciaram o meu cinema, ou que não me abandonam a retina, a mente, o coração e o ventre. Preciso citar mais que três… Todos eles trespassam indelevelmente a minha paixão de cinéfilo e realizador, ainda que nunca tenha grudado o olho no visor da câmara tentando “homenageá-los”. Ao mesmo tempo, na contramão dessa percepção, digamos, ontológica, novos inventores da narrativa cinematográfica (como Angelopoulos, Lynch, Von Trier, Kitano, Sokúrov, Kar-Wai, Kusturica) surgem e fundem a fronteira entre arte e entretenimento, tornando-a cada vez menos nítida e urgente. Tomo a liberdade de reproduzir lista histórica de filmes (em ordem alfabética) que, a pedido do crítico Carlos Alberto Mattos, enviei ao seu blog Faróis de CinemaApocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola; Corações e Mentes (1974), de Peter Davis; Dançando na Chuva (1953), de Stanley Donen e Gene Kelly; Hiroshima mon Amour (1959), de Alain Resnais; Hitler, Um Filme da Alemanha (1978), de Hans-Jürgen Syberberg; La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini; Le Chagrin et la Pitié (1970), de Marcel Ophüls; Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman; e O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima.

Em relação à TV paga, a lei que obriga os canais a exibirem conteúdo nacional abriu espaço para seus filmes? Quais costumam ser mais exibidos?

Por não assinar um cinema de puro entretenimento, os espaços continuam exíguos e seletivos para o filme de invenção. Inclusive, isso é visível e ainda mais escancarado, literalmente, quando se compulsa a programação cotidiana dos cinemas. Minha obra, de Lance Maior (1968) e o épico A Guerra dos Pelados (1971), que reinauguraram o cinema existencial e politicamente engajado no extremo sul — o que levou Glauber Rocha a me chamar, carinhosamente, de “Cacique do Sul” —, aos recentes O Contestado — Restos Mortais e O Universo Graciliano (2013), tem tido constante veiculação tanto na TV aberta quanto nas emissoras por assinatura (TV Cultura de São Paulo, TV Brasil, Canal Brasil e Canal Curta).

Quais histórias o senhor ainda pretende contar em seus próximos projetos?

Como a madrastice financeira voa aleatoriamente sobre o cinema de autor no país, há que inventar projetos e roteiros que já nasçam longevos. É preciso viver 150 anos para formatar uma obra no Brasil, tantos são os percalços entre um filme e outro, quando há outro no horizonte. No entanto, confesso que, feito os artistas medievos de múltipla expertise, circulo por nichos vizinhos à criação, da escrita de roteiros e poemas, a ensaios e artigos na grande mídia. Portanto, a cesta do “a realizar” é desfrutável. Gostaria, no entanto, de preservar-lhes o ineditismo, para não quebrar o encanto. Uma novidade que vem me mobilizando nos últimos meses diz respeito ao delicado âmbito dos direitos patrimoniais e autorais do cineasta brasileiro. Nesses tempos de barbárie da internet, nosso audiovisual é cotidianamente veiculado sem que tenhamos retorno financeiro por essa comunicação pública. Apenas os emissores, cinemas, TVs abertas, por assinatura, streaming e “nuvens” digitais de toda ordem e quadrante, se monetizam com nosso estro. É incontornável que sem diretor não tem filme, telenovela, minissérie, documentário ou animação. Com essas palavras de ordem, cineastas de filmes pop a filmes cabeça, criamos há um ano a DBCA — Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual, entidade apoiada por dezenas de congêneres da América Latina e da Europa dedicada à arrecadação e distribuição de direitos autorais de todo audiovisual que chegue ao público em qualquer plataforma analógica ou digital no Brasil e no Exterior. Trata-se de uma verdadeira revolução no audiovisual brasileiro. Cineasta (hoje já somos 200 filiados) ou não, quem estiver a fim de conhecer a DBCA, para a qual fui honrosamente eleito presidente, veja nosso site.

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Os filmes da coleção de DVDs

Cinemateca Sylvio Back — Volume 1

A GUERRA DOS PELADOS (1971)
Drama ambientado em 1913, quando posseiros catarinenses criam um movimento de resistência às forças políticas e econômicas envolvidas na concessão de terras a uma ferrovia. Com Jofre Soares e Stênio Garcia.

ALELUIA, GRETCHEN (1976)
A saga de uma família de imigrantes alemães no sul do Brasil ao longo de 40 anos perpassa a ascensão de Hitler ao poder e a simpatia de brasileiros ao nazismo. Com Carlos Vereza e Lílian Lemmertz.

GUERRA DO BRASIL (1987)
Neste ensaio documental sobre a Guerra do Paraguai, o diretor desmistifica heróis consagrados na história oficial, entre eles Duque de Caxias.

RÁDIO AURIVERDE (1991)
Documentário em que Back faz uma abordagem irônica à participação do Brasil na II Guerra, apresentando os pracinhas da FEB como “bucha de canhão” dos americanos.

YNDIO DO BRASIL (1995)
As diferentes representações dos índios brasileiros conduzem este documentário, da visão antropológica dos cinejornais aos preconceituosos registros ficcionais.

CRUZ E SOUSA: O POETA DO DESTERRO (1999)
A vida de João da Cruz e Sousa (1861–1898), catarinense filho de escravos considerado o maior poeta negro da língua portuguesa e precursor do simbolismo no país. Com Kadu Carneiro.
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Sylvio Back no set com o ator alemão Rüdiger Vogler, protagonista de “Lost Zweig”, filme de 2002.

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Cinemateca Sylvio Back — Volume 2

LANCE MAIOR (1968)
Um triângulo amoroso esquentado pelas inquietações da juventude no final dos anos 1960 marca o primeiro longa-metragem de Sylvio Back, estrelado por Reginaldo Faria, Regina Duarte e Irene Stefania.

REPÚBLICA GUARANI (1978)
Documentário sobre o processo de formação (e deformação) das missões catequizadoras empreendidas pelos jesuítas no território dos índios guaranis.

REVOLUÇÃO DE 30 (1980)
Documentário sobre o movimento tenentista e a revolução que levou o gaúcho Getúlio Vargas a assumir o poder no Brasil.

LOST ZWEIG (2002)
Rüdiger Vogler, ator conhecido por sua parceria com o diretor alemão Wim Wenders, vive o escritor austríaco Stefan Zweig em sua última semana de vida no Brasil, em 1942.

O CONTESTADO: RESTOS MORTAIS (2010)
O documentário sobre o conflito agrário que se deu na divisa entre Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916, combina entrevistas de historiadores com dramatizações conduzidas por médiuns.

O UNIVERSO GRACILIANO (2014)
Panorama documental da vida e obra de Graciliano Ramos (1892 –1953), autor de clássicos da literatura brasileira como Vidas Secas eMemórias do Cárcere.

 




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