Fabelmans, Paradiso e Camacã


“OS FABELMANS” (SPIELBERG), “CINEMA PARADISO”, CINE CAMACÃ

 

“Quero um lugar pra mim e pra você

Na matinê do Cinema Olímpia, do Cinema Olímpia.”

Caetano Veloso, “Cinema Olímpia”,

na linda voz de Gal Costa.

Para Adolfo Lachtermacher

 

 

 

Advertência: texto com spoiler

Há filmes que nos convocam, sem que saibamos exatamente por quê. Foi para mim o caso do atual Os Fabelmans. Não sou fã do cineasta Steven Spielberg, nem muito menos corro para ver filmes indicados ao Oscar, ao contrário, costumo fugir deles.

Na verdade, assisti a poucos trabalhos do diretor estadunidense. O primeiro foi Encurralado, que vi no Cine Bahia, quando tinha acabado de chegar a Salvador com 14 anos, e a censura para a obra era exatamente esta faixa etária. A história de perseguição provocou forte impacto em mim, e embora nunca a tenha revisto, me recordo de várias imagens. Tubarão apenas me proporcionou algum susto, mas nenhum efeito estético relevante. Vi E.T. anos depois de ser lançado e achei uma historinha à la Disney, plena de bons sentimentos. Enfatizo, no entanto, que o Universo Disney (histórias em quadrinhos & cinema) é uma das referências mais marcantes de minha infância. Junto com Mário de Andrade, considero Fantasia uma obra-prima – lembro de ter passado uma tarde inteira vendo-o e revendo-o com meu irmão, no Cine Tamoio da capital baiana, enquanto meu pai dormia na poltrona ao lado…

Outros bons filmes a que assisti de Spielberg, mas nenhum a meu ver apaixonante: Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida, A Cor Púrpura, Jurassic Park, A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan, A.I. – Inteligência Artificial, Minority Report – A Nova Lei e Guerra dos Mundos.

Desde o início da pandemia não tinha voltado a uma sala de cinema. Foi assim tomado por forte emoção que me dirigi ao Estação Net Rio, em Botafogo, onde resido – um cine, como tantos outros, atualmente ameaçado de despejo, por conta de dívidas acumuladas na pandemia. Fui ver Os Fabelmans motivado pelas boas resenhas que li, embora em minha Linha do Tempo do Facebook algumas pessoas o criticassem por ser demasiado longo e até mesmo “chato”. É um longa-metragem de fato “longo”, como parece ser a norma para os filmes “de Oscar”, a fim de terem chance de obter a sonhada estatueta. Como se obras menos compridas não pudessem ser dotadas de qualidade…

A despeito da falta de grande admiração pelo autor de E.T., fui também atraído pela temática do cinema sobre o cinema, que é sempre fascinante. Me Lembro de um que adorei ainda na adolescência, Isto era Hollywood (That’s Entertainement!, de  Jack Haley), sobre os musicais antigos da indústria cinematográfica. E, como diversos outros, há o belo A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen. Me motivaram também as várias associações feitas pelos críticos da saga familiar dos Fabelmans a outro filme metalinguístico que marcou época e igualmente me emocionou como poucos (embora quando o assisti tenha feito algumas críticas pontuais): Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore.

Apesar dessas motivações todas, esperava um bom filme mediano, como me parecem ser os de Spielberg, embora não seja a pessoa mais competente para avaliar sua vasta obra. Todavia, ah, toda via!, já nas primeiras cenas o filme me arrebatou. A cena antológica em que o garoto vai pela primeira vez ao cinema com os pais me transportou de imediato a minha infância, na pequena Camacã. Foram tantas as associações que fiz a partir daí que o resto da sessão passou como numa espécie de sonho ou transe não místico. Mais uma vez, a grande arte do cinema se apoderou de mim como um fármaco potente, uma droga capaz de surtir os efeitos mais inesperados. (Em alguns momentos, tive que fazer um esforço para voltar à história que se passava na tela diante de meus olhos, tantas eram as lembranças e reflexões que me vinham a cada sequência.)

Mas para que isso aconteça, é preciso que seja numa sala escura de cinema, pois na TV ou no computador as luzes e os ruídos do cotidiano interferem o tempo todo. Cinema para mim é aristotelicamente catártico, antibrechtiano, embora Brecht seja um dos teóricos do teatro que mais admiro. Como espectador (e expectador) de cinema quero ser tomado sem nenhum distanciamento épico, tal como no antigo teatro grego.

É difícil resumir a história dos Fabelmans: livremente inspirada na autobiografia do próprio futuro diretor, se inicia na cena aludida do primeiro filme assistido. (Antes de a sessão começar, o próprio Spielberg se dirige à plateia, chamando a atenção para a importância de frequentar o cinema.) E aí acontece um fato com o qual me identifiquei plenamente: por um equívoco, os pais levam o garoto a ver uma película que não tem nada de infantil: O maior espetáculo da Terra (dirigido por Cecil B. DeMille, de 1952)… A cena que desencadeia no garoto paixão cinéfila é a de um trem se chocando com um carro e provocando um daqueles desastres que só Hollywood sabe fabricar. O menino Sammy (ou Sam, como prefere, interpretado por Gabriel La Belle) fica fascinado pelo choque espetacular, chegando a sonhar em reproduzi-lo, como realmente o faz com a ajuda da mãe Mitzi (Michelle Williams, excelente), após ganhar um trenzinho de presente no Hanukkah, a festa em dezembro dos judeus, os quais evidentemente não celebram o Natal.

A partir daí todo o enredo se constrói em torno desse desejo infantil de reinventar cenas vistas em filmes hollywoodianos, em especial nas películas de faroeste – John Ford vai comparecer “em pessoa” na sequência final. Trata-se essencialmente da história de um menino que, para atingir o sonho de fazer o que mais ama na vida – criar histórias a partir de roteiros e com o auxílio de câmeras e iluminação adequada –, precisa vencer diversos obstáculos. Cito dois dos maiores empecilhos: primeiro, a dificuldade financeira para realizar películas, pois sua família é inicialmente de classe média sem muitos recursos financeiros. Segundo, a resistência do próprio pai Burt (Paul Dano), que prefere vê-lo na faculdade para se tornar engenheiro como ele próprio, um especialista em computadores.

O contraponto especular a esse talento imperativo que começa a fazer cinema de modo improvisado, com mínimos recursos, é a figura da mãe: uma pianista e cantora de talento, que abre mão de sua carreira para ser uma dona de casa exemplar, com três filhos. Um dos aspectos mais belos do filme é a associação explícita (mas sutil) entre cinema e erotismo: é através de filmagem caseira, tendo a própria mãe como protagonista, que o jovem Sam descobre que ela trai seu pai com o melhor amigo, carinhosamente chamado de Tio Bennie (Seth Rogen), embora não tenha vínculo parentesco com o grupo familiar.

Se essa história de “traição” (as aspas vão por conta dos preconceitos ligados a essa palavra, dos quais discordo integralmente) é de fato autobiográfica, o modo como é exposta ao longo do filme se torna uma das abordagens mais delicadas e audaciosas que já vi sobre uma temática pessoal. É como se uma das origens (são muitas) do cinema spielberguiano fosse a potência materna capaz de realizar dois desejos simultâneos e conflitantes: manter o núcleo familiar coeso e, ao mesmo tempo, ter um amante dentro da própria casa. Ela só abre mão, em parte, do talento musical, que continua a exercer apenas de forma amadorística. E o mais fascinante é acompanhar as atitudes do garoto Sam, que em princípio repudia a atitude materna, mas depois vira de algum modo cúmplice. Pois ele compreende que a renúncia da mãe em relação à arte musical, e também a ter um relacionamento oficial com o homem que de fato ama, espelha o próprio risco que ele corre: qual seja, renunciar a fazer cinema, para servir ao propósito que escapa de todo a seu desejo – tornar-se um brilhante e bem remunerado engenheiro, tal como o pai.

Minha identificação maior com a história decerto se relaciona a esses impasses que um artista vivencia para conseguir atingir seus objetivos. Porém há outra identificação talvez tão poderosa quanto essa: a relação digamos “física” e sensorial com a sétima arte, tal como Cinema Paradiso anos atrás já me proporcionara.

Nasci numa casa que ficava colada ao prédio onde funcionava o Cine Camacã. Quando criança, era comum eu dormir imaginando que do outro lado da parede estavam passando filmes, e acabava sonhando com isso. É esse fator onírico que até hoje me arrebata nas salas de cinema: o poder do cone dançante (expressão de Roland Barthes), numa sala escura, nos fazer vivenciar emocionalmente os dramas dos personagens ficcionais ou reais como se fossem nossos.

Meu irmão e eu íamos todos os domingos às matinês do Cine Camacã, as “soerês” (soirées!) diárias eram reservadas aos adultos. Mas minha mãe frequentemente me levava para as sessões noturnas – me lembrei disso ao ver a cena inicial em que o garoto vai com os pais pela primeira vez ao cinema ver uma película de temática inadequada para sua idade. Eu adorava assistir a filmes de terror, mesmo se depois tivesse pesadelos. E aconteceu uma cena traumática familiar por causa de um dessas sessões noturnas, mas por enquanto não ouso ainda narrar…

Antes das sessões nas matinês dominicais, nós guris ficávamos na porta do cinema conversando sobre outros filmes – em geral falávamos sobre as cenas mais fantasiosas e absurdas das histórias de caubói, que chamávamos de “colhudas”. “Colhudo” é palavra dicionarizada, cuja etimologia remete, como eu suspeitava, a “colhão”, significando entre outras coisas, segundo o Houaiss: “indivíduo valente, que enfrenta adversidades, perigos” – tudo a ver com as façanhas dos homens da Terra de Marlboro…

Nós tínhamos um privilégio que me remete direto a Cinema Paradiso: também antes das sessões, podíamos ir até a sala de projeção, pois o encarregado era nosso amigo e nos deixava ficar por ali bisbilhotando. Seu apelido era Alemão, mas não creio que fosse descendente germânico: parodio o conto “Tentação” de Clarice Lispector, dizendo que, numa terra de morenos, todo loiro ou ruivo é considerado gringo… Isso explica só em parte a designação germânica do projetista, pois na verdade meus amigos de infância tinham todas as cores, do negro ao branco aloirado, sem preconceito.

O fato é que a sala de cinema teve uma forte presença física em minha infância, presença que só foi começar a se esvaecer com a chegada da televisão à pequena cidade, no final dos anos 60. O Cine Camacã foi fechado com a mudança de seu proprietário, Paulo Barbosa, para a cidade de Itabuna, onde, se não me engano, abriu o Cine Marabá.

Antes que o lamentável fechamento ocorresse, me lembro de diversas vezes ter entrado no cinema pelos fundos, pulando a cerca do quintal de casa. Fiquei assim muito impressionado com a visão da tela pelo avesso, ou seja, as imagens no sentido contrário da projeção. A tinta azulada que se utilizava para escrever as letras dos cartazes também deixou forte impressão visual. Mas nada se compara a assistir aos filmes sentado no mezanino, ao lado da sala de projeção: me recordo até hoje do barulhinho do projetor e do cone luminoso, com as imagens se lançando na sala escura, para deleite da plateia. De vez em quando podíamos levar carretéis com algumas películas inutilizadas. Essa materialidade do cinema se perdeu com as câmeras digitais – os fotogramas eram por si sós uma forma de arte.

A história familiar dos Fabelmans me trouxe tudo isso de volta, como num sonho, repito. E as mais de duas horas de projeção passaram como delicioso entretenimento, mas também com muitas ressonâncias artísticas que decerto hão de frutificar. Os atores são excelentes, com destaque para os citados Gabriel LaBelle, Michelle Williams e Paul Dano.

Não tenho dúvida de que o slogan da cadeia de cines Severiano Ribeiro é verdadeiro: “Cinema é a maior diversão”! E é também uma das maneiras mais potentes de formação e de-formação artística e cultural, com muita aprendizagem sensorial. “Filmes são sonhos que você nunca esquece”, diz Mitzi a determinada altura. Eu acrescentaria: os verdadeiros sonhos são como filmes que podem nos impressionar para sempre. Todas as noites há um pequeno “projetor” funcionando em nossas mentes.

Para concluir, registro que assistir a uma sessão de cinema é algo é de pessoal e intransferível. Neste texto, apenas aludi a algumas das referências que o filme de Spielberg me trouxe. Haveria muito mais a dizer. Compreendo, no entanto, que a muitos espectadores e espectadoras a película não diga quase nada. Cada um/a de nós detém um ou mais tipos de projeção, e não há como imaginar um mundo em que todos tenham as mesmas fantasias & desejos. O cinema e o paraíso de cada pessoa dependem estritamente de suas vivências individuais.

Seja como for, cinema é, com efeito, uma arte transcendental (mais uma vez, Caetano) e muito concreta: i-material.

P.S.: procuro urgentemente uma tradução para spoiler – estraga-prazeres?…

 

Evando Nascimento Camacã

 

 

 

 

 

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Evando Nascimento é ensaísta, professor universitário, escritor & artista visual. Publicou os livros de ficção Retrato DesnaturalCantos do Mundo (finalista do Prêmio Portugal Telecom), ambos pela Record, Cantos Profanos (Globo), e A Desordem das Inscrições (Contracantos, 7Letras) e Diários de Vincent: impressões do estrangeiro (Circuito). Ensinou na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Université de Grenoble. Realizou cursos e palestras em diversas instituições nacionais e internacionais, como USP, Manchester University, Université de Paris e PUC de Valparaiso. É considerado um dos maiores especialistas de Jacques Derrida, de quem foi aluno na E.H.E.S.S., bem como de Sarah Kofman na Sorbonne, nos anos de 1990. Autor de Derrida e a literatura (É Realizações, 3ª. ed.) e de Clarice Lispector: uma literatura pensante (Civilização Brasileira), bem como de diversos outros livros e ensaios publicados no Brasil e no exterior. Desde 2015, desenvolve também trabalhos de artes visuais. Email: evandobn@uol.com.br




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