Emily Cantabile
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A poesia sempre esteve entremeada à música, desde os seus primórdios, na tradição poética ocidental – desde Safo, passando pelos trovadores (um Arnaut Daniel, na Provença; ou ainda um Martin Codax, na Galícia), chegando até aos “sanglots longs/des violons/de l’automne” verlainianos. Mesmo quando predominam mais o verbal e o imagético na poesia, ainda assim ela guarda um elemento musical, o ritmo. Sim, o poema tem sempre a sua música própria, mesmo que dissonante ou “atonal” – a ponto de causar estranhamento (e até algum “incômodo” aos ouvidos…).
Na área da música erudita (clássica ou ainda “de concerto” – como preferirem) é procedimento antigo colocar melodia num poema (mesmo que não haja “melodia implícita” no texto). Para ficarmos por aqui, no Brasil, lembre-se de um Villa-Lobos, que pôs em música versos modernistas, e de um Gilberto Mendes, que musicou poemas concretos.
Na música popular brasileira, aquele procedimento ganhou proeminência a partir da musicalização dos versos de João Cabral (“Morte e Vida Severina”), por Chico Buarque, e do tropicalismo (particularmente em composições de Caetano sobre poemas de Gregório de Matos, Sousândrade, Oswald, Augusto & Haroldo de Campos). Mais adiante, tal prática aparece, aqui e ali, em compositores diversos (Arrigo Barnabé, Péricles Cavalcanti, Edvaldo Santana, Zeca Baleiro etc.), mas de forma especial e sistemática no trabalho de Cid Campos.
Este último desenvolveu uma sólida parceria poético-musical com Augusto de Campos (vide o CD “Poesia é risco”) – unindo palavra falada e palavra cantada. Chegou também a criar uma espécie de “ambiente sonoro” para acompanhar oralizações de poemas contemporâneos, de traduções e até mesmo de textos bíblicos (CD “Profetas em movimento”).
No final do ano passado saiu o CD “Emily”, de Cid (SP, independente, 2017), onde o músico cria canções sobre poemas de Emily Dickinson (1830/1886) – a importante poeta norte-americana, tema do recente filme “A quiet passion”, do diretor britânico Terence Davies –, recriados em português por Augusto. Trata-se de uma poética sensível e sintética, que se revela também cantabile.
Ouça-se, por exemplo, a faixa 4, “Ata-me – eu canto assim” (que, aliás, ficaria uma beleza na voz de uma Gal Costa). O sonoro texto poético – com rimas finais em IM (assim/bandolim/mim/fim), paralelismos verbais (ata-me/mata-me) etc., enfim, pura melopéia no sentido poundiano – plasma-se numa delicada e suave canção, com toques bossanovistas e jazzísticos. Cid canta à la Chet Baker, emoldurado pela guitarra de Felipe Ávila (evocando Barney Kessel), pelo piano de Moisés Alves, econômico/jobiniano, e a discreta bateria de Alê Damasceno (alguma coisa lembra a versão de “All of me”, na interpretação de João Gilberto; talvez o ritmo e a leveza…). Enfim, criatividade e bom gosto.
Em todas as faixas, em meio às canções, surge a voz de tom grave de Augusto oralizando os poemas musicados – essas “entradas” verbais se dão sempre de forma precisa, de modo a não interferir no clima sonoro, pelo contrário, acrescentando um charme especial (e imprevisto) às faixas do CD.
As canções soam e são, em geral, “viajantes” – como se estivessem além do tempo e do espaço –, refletindo os belos versos de Emily: “Relógios davam Dia – /Noite – Sinos distantes – /Mas Eras não havia/E nem Depois nem Antes”.
Percebe-se que são canções “sugeridas” diretamente pelo próprio conteúdo/forma dos poemas de Emily. Todas foram bem aclimatadas pelos arranjos e pela voz cool de Cid, também pelos instrumentos utilizados: guitarra acústica, “violão nylon” (também “resonator slide”), baixo, piano (incluindo o elétrico), bateria – e ainda as programações de cordas e percussão. Ouçam-se as faixas “Pouco, mas muito” – com a estridência pontual da guitarra, e “Sépala, pétala e um espinho” – onde a palavra final do último verso (“Rosa”), na gravação, parece ecoar, num átimo, a conhecida “rosa” de outra poeta-prosadora norte-americana: Gertrude Stein. Ouça-se, ainda, a inusitada e balançada “Não sou Ninguém! Quem é você?” – poema introvertido recriado em extrovertido som pop/new bossa.
Mas há muito mais a ser curtido, em detalhe, nos sons étereos e estéreos deste inventivo CD de Cid, que nos revela, como já foi dito, a dimensão cantabile da sutil (e imortal) poética dickinsoniana.
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Carlos Ávila (BH, 1955) é poeta e jornalista. Autor, entre outros, de Bissexto sentido, Área de risco, Poesia pensada e Anexo de ecos. Foi editor do Suplemento Literário/MG e participou de mais de vinte antologias no país e no exterior. E-mail: avila.carlos@terra.com.br
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