Sereias na casa de Cristo
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No conjunto monumental Convento de Santo Antonio e Igreja de São Francisco na capital da Paraíba, cidade desenvolvida entre o rio e o mar, sereias ornam os altares da capela dourada do Santíssimo Sacramento. Como Luiz da Câmara Cascudo as descreveu no artigo “As sereias na casa de Deus” na edição de 5 de abril de 1952 de O Cruzeiro: “cabeleira em concha, o cinto venusino abaixo dos seios, uma volta de flores na altura do ventre e o longo corpo ictiforme volteando como ornamento e moldura”. Cada elemento mereceria uma análise profunda e séria. Para o pesquisador que viu sereias em outros templos cristãos, “as sereias paraibanas são diferentes. Mão direita à cinta, elegantemente, e a sinistra fingindo suster o rebordo trabalhado em relevo da cornija. Nem peixes e nem duas caudas. Vi as Sereias de Travanca, esculpidas na pedra, segurando a cauda e também um peixe”.
No artigo citado, Cascudo rejeita a égide sedutora em prol do símbolo funerário que as sereias guardam para analisar as sereias paraibanas e justificar a presença delas ali. Ele percorre três séculos antes da igreja de Cristo buscando explicar a relação da sereia com a morte, em um tempo em que elas ainda eram seres alados e barbados. Como sabemos, o rabo de peixe e a beleza física surgem na releitura do mito e da lenda, principalmente, pela igreja católica. O fato é que a beleza calcada em elementos clássicos, aliada à morte, reforça a inibição das potencialidades essencialmente vocais que tais seres tinham. Ou seja, a sereia bela fisicamente é símbolo da ideologia que tem na mulher a perdição do homem. A ênfase na visão, no corpo bonito e harmonioso, em detrimento da voz, impõe a ordem de calar as mulheres que cantam: belas por fora e terríveis por dentro. A voz de alguém cantando indica que há um indivíduo de carne e osso existindo. É esta unicidade o que assusta. Ter voz é ser um existente. Não falo da voz metafórica, mas da voz que sai da garganta de um encarnado. Entra aqui o método do falar, ao invés do método do pensar tão defendido pela filosofia canônica. O falar está no tempo da ação, enquanto que o pensar quer estar fora, através das conexões que colocam os objetos em um “presente eterno”.
Voltando às sereias, Cascudo destaca e reforça que elas estão também em outras igrejas católicas, apesar de desconhecer a presença delas em capelas ou matrizes brasileiras, além da paraibana. Porém, tenho a notícia de que elas estão na entrada da Igreja de São Pedro, em Recife-PE. De todo modo, não chegam a entrar na casa de Cristo. Para Cascudo, as sereias paraibanas serviriam como exemplo da ornamentação povoada de assombros da Idade Média. Elas se aliariam às figuras do Velho e Novo Testamento para incutir o temor aos fiéis que ousassem se deixar seduzir pelas belezas do mundo, esquecendo Deus: causa primeira e destino de tudo. E aqui a beleza externa seria a armadilha perfeita armada pela sereia fatal, já que ela “perdeu” a voz que as caracterizavam com um vocálico ainda não dócil, domesticado, humanizado e “elevado”. Sem querer oferecer credencial desculpadora às sereias por força de seu simbolismo funerário, penso que sua presença na casa cristã quer dizer mais: quer falar do hibridismo, do sincretismo e, sim, do erotismo estético que caracteriza a mobilidade cultural. Mesmo “amansadas” pela Igreja, as sereias se impõem como presença, indicam que há algo além daquilo que está sendo oferecido. Diferente da Musa cuja voz só é audível ao poeta, a Sereia toca a sensibilidade auditiva do homem comum.
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Se os costumes do mito foram modificados, serenados, as sereias paraibanas mostram que o mito resistiu como potência aos exorcismos. Aliás, porém, Cascudo destaca que “os templos olímpicos receberam a presença dos santos (…) Numa carta famosa, o Papa Gregório Magno mandou conservar os templos e retirar os ídolos”, atitude não muito diferente do empreendido pelas igrejas neopentecostais que ocupam teatros e cinemas na tentativa de catequese e de expansão do domínio. As consequências disso? Só o tempo dirá. No entanto, como o próprio pesquisador observa, “ninguém intimou a Sereia a desenrolar a cauda e remergulhar no Rio Paraíba, caminho de Cabedelo, ganhando o Atlântico. As Sereias ficaram. Ficaram na sua forma pós-clássica de semi peixe porque as verdadeiras eram semi-aves. Com asas é que elas cantaram para tentar Ulisses que tapou com cera os ouvidos insensíveis ao canto mágico”. Note-se que esta interpretação que Cascudo oferece para Ulisses reforça, de viés, os argumentos de Adorno para a passagem do “Canto das sereias”, de Homero.
Seja como for, as sereias estão sim no culto dos mortos. Acreditava-se que elas intermediavam pelo morto junto aos deuses do inferno helênico, por exemplo. Isso explicaria a presença vocacional e clássica das sereias da Igreja de São Francisco de 1779. Mas o escultor sabia de tais simbologias? Ele driblou as censuras da época? Pergunta-se Cascudo. Por minha vez, pergunto-me: Com seu canto grávido de sugestões para que nos tornemos o que somos, para além do sofrimento e da vulnerabilidade impostos pela culpa, as sereias, mesmo quando parecem convidar à morte não estão convidando à vida? Híbridas, não são elas sempre fúnebres e eróticas? Não falo de metafísica. Creio que as sereias paraibanas nos dizem que ser humano implica em assumir a pluralidade e o risco da experiência dos impulsos: a potencialização das potências, o eterno retorno. As sereias na casa cristã dizem que o indivíduo não é independente de outros corpos, nem da história pulsional e cultural constitutiva daquilo que ele é hoje. Elas cantam que é preciso que cada um viva a vida e pague o preço por vivê-la. “O mito é o nada que é tudo”, afirmam. “A satisfação mais manifesta, que o canto das sereias promete, seria o ingresso do corpo indiferenciado – como corpo de uma simultaneidade de todas as funções ativas e passivas – na indiferenciação da vida”, escreve David E. Welberry no texto “O processo de dissimulação: ‘O silêncio das sereias’, de Kafka” (ver livro Mímesis e a reflexão contemporânea, org. Luiz Costa Lima).
Perder-se. Eis o infinito sirênico. Perder-se entre os detalhes da fauna e da flora tropicais e dos frutos regionais que inspiraram os artistas a decorar a jóia barroca paraibana com cajus, abacaxis e sereias. O eu é uma ilusão, tudo é multiplicidade e as sereias na casa de Cristo afirmam isso. As sereias se utilizam de um mesmo significante para dar conta de significados diferentes. O canto das sereias mobiliza mais de um afeto, encandeia a interligação de tudo, faz o ouvinte amar o destino ao abrir possibilidades de futuro. Perder-se.
Intervenção semelhante é feita por Maria Bethânia quando canta para Maria, mãe de Jesus, no disco Cânticos Preces Súplicas (2003). Médium das sereias – “A voz mora em mim, mas não é minha. É das sereias”. -, Bethânia condensa na voz os signos de Maria e de Iemanjá. Bethânia “Deusa d’água / Iemanjá de cacimba / Iansã Iara minha irmã /Curuminha cunhatã”, como escreve Chico César em “Águia”.
“Vive sempre conversando à sós comigo / Uma voz que eu escuto com fervor / Escolheu meu coração pra seu abrigo / E dele fez um roseiral em flor”, canta enquanto interpreta “O doce mistério da vida”, de Victor Herbert na versão de Alberto Ribeiro para “Ah! Sweet Mystery of life”. Voz das sereias escutada com fervor e em estado de refração, via voz da cantora, na casa cristã: sereia no terreno mariano. E importa destacar que a canção surge logo depois da intérprete cantar “O doce mistério de Maria”, de Fauzi Arap. E esta justaposição vida-Maria não pode passar despercebida de seu engenho estético. “Sou santamarense e sei bem dessa maneira ímpar de adorar, reverenciar, louvar Nossa Senhora com uma intimidade nossa. A alegria, para mim, é a maneira mais adequada para louvar Nossa Senhora”, anota Bethânia no encarte do disco. Encarte-objeto, posto que pode ser folheado, apreciado como um rosário e suas contas, esferas vazadas. Bethânia revela o segredo, diz quem é o seu amor: Maria.
Maria e Iemanjá, a grande sereia, figuras arquetípicas do feminino maternal, imbricam-se no canto de Bethânia, do mesmo modo que as sereias paraibanas sincretizam com os santos católicos. O resultado desse sincretismo entre Iemanjá e Maria é uma terceira entidade ainda sem nome, tropical, brasileira, pós-tensão. Contra-tradição? Trans-canção? Re-silêncio? As sereias paraibanas e Maria Bethânia colocam Iemanjá no céu dos cristãos e Maria no terreiro afro, no mar imenso sem cais. Elas infringem a linearidade e as regras de sobreposições hierárquicas. Que se complexifique a tradição filosófica! “A rainha do mar anda de mãos dadas comigo / Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim”, diz Bethânia em “Carta de amor”. Bethânia descola tanto Iemanjá quanto Maria de seus territórios específicos da religião que cada uma representa e as oferece à estética, à arte: aqui, uma e outra são de todos e de ninguém, Maria não é mais (apenas) da Igreja, nem Iemanjá é mais (apenas) do terreiro. Ambas mãe – mãe d’água e mãe do céu – chamando os filhos à experimentação da vida, via mistura, hibridação e sincretismo.
As sereias paraibanas e Maria Bethânia restituem a sensibilidade da singularização do dono da voz que canta. Elas não sabem o que são, estão no meio, na travessia, na experiência das misturas, dos encontros desimpedidos de proibições morais e religiosas. Cambiantes, moventes, elas são algo novo, o centro motor da possibilidade que temos da invenção de sermos o que somos. É deste modo, através desta chave de interpretação, que as sereias paraibanas, mesmo mal conservadas, gastas pelo tempo e pelo descaso, banhadas pelo sol tropical que ilumina e translúcida em poeira de estrelas seus detalhes em ouro, deixam de serem exóticas, excêntricas, para ser um signo do segredo da cultura brasileira.
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[Fotos by Leonardo Davino]
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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com
1 março, 2013 as 14:02