Qual a nossa relação com a comida?
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Relendo Mitologias, uma seleção de textos do ensaísta francês Roland Barthes sobre o conceito de mito e os “mitos da vida cotidiana francesa”, deparei-me com um pequeno ensaio intitulado “Cozinha ornamental”. Lembro que, para Barthes, mito é, grosso modo, tudo aquilo “suscetível de ser julgado por um discurso”. Por isso, a matéria-prima do mito pode ser vasta e variada.
Entre as matérias-primas do mito, estudadas por Barthes, está a culinária da França, sobretudo a oferecida pela revista Elle (ela própria, define Barthes, um “verdadeiro tesouro mitológico”). Os leitores dessa revista viveriam, ao folheá-la, algo “como uma história simultaneamente verdadeira e irreal”, isto é, entrariam no universo típico do mito.
A gastronomia em questão, segundo Barthes, era apresentada semanalmente de forma utópica, por meio de uma “bela fotografia a cores de um prato elaborado: perdizes douradas ponteadas de cerejas, (…), ‘charlotte’ cremosa enfeitada com desenhos de frutas secas, bolos multicoloridos etc.” Nessa cozinha, portanto, “a categoria substancial dominante é a cobertura, fazem-se todos os esforços para alisar as superfícies, para as arredondar: para esconder o alimento sob o sedimento liso dos molhos, dos cremes, dos ‘fondants’ e das geléias.”
Na cozinha da Elle, cujo imenso público era popular, prevalecia, lembra Barthes, o sonho do chic, que se espelhava numa “cozinha do revestimento e do álibi, que se esforça sempre por atenuar, ou mesmo mascarar, a natureza primeira dos alimentos, a brutalidade das carnes ou o abrupto dos crustáceos.” O enfeite obscurece os problemas reais da alimentação , e o problema, para os leitores de baixa renda da revista, já não seria “arranjar maneira de espetar cerejas sobre uma perdiz, mas encontrar a perdiz, ou seja, pagá-las”.
As reflexões possíveis sobre a alimentação são, naturalmente, muitas e variadas: sociológicas, antropológicas, etc., e Barthes aponta saborosamente o caminho.
O filósofo americano Peter Singer e o advogado e escritor Jim Mason, autores de “A ética da alimentação” (lançado no Brasil em 2007), afirmaram que “não costumamos pensar que o que comemos é uma questão de ética. Roubar, mentir, prejudicar as pessoas – esses atos são obviamente relevantes para o nosso caráter moral (…). Mas comer (…) é em geral visto de forma bem diferente.” Singer e Manson prosseguem: “tente pensar em um político cujas perspectivas foram prejudicadas por revelações relativas ao que ele come.”
Singer e Manson alertam, contudo, que “cada vez mais pessoas estão considerando suas opções alimentares como uma forma de ação política.” Há culturas nas quais o regime e a ética alimentar sempre foram vistos como uma “deferência diante do mundo”, lembra Michel de Certeau, citando o antropólogo Claude Lévi-Strauss.
Dessa perspectiva ética e política, é necessário mostrar o que está por baixo da cobertura dos alimentos, como viveu o bicho que se vai comer, de onde vem a nossa a comida, ou como ela chega à nossa mesa, etc.
A reflexão de Singer e Manson se limita, porém, a analisar o contexto norte-americano (às vezes anglo-saxão), chegando mesmo a oferecer ao leitor um guia de compras alimentares politicamente corretas e a recomendar-lhe supermercados americanos que “fornecem produtos visando a consumidores éticos em vários níveis”.
Em países onde parte da população passa fome ou se alimenta muito mal, a “ética” à mesa não se revelaria inócua diante do estômago vazio? Para a classe média desses mesmos países, os supermercados dirigidos aos consumidores “éticos” não se mostrariam economicamente inviáveis?
Portanto, volto a de Certeau que afirma: “come-se, é claro, aquilo que se pode ‘oferecer’, aquilo que gostamos de comer: frase que denuncia uma falsa clareza e revela uma simplicidade totalmente enganosa.”
A verdade é que uma parte do mundo continua enfeitando a galinha com cerejas e a outra, faminta, continua comendo, como diria Graciliano Ramos, “toicinho com mais cabelo”.
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Dirce Waltrick do Amarante é professora do curso de artes cênicas da UFSC.

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