O prazeroso inferno de signos


CID CAMPOS
E O PRAZEROSO INFERNO DE SIGNOS DA POESIA

 

Esfregando tradição e vanguarda, o paulista Cid Campos é um dos músicos mais importantes do país atualmente, embora não tenha (ainda) o reconhecimento que merece. Quando o assunto é unir poesia de invenção e música experimental, Cid prepara ligas realmente consistentes, resultando em beleza e originalidade.

Recentemente, lançou, de forma independente, o disco O Inferno de Wall Street – Profetas em Movimento (2015), reunindo trechos do poema épico O Guesa Errante, do maranhense Sousândrade, e textos bíblicos dos profetas Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias, Jonas, Joel, Amós, Naúm, Habacuc e Abdias.

O álbum reúne várias participações especiais numa fantástica diversidade de interpretações. As leituras foram feitas pelos poetas Augusto de Campos, Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira e pelos intelectuais José Mindlin, Lauro Moreira, Ricardo Araújo e Danilo Lôbo. Tudo ao som de composições, feitas por Cid, para espetáculos de dança.

É impressionante a entoação certeira de Augusto abrindo o disco com versos de Sousândrade. Aos 85 anos, ter essa voz limpa e claríssima é para poucos. O poeta é um dos melhores leitores de poesia que temos, e nos leva com a fala exata:

 

Mais forte que amor

É a dor;

Mais que ambos é a pública luz.

[…]

Vede os vagabundos

Mimundos

Que ostentam rodar e brilhar.

 

A produção musical e os arranjos de Cid Campos criam o tom épico necessário para o poema. Num crescente, o vento e o fogo crepitando se desenvolvem em instrumentos de sopros e tambores – construindo tensão e expectativa para a travessia d’O Guesa – até se transformarem em timbres eletrônicos, climas militares, quase-hinos, pianos, e acabar em calma e fogo novamente.

Segundo Augusto de Campos, estudioso e difusor de Sousândrade (1832-1902), O Guesa tem diversas inovações. Escrito entre 1860 e 1880, o livro é “um poema épico-subjetivo” todo fragmentado, montado com colagens, palavras compostas, e ordenado analogicamente – fazendo dele um precursor do Simbolismo e do Modernismo, além de ter praticado modos poéticos que ainda apareceriam na nossa literatura contemporânea.

O primeiro prazer que o disco proporciona é o sonoro: maravilha ficar ouvindo os estalos da junção de justaposições em inglês e português. O ritmo da música e do poema envolve o ouvinte. A densidade das metáforas e a soma de palavras, idiomas, faz com que o conteúdo dos poemas não seja totalmente apreendido na primeira audição, dando vontade de ouvir outras vezes para nos aprofundarmos em suas camadas semânticas e descer ao prazeroso inferno de signos da poesia.

É necessário observar o caráter revolucionário do trabalho de Cid Campos. Quando ele faz arte, faz política. Esses dois termos são misturados, amalgamados. Sempre geram potência. Para citar um exemplo, no dicionário Houaiss, o conceito de “política” está inseparável do conceito de “arte”: “Política é a arte de governar”, “a arte da organização, direção e administração de nações…”, “arte de guiar ou influenciar o modo de governo pela organização de um partido…”. Os termos estão juntos o tempo inteiro. E ainda há um conceito para “política” que poderia ser muito bem um conceito para “arte”: “habilidade no relacionar-se com os outros”. Na superfície, a política objetiva um resultado já planejado. Todavia, a arte também tem em vista o imprevisível, a obtenção de resultados não pensados. Logo, sua arte é política porque sempre leva a possibilidade de se relacionar, criativamente, com a outra pessoa, a possibilidade de impulsionar alguém a algo, a possibilidade também de governo e desgoverno de quem absorve aquela criação.

Desde a produção sonora do incrível CD “Poesia é Risco” (1995), em parceria com Augusto de Campos, Cid proporciona a circulação e a recriação de autores fundamentais, como Blake, Rimbaud, Joyce, Cummings. Além de musicalizar poemas visuais dificílimos: “velocidade” (de Ronaldo Azeredo), “banheiro público” (de Walter Silveira), “máximo fim” (de Arnaldo Antunes), “life” (de Décio Pignatari), “fecho encerro” (de Haroldo de Campos), “cançãonoturnadabaleia” (de Augusto de Campos); e compor lindas canções para textos extremamente desafiadores, como “O verme e a estrela” (de Pedro Kilkerry), “O mocho e a gatinha” e “Canção da falsa tartaruga” (ambos de Lewis Carrol), “Alface” (de Edward Lear) e “sem saída” (de Augusto de Campos), todas gravadas por Adriana Calcanhotto.
.

.
Ouvir as músicas e as trilhas de Cid, em seus outros álbuns, No Lago do Olho (2001), Fala da Palavra (2004), Crianças Crionças (2009), Nem (2014), notamos que o artista busca, aos poucos, transformar nossa percepção da realidade – interferir na vida cotidiana com o inusitado. Ao viver profissionalmente trabalhando com poesia inventiva, mas estranhíssima para o grande público e, certamente, pouco rentável, Cid pode até ser considerado louco, de dar murro em ponta faca, mas segue seu som emocionando, transfigurando nosso comportamento – sendo, simplesmente, um dos mais lúcidos de nós.

 

 

 

Adriana Partimpim cantando “Canção da Falsa Tartaruga
(Lewis Carrol / Cid Campos / versão: Augusto de Campos)

 

 

O Inferno de Wall Street – Profetas em Movimento, e todos os discos de Cid Campos, podem ser ouvidos em seu site: http://www.cidcampos.com.br/sec_discografia_view.php?id=42

 

 

 

 

 

.

Thiago E é poeta de testes, músico e compositor. Autor do livro e disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013). Integra a banda Validuaté, com a qual lançou os discos Pelos Pátios Partidos em Festa (2007), Alegria Girar (2009), o EP Este Lado Para Cima (2013) e o CD e DVD Validuaté ao vivo (2015). É editor da revista Acrobata. Mais informações aqui: https://soundcloud.com/thiagoe https://www.youtube.com/watch?v=R9SqXd3himM https://issuu.com/revistaacrobata

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook