O personagem quis


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É um dos clichês mais batidos da literatura. Todo escritor diz isso; é um aspecto óbvio da escrita da ficção. O interessante é que todos resolvam explicar sempre do mesmo jeito. George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, diz assim: “Pode parecer estranho para quem não escreve, mas, quando você embarca num projeto literário assim, os personagens ganham vida própria. Você se vê chegando a um ponto em que alguma coisa estava prevista para acontecer, mas o personagem não quer fazer aquilo, ele tem uma ideia melhor.”

Quase todo clichê parte de uma verdade básica. Se não fosse fundamentado numa verdade, teria secado e caído do galho sem ter tido tempo de se transformar em clichê. Mas para entender a explicação, a gente tem que bancar o que Nelson Rodrigues chamava “o idiota da objetividade”, e dizer: Que diabo é isso de “o personagem quis”? O personagem não existe, meu camarada. Só quem existe aí é você.

A verdade é que o personagem é criado por camadas diferentes da mente do autor. No início ele é apenas um rosto, um nome, uma função. O autor pensa nele, inicialmente, como alguém que vai aparecer na história e executar algumas ações. É a fase de esboço, que geralmente é feita de maneira analítica, distanciada, em que o autor bola a estratégia da história como um enxadrista.  Os personagens ainda não são pessoas, e só se distinguem uns dos outros pelas suas funções, como as peças do xadrez.

Na hora de escrever, entra em atividade outro setor da mente. O autor não vê mais o personagem de fora. Tem que “entrar” no personagem, imaginar as emoções dele, os pensamentos, as motivações, os desconfortos e sensações físicas dele (cansaço, um ferimento, fome, saciedade, atração sexual, etc.).  E quando ele encarna no personagem essa totalidade humana, projetada de dentro de si mesmo, ele é forçado a levar em conta, de maneira coerente, inúmeros aspectos humanos em que não tinha pensado de início. Quando ele diz “o personagem quis agir assim”, está dizendo: “Somente quando eu comecei a trazer o personagem para uma ação real eu percebi que se ele fosse uma pessoa, sujeita a todas aquelas circunstâncias físicas e mentais, ele agiria diferente do que eu imaginei de início”.

Martin é consciente disso, e diz: “Você tem que obedecer ao personagem, em última análise, senão perde o senso de realidade, e o leitor perceptivo vai ver que seus personagens são apenas marionetes manipulados por cordões”. O primeiro esboço do personagem é feito pela mente analítica, mas quem redige as cenas, frase por frase, diálogo por diálogo, é a alma-camaleão do autor, psicografando a totalidade daquela pessoa fictícia.

 

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Chico Lopes, Achei o artigo interessante (como tudo que Bráulio escreve costuma ser). Acho que seguimos (refiro-me a nós, escritores)caminhos traçados conscientemente, mas preenchidos em grande parte por lances do inconsciente. Sabemos, como escritores, coisas que não sabemos como homens até o momento em que nos pomos a escrever. O poço é mais fundo do que parece, sempre. Que os personagens ditem as regras com suas características próprias (inventadas ou sentidas como necessárias por nós) é fundamental. É isso que empresta um calor, uma paixão única ao ato de escrever.
    20 setembro, 2014 as 12:23

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