O jazz, o rock e a funcionalidade…
………………….O jazz, o rock e a funcionalidade das coisas
.
“Que latomia é essa”? Foi a primeira crítica que ouvi sobre jazz. Meu pai, no auge de sua cultura sertaneja, definiu bem o que escutara naquele instante. Era Oscar Peterson, meu primeiro vinil de jazz. Não conhecia esta palavra. O primeiro significado que me veio foi de uma briga entre cachorros e gatos. Briga que produz um som estridente, misturado e uníssono, um embolado de latidos e miados. E meu pai nem tinha escutado fusion, era Peterson, pianista canadense, que praticava, digamos, um jazz “clássico”. Infelizmente não vou recordar quem era o guitarrista daquela formação, mas aqueles agudos soaram para meu pai como miados de gatos em extremo êxtase ou apuros, sustentados por sons graves dos latidos ritmados de cães contrabaixistas. Desde então, percebi que o jazz sustentaria qualquer tentativa de embalo de meus pensamentos.
Quem havia me aplicado o jazz tinha sido uma professora do meu primeiro ano de faculdade, de quem me tornei muito amigo. Um disco de Chet Baker, com as duas primeiras músicas que nunca mais esquecerei: Porgy and bess, do Gershwin e uma do Miles Davis, Milestones, gravadas em Paris. Mas como eu poderia escutar jazz assim tão facilmente, tendo 17 anos e egresso da pujança do “rock’n’roll”? Era o requinte. Sim, vou revelar desde já: requinte, esta é a palavra. O mais engraçado é que naquele momento o mundo se abria para mim com as leituras de Fernand Braudel, Jacques Le Goff e Marc Bloch, as humanidades começavam a despertar naquele espírito provinciano um princípio cosmopolita.
Tomava muito chá de “maçã com canela” à época, fazendo (ou pelo menos tentando) a transição do rock para a MPB. As novas leituras, a aspiração intelectual e a ordenação do pensamento pediam aquela guinada, aquele suporte mais soft. E esta combinação era o mais próximo do refinamento que estava ao alcance naquele contexto. Bom, mas desde o Chet ouvido na faculdade a luz tinha acendido a ascendências. Na época, sempre que podíamos, comprávamos vinis, já no auge da era do CD. A maioria (ou totalidade), de rock, claro, de Queen a Raul Seixas. Numa primeira oportunidade que fui a Belo Horizonte, andávamos pela Paraná já em direção à rodoviária para voltar a minha “província”, havia um senhor com um monte de vinis expostos na calçada na lateral de um grande banco; na época em que se podia vender alguma coisa na rua. Óbvio, paramos, eu e meu amigo Santana, para perscrutar as ‘bolachas’ e, eis que me surge um Jazz-history – Vol. 6, Oscar Peterson, duplo. Foi uma ligação mágica, “vou levar”, sem titubear. O dinheiro dava até para comprar dois outros discos quem sabe, mas vai lá, precisava saber quem era (não conhecia absolutamente nada de Jazz) e, principalmente, o que era esse tal de ‘jazz’!
Dentro do ônibus, uma hora e quinze de viagem com minha mochila e aquele bolachão debaixo do braço. Ok, cheguei a minha cidade, fui para a faculdade, voltando lá pelas dez e tanto da noite louco querendo colocar o vinil para deslizar sob a agulha. Sorte minha que era agosto e estava meio frio. Tinha aparecido uma tal de “mistura para cappuccino” lá em casa (nossa como tudo aquilo era novidade!). Quando a primeira nota do piano delicioso de Peterson repercutiu, veio-me como um comunicado oficial: “Faça um cappuccino!” Nem era álcool… Com esta combinação devo ter escutado o disco duplo umas três vezes ininterruptas! Foi como um gigantesco insight, com a sensação e certeza de que finalmente uma trilha me dava espaço para pensar, organizando o caos em desorganização!
Organizando em desorganização? Como assim? Sim, esta é sensação que tenho até hoje do jazz. Como escutava bastante rock, com seu ‘compasso’ mais ‘redondo’, de divisão geralmente 4/4, o pensamento se organizava mais dentro daquele ritmo cadenciado, daquela lógica, com a estrutura mais nítida, que permitia sugar a energia da potência do som. Era o mundo dos rifes, da “cozinha” baixo/bateria organizando e sustentando a avalanche. Porém, como uma “porta da percepção” veio o jazz me desconstruindo completamente num primeiro momento. Como aquilo era possível? Aquele emaranhado genial de sons aparentemente desconexos soando de maneira magistral e potente. Aquela mesma potência experimentada com o rock. Tentava entender isso. Provinciano, debatia para entender finalmente esta minha transição que não significava apenas a mudança de estilo musical, mas sim a mudança do modo de sentir o mundo, de organizá-lo, de transformá-lo.
A resposta veio no filme Bird, sobre a vida do Charlie Parker, de Clint Eastwood, numa cena em que ele, vendo a ascensão do ainda iniciante rock, invade uma apresentação do estilo do momento aos berros dizendo algo como (lembrando de memória): “você só está tocando quatro notas repetidas!”, indignado. Ainda mais Parker, que como diz Ronald Atkins na publicação The jazz masters. 100 anos de Swing, “introduziu uma linguagem mais complexa do que a que existia antes dele, e que, em suas mãos, jingava de uma maneira que parecia crescer, à medida em que ele tomava liberdades mais audaciosas com a batida” (p.63) . A conclusão daquele entendimento era que um estilo não evolui ou deixa de evoluir do outro. “Evolução” pertence a indústria fonográfica. O determinante é a funcionalidade de cada coisa, o que cada um atribui função ao que quer compreender.
Foi importante entender que um estilo não concorre com o outro. Isso é assunto do showbiz. Tanto é que até ocorreu historicamente a “fusão” do jazz com o rock, através de Miles Davis. Ruy Castro, em seu Tempestade de Ritmos (Cia. das Letras), comenta que “na segunda metade dos anos 60, o rock avassalou a música, e Miles, como todos os artistas que ainda frequentavam barbeiros e alfaiates, começou a perder mercado” (p. 20). A ponto do próprio ter dito que o rock teria sido ‘o assalto mais bem-sucedido do mundo branco à música negra’. Entretanto, como conta Ruy Castro, o novo presidente da CBS disse a Davis que ele teria de “eletrificar a banda, mudar seu visual (trocar os ternos por camisolões) e tocar em lugares abertos (estádios, ginásios e festivais ao ar livre) para as plateias do rock. Era isso ou ser rebaixado para a segunda divisão” (p. 20). Assim inaugurou-se o fusion jazz/rock. Que para muitos não foi muito interessante, inclusive como diz Castro, foi “uma fusão na qual o jazz ficou definitivamente no prejuízo” (p. 21).
Até ai tudo bem, mas, e a tal “funcionalidade”? O que seria e como se aplica? O que o jazz e o rock poderiam ter em relação a funcionalidade das coisas? Bem, melhor citar um exemplo acontecido comigo mesmo. Com demanda de trabalho enlouquecida, diagramando diversos trabalhos ao mesmo tempo, tirar energia de onde? Senão de mim mesmo, foi o que pensei. Sim, através da música. Para este caso, não do jazz, que me preenche e dá espaço ao mesmo tempo. Precisava de energia pura armazenada. Mas havia isso dentro de mim? Sim, o rock tornou-se energia pura revivificada. O distanciamento proporcionou este resgate no tempo certo. Busquei nos discos do Iron Maiden e Black Sabbath escutados há mais quinze anos. Pude me revisitar de anos atrás sem precisar tentar me diagnosticar (como se fosse preciso ou possível). Extraí aquela energia que ficara acumulada de tantos rifes de potência, pronta a ser usufruída em bem próprio. Foi uma medida emergencial que deu certo. Em parte graças àquela ruptura jazz/rock que procurei compreender lá atrás, antes do desenrolar dos compassos. Por fim, acreditei, e ainda acredito que a função das coisas deve ser criada ao seu alcance. Como este Charlie Haden, que escuto agora para escrever estas linhas. Seu contrabaixo protuberante aguça uma tranquilidade necessária para meu espírito.
http://youtu.be/NcRA_XtaUeA
.
Milton Fernandes é diagramador e poeta. Lançou o livro Gotas (poesia, Crisálida, 2011). No campo do designer de livros já criou, entre capas, diagramações e projetos gráficos, mais de 250 trabalhos. Atualmente trabalha no projeto de um romance. www.miltonfernandes.com E-mail: milton.fernandesign@gmail.com
13 julho, 2012 as 17:02
18 julho, 2012 as 15:37