O homem dourado
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Jorge Luís Borges perguntou-se certa vez por que motivo somos capazes de lembrar um fato ocorrido 50 anos atrás e não somos capazes de prever outro que acontecerá daqui a dois minutos, e que, teoricamente, estaria muito mais próximo. Este é, como muitos outros paradoxos do argentino, uma crítica sutil à maneira incorreta de formular um problema. Borges indica que se insistirmos em enxergar o Tempo como uma espécie de Espaço (com direções tipo frente-trás, cima-baixo, direita-esquerda) estaremos sujeitos a uma infinidade de paradoxos, porque esses tipo de visualização não se aplica necessariamente ao Tempo. (H. G. Wells, em seu famoso capítulo inicial de “A Máquina do Tempo”, contribuiu muito para enxergarmos o tempo dessa forma.)
No conto “O homem dourado” (em “Realidades Adaptadas”, Ed. Aleph) Philip K. Dick fala do jovem Cris Johnson, um rapaz de 18 anos meio autista – não fala, não se comunica, não dá trabalho à família, vive apenas olhando tudo à sua volta, e de vez em quando desaparece (e reaparece dias depois) sem dar explicações. Ele é um mutante, e seu super-poder consiste em adivinhar o futuro. Cientistas preparam complicados testes em que uma porção de aparelhos disparam sobre ele, num recinto fechado, e ele se desvia de todos os tiros. Ele sabe onde o tiro vai ser disparado, e apenas se afasta.
Johnson vive mentalmente num presente mais amplo, que se expande para o futuro, e não para o passado. Ele parece (ao contrário da frase de Borges) não lembrar o que aconteceu no passado, e ter uma visão muito clara do que acontecerá nos próximos segundos ou minutos. Diz uma cientista: “Ele tem um presente mais amplo. Mas seu presente se encontra à frente, não atrás. Nosso presente está relacionado ao passado. Somente o passado é certo, para nós. Para ele, o futuro é certo. E provavelmente não se lembra do passado, não mais do que qualquer animal é capaz de lembrar o que aconteceu.”
Cris Johnson vê o Tempo como um conjunto de cenas muito próximas e nítidas que vão se desdobrando e se ramificando em outras, cada vez menos nítidas à medida que são mais distantes, mas as cenas mais próximas, do futuro mais imediato, brilham com clareza. As cenas se tornam mais claras quando se tornam mais prováveis, e depois de acontecer, desaparecem. “A única coisa que lhe era desconhecida era a que já deixara de existir. De modo vago e obscuro, perguntava-se de vez em quando para onde iam as coisas depois que ele passava por elas”. É um mutante, por certo, mas num certo sentido é a prefiguração das nossas futuras gerações, cada vez mais vulneráveis a um Presente que não cessa de aumentar e de exigir toda sua atenção.
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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba:http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br

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