O enigma das ondas
Breves notas sobre O enigma das ondas por uma tradutora de Francis Ponge
por Leda Tenório da Motta
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Dizem três versos de um curto poema deste livro de poesia com capa de Hokusai: “quando leio um poeta usar a palavra enleio/ no ato já sei o que fazer/ nem leio”.
É todo um parti pris à la Ponge: não poetizar a poesia. E toda uma promessa do que está por vir.
Diante disso, é interessante, primeiro, ler o livro só por causa disso. Segundo, ler o livro desconfiando de tudo, para ver se o autor passa na própria prova. Ou se cai no que Ponge chamaria o ronron.
Em matéria de desconfiança, diga-se que, antes mesmo que o encontro com tal proposta desplumada, ainda quando a mergulhar olimpicamente em versos e rimas, nos convide a avançar na leitura de um álbum de poemas, em plena pandemia, já tínhamos um bom motivo para ir em frente. O volume não sai por nenhum selo que garanta previamente aquela repercussão toda, da Folha à Flip, mas por uma editora de risco.
Outra prova extrínseca de valor, embora não tão extrínseca assim, já que a coisa é de molde a deixar marcas no texto: o poeta é também tradutor e crítico, sem separação monótona entre os três, como diriam os concretistas.
Senão, não há truques pós-modernos, a crise do sujeito, a enunciação partida, a materialidade da linguagem, a paródia, a autoparódia, pelas páginas que se seguem. Experimentalismos desses que vêm te mostrar que o sujeito sabe do que é feita a poesia. Vê-se que, até porque, como ainda diria Ponge, ali onde não há poesia há prosa, embora em ganas de expressão, o poeta envereda por uma certa linha de ação, não se impedindo idas à história da literatura, nem à atualidade, inclusive pandêmica, nem à vida interior.
Há versos maravilhosos, não por acaso na seção do álbum chamada “língua”, sobre as relações da vida com as palavras… palavras… palavras. Eles estão num poema, também epigramático, que gira em torno da famosa definição do estado de poesia por Valéry: “hésitation prolongée entre le son et le sens”. Aí, tratando da eterna inconveniência entre as palavras e as coisas, que é o que move Valéry, por conta de Mallarmé, Rodrigo Garcia Lopes volta, à sua maneira, ao lance de dados, para nos dizer que, no fim das contas, nada fica perdido, na jogada poética, já que nada nunca foi tido. Mas logo acrescentando: ainda que possa ter sido sentido. Em francês, a palavra “sens” é dúbia, refere ao senso mas também ao sensório. Assim como em português, o sentido é significado mas também sensação. É o que enseja não apenas uma releitura de um slogan poético eterno, pertencente aos fundamentos daquilo que se convencionou chamar a modernidade em poesia, mas uma associação e tanto entre palavra e sentimento.
No Gulliver, Swift ironiza esses sábios que, querendo sempre deixar claro a que objetos se referem, ou intentando mostrar, enfim, do que estão falando, terminam tendo que carregar nas costas sacos enormes. O poeta de O enigma das ondas o faz com humor.
Ele cai de pé. Sabe inclusive oscilar entre Hokusai e os surfistas, estes outros obsessivos dos relevos da natureza, que vão ao ponto de se entranhar em suas dobras. Seria por isso que, da arte da capa, sumiu, de repente, o Monte Fuji?
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Le son et le sens Le poème, cette hésitation prolongée entre le son et le sens
Paul Valéry
Nada foi perdido
nada jamais tido
entre a pedra e a perda entre o vidro
e o vivido entre a onda
e a sombra entre o ritmo
e o rito entre o sonho e o sol
não ficou vestígio
Só o som ficou
entre a letra e o espírito
no instante dito
no ar sumido
e este estar estrito
e este silêncio escrito
tudo foi sentido
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Leda Tenório da Motta estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva. É Professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora do CNPq nível 1, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tradutora e crítica literária, com passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros. Traduziu, entre outros, O Spleen de Paris de Baudelaire e Métodos de Francis Ponge, o primeiro livro deste poeta a sair no Brasil. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso, que recebeu o Prêmio Jabuti, e Roland Barthes- Uma biografia intelectual(Iluminuras), finalista do Prêmio Jabuti. Lança em 2015, pela Iluminuras, Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam. E-mail: ltmotta@pucsp.br
17 fevereiro, 2021 as 11:03
5 março, 2021 as 3:23