Evangelhos fotográficos


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Desde que concedeu a Ry Cooder o beau rôle em Buena Vista Social Club, o cinema de Wim Wenders vai se tornando digno de esquecimento. Não é que Buena Vista não tenha qualidades. O acompanhamento da redenção dos velhos cantores cubanos no ostracismo que o documentário faz é plasticamente interessante. Como esquecer daquelas ondas do mar do Caribe batendo sobre as paredes da esplanada do Malecón, na velha Havana? Além disso, o famoso documentário levanta um testemunho contra certa violência do sistema em Cuba, aliás, oportunamente  assinalada por Cabrera Infante, quando nota que o castrismo resolveu o problema da saúde na ilha… mas não se pode estar doente sempre.

Contudo, para quem sabe que os Cahiers du cinéma consideravam até mesmo o travelling uma questão de moral, o filme ostenta um problema formal gravíssimo, que não deixou de ser notado por alguns poucos observadores sutis, à época de seu lançamento, em 1999. Trata-se da precedência, da autoridade, da onisciência que a câmera de Wim Wenders concede ao produtor musical estrangeiro, seguindo-o tão de perto, em suas miradas, suspiros e até cochilos no avião de volta à América, que tudo o que é mostrado lhe é imperceptível mas continuamente submetido. Dito de outro modo, trata-se do manager erigido em boa consciência e de seu afago colonial nos cubanos. Onde foi parar o diretor de Alice nas cidades?, nos perguntávamos alguns, à época, diante dessa mise en scène secretamente aduladora do gringo.

Quinze anos mais tarde, o golpe parece repetir-se, em O Sal da terra, onde também fulgura o semblante transcendental de Sebastião Salgado, insistentemente cravado bem no meio do quadro, favorecido pela mise en scène dramática, que o sobreimprime sobre os acontecimentos, como se ele fosse o emissário do Instituto da Luz. De fato, há algo em comum entre o americano que olha para os seus artistas cubanos redescobertos e, como Deus, no sétimo dia da criação, vê que são bons, e o fotógrafo brasileiro que, viajando por esse mundo de Deus, desde o primeiro clique de sua máquina acrobática, o descobre mal criado. Embaralharam-se ligeiramente as cartas – já que desta vez é um explorador subdesenvolvido ou, na melhor das hipóteses, emergente, que surge no papel de detentor do olhar que faz existir tudo o que vive -, mas não as intenções últimas. Quais sejam: despojar-nos de nosso julgamento impondo-nos o escrutínio do olho do outro, supostamente sabedor.

O que me levou ao grande fotógrafo brasileiro foi o fato de ter percebido que ele “se importa”, ouvimos Wim Wenders confessar, com voz compassiva, numa das sequências iniciais do filme. Faz pendant com tal nota patética o lettering que diz: “O Sal da terra segue o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, que, nos últimos 40 anos, viajou por todos os continentes, nas pegadas de uma humanidade sempre em mutação, e testemunhou alguns dos maiores eventos da nossa História recente; conflitos internacionais, a fome, o êxodo”.

Por mais que se queira prestigiar tanta boa vontade, fica difícil para o espectador avisado – ainda mais sabendo que todo esse registro sebastianista da miséria global vai parar nas galerias de Orsay e do Soho,  e que foi numa desses desaguadouros nada miseráveis que Wim Wenders se deparou, pela primeira vez, com um produto do estúdio Salgado -,  não recordar Susan Sontag quando fala de evangelhos fotográficos e de safáris culturais pacificantes. “Na galeria, no museu, na exposição, à foto de algo terrível acrescenta-se o enquadramento da própria galeria”, encontramos em Sobre Fotografia. Leia-se que os vernissages falam mais de si mesmos que dos refugiados do Sael, dos nômades Touareg e dos flagelados de Serra Pelada.

Esta suspeita em relação à estetização da dor é tão mais barthesiana quanto Sontag é finamente afrancesada e uma notória leitora de Mitologias e de A Câmara clara, dois dos mais conhecidos títulos de Roland Barthes, cujo centenário de nascimento comemoramos este ano. No entanto, o autor é ao mesmo tempo mais técnico e mais cruel quando põe o dedo na questão da chantagem dos signos do fotógrafo que vem nos puxar pelos cabelos com suas imagens de lamentação lamentáveis.

Vai nessa direção a pequena crítica que ele escreve, em Mitologias, sobre uma exposição, no Musée de l´Homme, intitulada “A grande família dos homens”, com 503 chapas de figuras humanas de todas as latitudes terrestres, em diferentes condições materiais de existência. São brancos, negros, índios, pobres e ricos, opressores e oprimidos, surpreendidos no trabalho e no lazer, na saúde e na doença, na vida e na morte. O mito funciona aqui em dois tempos, decodifica. Num primeiro, afirmam-se as infinitas variações da espécie, a diversidade das peles e dos crânios, babeliza-se à vontade. Num segundo, reduz-se toda e qualquer diferença à unidade. A intenção é mostrar, sob a capa tênue do pluralismo, a semelhança fundamental. Trata-se de uma “falsificação” muito antiga: “todo o humanismo clássico parte do postulado que, escarafunchando um pouco a história do homem, se atinge bem depressa o tufo profundo universal”.

O problema do estúdio Salgado – e de repente o de Wim Wenders – é esse tufo  humanista. Graças a ele, as boas intenções passam por cima das próprias imagens. Nada se mostra, tudo já nos chega julgado. O fotógrafo e o cineasta sentem, sabem, sofrem por nós. Sensaboria de um, triste ocaso do outro. Temos saudades de Tokio-ga.

 

 

 

 

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Leda Tenório da Motta estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva.  É Professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora do CNPq nível 1, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tradutora e crítica literária, com passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros. Traduziu, entre outros, O Spleen de Paris de Baudelaire e Métodos de Francis Ponge, o primeiro livro deste poeta a  sair no Brasil. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso, que recebeu o Prêmio Jabuti, e Roland Barthes- Uma biografia intelectual (Iluminuras), finalista do Prêmio Jabuti.  Lança em 2015, pela Iluminuras, Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam. E-mail: ltmotta@pucsp.br




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