O autor sem nenhum caráter


Monteiro Lobato

Eu tinha acabado de comprar um livro na banquinha do sebo e ao passar na calçada de um bar vi alguns braços se erguerem: eram amigos que estavam tomando um chope para comemorar o fim do expediente. Meu expediente só começa pra valer de noite, mas num ato de solidariedade corporativa puxei uma cadeira e mostrei de longe, ao garçom, o indicador erguido.

– Comprou livro? – perguntou um deles, olhando o saco plástico que botei em cima da mesa.

Abri o saco e mostrei: era A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato. Livro de correspondências dele com Godofredo Rangel. Era um dos dez títulos favoritos de Guimarães Rosa.

– Lobato? – disse um deles, dando um gole. – Mas ele não era racista?
O racismo de Lobato acaba de ser descoberto pelas redes sociais, que são uma espécie de confessionário público onde todo mundo vai confessar os pecados alheios.

– E você é machista – respondi. – E nem por isso eu deixo de ler as porcarias que compro naquelas tuas noites de autógrafos, onde não vai ninguém.

Houve uma gargalhada geral, inclusive dele (cujas noites de autógrafos, diga-se de passagem, botam gente pelo ladrão), e ficou por 1×1. Mas a gente entrou num corredor-de-discussão interessante: o fato de um autor cultivar uma filhadaputice qualquer deve riscar a obra dele de nossas leituras possíveis?

No tiroteio da conversa alguém lembrou que William Faulkner era alcoólatra, pecado venial que foi minimizado por todos, com mais uma rodada de chope. Dostoiévsky perdeu fortunas no jogo, lembrou outro; mas desde quando o brasileiro acha que jogo é pecado? Jogo é um esporte nacional, mais generalizado do que o futebol. Céline era antissemita, disse alguém. Eu nunca li Céline, mas não seja por isso: já devo ter lido muitos antissemitas sem saber.

Chegamos a um veredito provisório: pode até existir algum indivíduo-ou-indivídua que não tenha defeitos de caráter, mas essas figuras certamente não serão escritores profissionais. Serão monges ou monjas em algum mosteiro remoto, numa cordilheira onde se fala o sânscrito.

Quem é escritor(a) é porque é humano, demasiado humano. Tem algum defeito de fábrica, e os primeiros da fila são a vaidade intelectual, a autoindulgência afetiva, a propensão para cagar regras e a ânsia de enriquecer sem fazer força. Depois vêm o machismo (em homens e em mulheres), o racismo, o classismo, o voto-do-partido-oposto-ao-nosso…
Não acaba nunca, até porque os defeitos que criticamos nos escritores, agora em 2019, não são necessariamente os mesmos que criticávamos vinte ou trinta anos atrás.

A questão que se coloca para muita gente ansiosa é expressa mais ou menos nesses termos: “Mas como ele pode ser um grande escritor, se em sua vida pessoal ele era um canalha, ou era desonesto, ou era cruel, ou era bajulador de poderosos, ou batia na mulher, ou apanhava da mulher?…”

Ser escritor (artista, etc.), muitas vezes, é um processo de compensação num indivíduo que sabe estar trilhando um caminho nebuloso em outras regiões da vida. Muitos autores de belos poemas sobre a espiritualidade humana derivaram para a religião movidos pelo tormento de se acharem grandes pecadores.  Talvez nem o fossem tanto, aos nossos olhos de 2019. Mas eles sabiam a vida que levavam. Achavam-se culpados de pecados inomináveis, e condenados ao inferno; e procuravam se redimir através da poesia, não pedindo desculpas ou escondendo suas “faltas”, mas lançando ao seu Deus perguntas sérias sobre sua própria condição e a condição humana em geral.

Quem espera de um escritor uma impossível pureza de caráter e uma improvável nobreza de sentimentos está atribuindo ao ofício literário um poder que ele não tem: o poder de servir de modelo para todos nós, para que digamos aos jovens, “olhem só, o Grande Escritor Fulano é assim, procurem ser como ele!”.  Não, não é isso.

Um livro é como uma chapa de raio-X. “Olhem só o estado do pulmão desse rapaz!…” A chapa é tirada para nos dar uma ideia do que acontece com aquela pessoa, e o livro é escrito por uma razão não muito diferente. Não temos que ser como os escritores. Nenhum desses caras deve servir de modelo para nós. Não são santos nem heróis da pátria. Alguns se metem a ser, e acabam se tornando figurões meio patéticos.

A literatura é feita para nos dizer o que somos, e não “como devemos ser”. E o que somos nem sempre é muito agradável ao espelho. Somos monstros? Não, somos até bonitinhos por fora (nas fotos, nos currículos Lattes, nas redes sociais) mas por dentro somos todos quasímodos. Me lembro de um bêbo que me confidenciava, anos atrás: “Rapaz, todo mundo me acha todo certinho, mas por dentro eu sou pior do que uma batida de trem.”
Não era um escritor, era um leitor. “Meu semelhante, meu irmão.”

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. antonio, Genial! É isso aí mesmo, há uma disposição farisaica generalizada para julgar os outros, e um comportamento íntimo que provavelmente é mais censurável que o das vítimas.
    14 março, 2020 as 13:15

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