Nelson Rodrigues e o mundo kitsch
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Alguns críticos compararam a obra de Nelson Rodrigues com a do italiano Luigi Pirandello, outros com a do norte-americano Eugene O`Neill, etc. Nem a obra desses dois dramaturgos nem a de outros dramaturgos estrangeiros célebres se assemelhariam, parece-me, à obra do autor de A falecida, uma vez que esta tem raízes latino-americanas (ou só cariocas?) tão profundas quanto “inalcançáveis” para quem vive (basta pensar na fria recepção das peças teatrais de Nelson no estrangeiro) ou escreve fora desse contexto.
A obra de Nelson Rodrigues, carregada de uma “cafonice” tipicamente latino-americana, poderia ser captada, numa leitura contemporânea e ousada, pelas lentes do fotógrafo argentino Marcos López, que esteve há pouco no Brasil e definiu seu trabalho, para o jornal “Folha de São Paulo”, como “um barroco psicodélico latino-americano, mistura de cabarés de Inquito, no Peru, com as influências dramáticas de Glauber Rocha, um pouco da melancolia do tango, Diego Rivera e a arte pop de Andy Warhol traduzida a uma espécie de Carnaval latino – um grande teatro”.
O fato é que os escritos de Nelson Rodrigues estariam muito próximos do conceito de kitsch ou ultrakitsch, não no sentido pejorativo do termo, mas no seu sentido estético, uma vez que são obras carregadas de mau gosto, de sentimentalismos baratos, que copiariam, intencionalmente, talvez, referências da cultura erudita para traduzir a realidade cafona terceiro-mundista (ou seria só carioca?):
“Também uma coisa eu te digo: o casamento de Maninha vai ser um estouro. Nem filha de Mattarazzo, compreendeu? Posso vender meu corpo, tal e coisa, mas o dinheirinho vai direto para o enxoval … Eu fico só com o ordenado do emprego …” (Peça Os sete gatinhos.)
A propósito do efeito que a obra de Nelson Rodrigues provocaria no leitor/espectador, ele estaria reduzida, segundo a opinião de vasta parcela da crítica, unicamente a esse desejo de provocação. Nisso a crítica adota como guia uma ideia do próprio escritor, segundo a qual suas obras eram desagradáveis por serem “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia”. Até mesmo a crítica contemporânea endossa as palavras de Nelson Rodrigues e insiste em afirmar que: “o leitor ou espectador é conduzido por sensações e emoções tão distintas que ouso falar em terror e piedade”, como opinou Marco Antônio Braz, em artigo escrito em 2004.
Certamente, a obra de Nelson Rodrigues não perdeu ao longo do tempo seu poder de provocação, e não tolera, por isso mesmo, uma contemplação desinteressada. Mas, hoje, talvez se possa dizer que sua obra não provoca mais no leitor nem “terror” nem “piedade”, porém uma histeria latino-americana e um estranhamento diante de seu anacronismo:
“Ariel pulou:
— Quer dizer que você lê notícia de crime e fica assanhada. E eu é que pago o pato? Sim, senhor! Uma dona de casa, uma senhora casada!
Abria a primeira página e percorria aquele mostruário de crimes. Um título maior chama a sua atenção. Era uma matéria sobre um ignóbil atentado sexual. A mulher, que olhava de lado, cutuca-o:
— Meu filho, lê essa curra!” (Conto “Imaginação”.)
O escritor e dramaturgo brasileiro falava da sociedade pequeno-burguesa da periferia do Rio de Janeiro, de meados do século passado. Sua obra tornou-se um meio de representação cultural que, assim como acontece no kitsch, faz o público pensar que está fruindo de uma representação original do mundo, quando, na realidade, goza de uma imitação secundária da força primária das imagens, tirando sua força estética do exagero:
“Eu sei de tudo — você é noivo, não pode desmanchar o noivado e quis me comprar.
Pausa. Ele a olha com os olhos cheios de lágrimas . Norma completa:
— Mas eu não me vendo. Eu não custo nada. Eu me dou.
Aperta-o nos seus braços e o beija com infinito amor. (Conto “O carro”.)
Não é o caso de se concordar com Oswald de Andrade, quando ele diz que “o caso Nelson Rodrigues demonstra simplesmente os abismos da nossa incultura. Num país medianamente civilizado, a polícia literária impediria que sua melhor obra não passasse de um folhetim de jornalão de quinta-classe”. Talvez nos caiba afirmar que, possivelmente, Nelson Rodrigues tenha sido na sua época e ainda hoje é um dos maiores representantes da literatura kitsch latino-americana.
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Dirce Waltrick do Amarante é professora do curso de artes cênicas da UFSC. E-mail: dwa@matrix.com.br
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